¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, fevereiro 27, 2004
 
DO UNIVERSO ENTRE AS NAÇÕES


De Alfa Centauro, URGENTE - Astrônomos desta constelação observaram recentemente um estranho fulgor em uma das bordas da Via Láctea. O enigma só foi esclarecido pelo discurso do presidente Luís Inácio Lula da Silva, na periferia de Belém. É o brilho emanado pelo programa social do PT, "o maior programa social do planeta Terra".

Parabéns, ó! brasileiros!
Já, com garbo varonil,
Do universo entre as nações
Resplandece a do Brasil
Do universo entre as nações
Do universo entre as nações
Resplandece a do Brasil.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (V)

A fé católica, enfiada a machado na cabeça, eu a perdi lendo a Bíblia. Ou melhor, antes dela me caíram nas mãos dois livrinhos, Por que no soy cristiano, de Bertrand Russel, e Hacia una moral sin dogmas, de José Ingenieros, pensador positivista argentino. Havia um tráfico muito intenso de idéias na fronteira, devido à proximidade com o Uruguai e a Argentina. Os livros proibidos na escola inevitavelmente caíam em nossas mãos, geralmente trazidos por militantes comunistas. Cabe lembrar que a primeira célula comunista no Brasil não surgiu em São Paulo, em 1922, como pretendem os paulistanos, mas em Santana do Livramento, em 1918, por influência dos marujos anarquistas italianos que atracavam no porto de Rio Grande. Mal os bolcheviques assaltaram na Rússia o Palácio de Inverno, a fronteira gaúcha já estava dando continuidade à "revolução". Entre aspas, por favor. Pois as revoluções, como dizia Ernesto Sábato, começam com maiúsculas, depois são grafadas com minúsculas e acabam entre aspas.

Para Russel, os três impulsos humanos que a religião representa são o medo, a vaidade e o ódio. "O propósito da religião, poderia dizer-se, é dar uma certa respeitabilidade a estas paixões, desde que sigam por certos canais. Como estas três paixões constituem em geral a miséria humana, a religião é uma força do mal, já que permite aos homens entregar-se a estas paixões sem restrições, enquanto que, não fosse pela sanção da Igreja, poderiam tratar de dominá-las em certo grau".

Para quem andava em conflito com a ética católica, o pensador inglês era um apoio caído dos céus. Russel pecava pelo otimismo, acreditava que a humanidade já possuía os conhecimentos necessários para assegurar a felicidade universal. Sua vontade de crer no homem punha entre parênteses o fator estupidez. De qualquer forma, era reconfortante ouvir que o principal obstáculo para a utilização daqueles conhecimentos na obtenção da felicidade era o ensino da religião. "A religião impede que nossos filhos tenham uma educação racional; a religião impede suprimir as principais causas da guerra; a religião nos impede ensinar a ética da cooperação científica em lugar das antigas doutrinas do pecado e do castigo. Possivelmente a humanidade se encontra no umbral de uma idade de ouro; mas, se assim for, primeiro será necessário matar o dragão que guarda a porta, e este dragão é a religião". Muitos outros trechos sublinhei em Russel. Embora não participe de seu otimismo em relação ao bicho-homem, acredito que dentro em breve as nações mais desenvolvidas, ou pelo menos as camadas mais cultas destas nações, terão reduzido as religiões a meros verbetes de enciclopédias.

Se hoje os professores se queixam de que os alunos lêem pouco ou coisa nenhuma, os oblatos e as irmãs do Colégio Nossa Senhora do Horto, com as quais mantínhamos algum diálogo, viviam um drama inverso: nós líamos demais. (Por nós, entenda-se um grupo de cinco ou seis ginasianos, desconfiados com a cultura oficial e ávidos de idéias novas). O livro de Ingenieros, encomendamos de Montevidéu, através da irmã Helena, do Horto. Quando fui apanhá-lo, a coitada se consumia em dilemas, não sabia se nos entregava ou nos subtraía o livro, se o jogava no fogo ou se o guardava. "Este livro é diabólico, me queima nas mãos, não posso entregá-lo a vocês". Não há outra saída, ponderei, agora mesmo é que queremos o livro. Se não nos entregasse, criava um atrito inútil, sem falar que Montevidéu não era assim tão longe. O livro finalmente foi entregue, não sem mais algumas trecheadas angustiadas da irmã Helena. Soube, alguns anos depois, que ela renunciara ao hábito. Em parte terá sido em função de Ingenieros, o que me envaidece. Ainda adolescente, dei uma mãozinha para salvar alguém do ranço vaticano e do dogmatismo.

Talvez um dia Dom Pedrito, município cuja sede teria então uns vinte mil habitantes, produza um pesquisador que se debruce sobre currículos e cadernos escolares da época. Verá que os ginasianos do Patrocínio tinham um nível de cultura humanística que hoje raramente se encontra em um curso de Letras. Terminei o ginásio falando um bom francês, sem o qual jamais teria tido acesso a Paris e à Europa. O inglês que manipulei como jornalista, o aprendi nos quatro anos de ginásio. O latim, também quatro anos, acabou quando eu começava a usá-lo com certa fluência. Nos anos 80, quando lecionei Letras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), me dava por feliz quando encontrava, nos últimos anos de curso, alunas que dominassem o português.

segunda-feira, fevereiro 23, 2004
 
POEMAS DILETOS

Mi Tapera


Elias Regules



Entre los pastos tirada
como una prenda perdida
y en el silencio escondida
como caricia robada,
completamente rodeada
por el cardo y la flechilla
que como larga golilla
van bajando a la ladera
está una triste tapera
descansando en la cuchilla.

Alli, en ese suelo fué
donde mi rancho se alzaba,
donde contento jugaba,
donde a vivir empecé,
donde cantando ensillé
mil veces al pingo mio,
en esas horas de frío
en que la mañana llora,
cuando se moja la aurora
com el vapor del rocío.

Donde mi vida pasaba
entre goces verdaderos,
donde en los años primeros
satisfecho retozaba,
donde el ombú conversaba
con la calandria cantora,
donde noche sedutora
cuidó el sueño de mi cuna,
con un beso de la luna
sobre el techo de totora.

Donde resurgen valientes,
mezcladas con los terrones,
las rosadas ilusiones
de mis horas inocentes,
donde delirios sonrientes
brotar a millares ví,
donde palpitar sentí,
llenas de afecto profundo,
cosas chicas para el mundo
pero grandes para mí.

Donde el aire perfumado
está de risas escrito,
y donde en cada pastito
hay un recuerdo clavado:
tapera que mi pasado
con colores de amapola
entusiasmada enarbola,
y que siempre que la miro
dejo sobre ella un suspiro
para que no esté tan sola.





terça-feira, fevereiro 17, 2004
 
FUSO HORÁRIO

Em novembro passado, andei pela Espanha, meu país dileto. Convidei a visitar-me uma sobrinha, que atualmente mora em Londres. Guiei-a por Madri, e suponho que melhor guia ela não poderia ter, pois Madri é a cidade que mais adoro entre as cidades. Ao chegarmos na Plaza de España, indiquei aquele monumento clássico, o Quixote montado no Rocinante e Sancho Pança em seu burrico.

- Aqueles dois, suponho que conheces – fui dizendo.
Melhor não dissesse. Para minha perplexidade, nunca ouvira falar. Jamais havia visto. Nem mesmo em figurinha.

Para dar as verdadeiras dimensões de minha perplexidade, devo acrescentar que minha sobrinha tem trinta anos, é executiva bem sucedida em São Paulo e vive hoje naquela ilha gris para aperfeiçoar seu inglês.

As novas gerações que me desculpem, mas ignorar o Quixote é algo que não entendo. Não peço que alguém leia a obra, tarefa um tanto dura para leitores contemporâneos. Mas é preciso saber quem é. Esta erudição, por assim dizer, não é privilégio de universitários. Pertence – ou devia pertencer – aos dias de infância, ao mesmo título que Branca de Neve e os Sete Anões, Joãozinho e Maria, capitão Nemo. Já nem falo do capitão Ahab, seria pedir demais.

Ontem ainda, a sobrinha me deu o troco:
“Pra matar a mulherada de inveja: servi champanhe pro Benicio Del Toro !!!!!!! Trabalhei na festa do Bafta ontem. Vi bem de pertinho Jude Law, Jonny Depp, Val Kilmer, Emma Thompson, Rene Z... (a Bridget Jones), etc, etc... Só gente linda e muito muito chique... mas o Benicio Del Toro matou a pau !!!!! Me realizei na carreira de garçonete ontem : ) ... agora chega, né?”

Desculpe-me a sobrinha e desculpem-me os leitores. Não tenho idéia alguma de quem seja essa gente. Às vezes me pergunto: em que século vive uma pessoa?
Parece-me ser boa pergunta. Qualquer hora, volto ao assunto.


 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (IV)

Cidadãos dos anos 90, tivemos o privilégio de assistir à morte de uma grande religião, com pretensões milenaristas, que não chegou a durar um século, o marxismo. Caiu o Muro de Berlim e permanece incólume o cabaço milenar de Maria. No dia em que se esfarelar teremos uma perestroika no Vaticano. Se não era virgem, porque não teria tido outros filhos, como realmente teve? E quem a teria deflorado? José não foi, já nos diz a Bíblia. A única hipótese histórica. aventada por Celso, é um soldado romano chamado Pantera. Se o pai era um soldado romano, o filho já não é mais de Deus.

Falar em Maria, cabe registrar pelo menos um fato, acho que insólito, nas instituições de ensino gaúchas. Cheguei maturrango em Dom Pedrito, sem conhecer as práticas urbanas. Masturbação, fui saber como é que era no Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, na época dirigido pelos padres oblatos e exclusivamente masculino. Diga-se de passagem, era ridicularizado não só por usar bombachas, mas também por não me masturbar. As aulas, conforme a cumplicidade do padre professor, eram alegres festivais de masturbação. Só então vi como se fazia a coisa. Adolescentes em plena descoberta do sexo, cada tarde eram três quatro orgasmos per capita, sem trocadilhos. A turma toda se masturbava furiosamente, enquanto o professor, suponho que deliciado, fingia dar sua aula. No final da tarde, um odor intenso de esperma –que não poderia passar despercebido nem mesmo para um anacoreta – flutuava pela sala. Se a separação por sexos na escola tinha por fim evitar os pecados contra a carne, a estratégia foi contraproducente. Os padres que hoje respondem processos por pedofilia, certamente jamais ouviram falar daquele Éden pedritense, o colégio Patrocínio.

O bordel acabou no início dos anos 60. Com a encampação do colégio pelo Estado, meninas e professoras passaram a ser admitidas, e só então adquirimos uma certa civilidade. Daqueles dias, restam-me duas cenas felinianas. Uma, antes da encampação do colégio. Em um daqueles concursos diários de ejaculação, um dos alunos exagerou em sua arte, ultrapassando os limites daquela hipocrisia tácita entre professor e discípulos. Foi expulso da aula. Acontece que o virtuose se chamava Caim. Até hoje não consigo esquecer o rosto vermelho do padre Lourenço van der Raadt, dedo em riste, furibundo: "Caim, pegue os livros e vá para casa". Tenho certeza que foi com aquele mesmo gesto e mesma ênfase que o anjo do Senhor expulsou Adão do paraíso.

A outra cena ocorreu na fase pós-masturbatória (mas não muito). Chegou de Porto Alegre uma professora de biologia, um par de coxas fenomenais, nem um pouco mesquinha em exibir seus dotes. As turmas já eram mistas, aquela aisance dos tempos dos oblatos era nostalgia. As meninas, o freio civilizatório, estavam ali, a nosso lado. À frente, aquele vale profundo, sombrio, entrevisto sob a saia, antevisão de uma Canaã de leite e mel abundantes. A ala masculina perplexa, com olhar de peixe morto. Ela, ou pelo menos sua metade que ficava acima da mesa, distante e impassível, como se nada tivesse a ver com o que exibia lá embaixo. Um belo dia, resolveu provocar:
– Senhor Cristaldo, suba ao estrado.

Vermelho, de mão no bolso, obedeci à intimação, de costas para as meninas, olhar fixo no quadro negro. A pedagoga, coxuda e implacável, fria como navalha:
– Senhor Cristaldo, vire-se para seus colegas.
Mais o golpe de misericórdia:
– E por favor, senhor Cristaldo, tire as mãos do bolso.
Saudades daquela professora! Sempre fui bom em biologia, que aula dela eu não perdia.

Padre Lourenço, professor de inglês, por várias semanas nos lavou a alma. Mal havia chegado da Holanda, a turma inventou de chamá-lo de Padre Bicha. Se com pertinência, não sei. Sem conhecer nada de português, cada vez que entrava na aula era saudado com um sonoro "Padre Biiiicha!" Julgando que se tratava de um apelido carinhoso, ria feliz e sacudia as mãos juntas sobre a cabeça, como um atleta ao celebrar um gol. Pelo menos até o dia em que conheceu melhor as nuanças do português. O homem entrou na aula vermelho, o rosto entumecido pelo sangue. Nossa tradicional saudação ficou na garganta. Foram duros os meses pela frente.

A experiência de colégio masculino só serviu para realçar a importância da presença feminina. Mesmo hoje, dou meia volta se ao entrar em um bar vejo um clube exclusivo de machos. Meus – como direi? – companheiros de sexo são em geral abomináveis quando reunidos longe do olhar feminino. A presença de uma mulher – pode ser a cozinheira do boteco – ameniza qualquer ambiente e faz com que os machos mantenham uma certa postura civilizada.


quarta-feira, fevereiro 11, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (III)

Cheguei a Dom Pedrito em 1958, época em que bombachas eram um estigma. Numa tentativa de adaptação à "urbe", troquei botas e alpargatas por sapatos, mas sempre preservando as bombachas, o que me tornava um ser híbrido e grotesco. Hoje, elas são ostentadas como símbolo de identidade cultural. O que não deixa de ser ridículo, botas e bombachas só fazem sentido para o gaúcho a cavalo, jamais para o ser urbano motorizado.

Neste sentido, os florianopolitanos não deixam de ter razão quando nos satirizam. Qual é o menor circo do mundo? A bombacha, só cabe um palhaço dentro. Naqueles anos 50, usá-las era sinônimo de grossura. No ginásio não me pouparam, enquanto não as troquei pelas "calças corridas" me senti um verme. A violência do choque com a cidade me fez por algum tempo repudiar meu próprio pai. Quando já havia optado pela calça de vinco, ele chega a Dom Pedrito, montado em suas bombachas. Adolescente e inseguro, massacrado pelo snobismo da província, sentia vergonha ao sair na cidade com aquele gaúcho –um dos últimos– que nunca renegou suas origens. Suponho que muitos fronteiristas de minha geração, que um dia trocaram o campo pela cidade, terão vivido este trauma, sem coragem de confessá-lo. Quando me refugiei lá pelas bandas do Pólo Ártico, confrontado com outros modos de vida, pensei: volto a Dom Pedrito, pego o Canário pelo braço e vamos passear de bombachas pelo centro da cidade. Tarde demais. Meu pai morreu enquanto eu esperava um navio em Lisboa.

Minha primeira viagem foi para Dom Pedrito. Sessenta quilômetros de bicicleta em estrada de barro e areia, em geral a bicicleta me transportava, por outros quilômetros eu a carregava. Senti um nó na garganta quando pisei pela primeira vez solo europeu em Barcelona, perdi a voz quando vaguei pelo Saara argelino, mas Dom Pedrito foi pura decepção. Eu esperava demais do que seria uma cidade. No campo, lia contos de fadas e revistas em quadrinhos, adaptações das histórias dos Grimm, das Viagens de Gulliver e das Mil e Uma Noites. Tinha uma idéia da cidade como algo dourado, resplandecente, de preferência com torres e minaretes. Dom Pedrito era mais para branco e cinza que para amarelo. Que lembrasse minarete, só tinha uma caixa d’água, e das mais gordas. As cidades de sonho, Paris, Estocolmo, Veneza, Amsterdã, Salamanca, Cuenca, só fui conhecer bem mais tarde. Como também Praga. Diria hoje que a capital da ex-Tchecoslováquia, amarelecida por um sol hibernal, correspondia a idéia que, lá na campanha, eu fazia de uma cidade.

Dom Pedrito foi sempre atrito, a começar pelas bombachas. Logo adiante, o conflito religioso. Nas Três Vendas, fui catequizado pela mulher de um fazendeiro uruguaio. Doña Chichi vivia rezando para que Deus iluminasse o prefeito de Dom Pedrito, que o inspirasse a encascalhar a estrada do Ponche Verde, para que Dom Soilo pudesse escoar suas safras. Mal cheguei na cidade, caí direto na Congregação Mariana, criada pelo padre Antônio Paul, vigário de Dom Pedrito e diretor do Colégio Nossa Senhora do Patrocínio. Naquela época, acreditava piamente em Deus, Cristo, virgindade de Maria e outras potocas. Como sempre levei minhas crenças a sério, acabei assumindo a presidência da congregação e não conseguia admitir certas contradições à minha volta. Meus congregados comungavam aos sábados, dia consagrado a Maria, e acordavam no domingo em um bordel. Com aquele ímpeto messiânico que contamina todo cristão novo, estabeleci meu silogismo. Dom Pedrito era uma cidade fundamentalmente católica. A Igreja considerava pecado sexo fora do matrimônio. Logo, vamos acabar com a prostituição. Se não no país, pelo menos na cidade. Eu fazia na época uns três ou quatro programas semanais na Sulina - então Rádio Ponche Verde. Através deles, conclamei a comunidade a acabar com a peste.

Coberto de ridículo, não conseguia ir de casa até o ginásio sem receber vaias ao longo do caminho. Padre Antônio não julgou de bom tom minhas arengas –"se não houver prostituição, que vai ser das empregadinhas?". No fundo, o mesmo argumento de São Tomás e Santo Agostinho, a idéia de uma cloaca por onde se escoam os detritos do castelo. Meus programas radiofônicos foram cortados, a matrícula no ginásio cancelada e a Congregação Mariana fechou pra balanço. Foi meu primeiro feito, acho: por uma busca de coerência, acabei com aquele clubinho de adolescentes que, por pressão das mães ou dos padres, fingiam cultuar a virgindade de Maria. Busquei refúgio em Santa Maria, no colégio Santa Maria, dirigido por irmãos maristas, Maria sempre me perseguindo. O trauma havia sido de tal porte, que nos primeiros dias na cidade, mal via um grupo reunido numa esquina, por um reflexo condicionado adquirido em Dom Pedrito, ficava tenso à espera de insultos. Com o tempo, passou.

Para quem não saiu da província, o culto mariano pode parecer superstição de cidades interioranas. Viajando e lendo, vê-se que é mais poderoso mito do Ocidente, base de todo o cristianismo. A Igreja romana pouco se preocupa quando alguém nega Deus, afinal restam os que nele crêem. Se alguém põe em xeque a infalibilidade do papa, não faltam multidões que a têm como dogma. A pedra de toque do catolicismo, e ao mesmo tempo seu ponto mais frágil, é o hímen de Maria. A partir do momento que se aceita a idéia de uma mãe virgem, todos os demais absurdos têm portas abertas.

domingo, fevereiro 08, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (II)


Em Madri, em uma feira de antigüidades encontrei uma edição poliglota do poema. Só para dar uma idéia dos dois primeiros versos. Em inglês, dá isto:

I sit me here to sing my song
To the beat of my old guitar,


Em francês, na tradução de Verdevoye, temos:

Ici je m'mets a chanter
aux accords de ma guitarre.


No italiano:

Incomincio qui a cantare
pizzicando la mandola.
L'uomo, si anche di una sola
pena in cuor sente il rovello,
come solitario augello
con il canto si consola.


Deixei-me embalar pela música do italiano e saiu a sextilha toda. O poema nascido nesta nossa geografia de fronteira, esquecido e desprezado pelos intelectuais gaúchos e brasileiros, e hoje talvez pouco conhecido em Livramento ou Dom Pedrito, tem prestígio nos mais importantes centros culturais do Ocidente. Traduzir é impossível –costuma-se dizer entre tradutores– mas é necessário. Ao estudar em Santa Maria e depois em Porto Alegre, notei que muitas coisas separavam o homem do asfalto do homem da pampa. Entre outras, de uma muito me orgulho, é a possibilidade de degustar o poema de Hernández naquele castelhano estropiado, em sua rudeza original. Se por um lado traduzir é impossível, por outro é necessário. No inglês e no francês, o poema perde sua musicalidade, torna-se grotesco. No italiano, soa como tarantela.

Este universo hernandiano, que há muito deixou de existir, ainda era vivo naquela região em meus dias de campanha. Raras pessoas sabiam quem era Hernández. Conhecia-se o personagem Martín Fierro, um gaúcho payador e bom de briga, que talvez até ainda andasse galopando por aquelas coxilhas. Mais uma prova da grandeza do poema: raros criadores conseguem construir um personagem tão forte que acaba por matá-los. As lutas de Fierro com o negro, com os índios e com a polícia encantavam as fogueiras no galpão. Ao enfiar uma adaga na cintura e ir até um bolicho ou a um baile num domingo, todo paisano se travestia de Fierro. Muita gente morreu naquelas plagas por ter proferido uma palavra inconveniente.

Dificilmente um homem urbano, que não tenha crescido no campo, conseguirá entrever o abismo que o separa do camponês. Ou pelo menos daquele camponês, da época anterior ao rádio e à televisão. Lá, as leis são outras. Percebi isso brutalmente em uma de minhas férias em Dom Pedrito, quando já vivia em Porto Alegre. Cheguei na madrugada, quando um de meus primos estava sendo julgado por homicídio. Matara o sogro na Linha Divisória, certamente por alguma dessas intrigas fúteis que se tornam uma questão de vida ou morte para o fronteirista. Aí já começava a polêmica. Haviam-se cruzado, os dois a cavalo, na estrada da Linha. Meu primo havia atirado do Brasil, seu sogro havia caído no Uruguai. Onde o crime? Por via das dúvidas, o matador preferiu se entregar no Brasil, se achava mais em casa. O que já era uma certa noção do ordenamento jurídico do mundo. Normalmente, quando alguém matava alguém lá na fronteira, simplesmente passava vinte anos do outro lado da Linha Divisória, até que o crime prescrevesse ou que alguém vingasse o morto.

O júri acabou na madrugada, o réu chegou todo contente lá em casa. "Que advogado bom, Canário. Fui absolvido. Por unanimidade, tche. Quatro a três". Meu pai, que nada tinha de urbano, quis saber mais. "E falaram muito no crime?" O primo respondeu indignado: "Parece que não tinham outro assunto. Levantaram coisas da minha vida que eu já nem lembrava mais". O toque surrealista foi dado pelas circunstâncias da absolvição. Ele levava a filha sobre o lombilho na ocasião do tiroteio. "Guria buena, Canário! Foi ela quem me salvou, quando disse: o vô puxou primeiro". Na época, estudava Direito, só então me dei conta do mundo em que havia nascido. E que a ele não mais pertencia.

O primo havia sido absolvido pela lei urbana. Mas não pela do campo. Morreu mais tarde em uma dessas circunstâncias estúpidas, onde a chamada defesa da honra vale mais que a própria vida. Foi a um bolicho em um domingo, o bolicheiro pediu-lhe que o ajudasse a corear uma vaca. "Se não for roubada, te ajudo". Morreu na hora com um tiro na testa. De repente um gaúcho com fama de violento cruza com outro com fama de contrabandista, diz algo dúbio e o desfecho é um só.


sábado, fevereiro 07, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (I)


Dom Pedrito


Feliz de quem tem uma província no fundo do coração, disse alguém, já não lembro quem. Talvez Machado de Assis. Nada dá mais prazer a um homem honesto do que falar de si mesmo, pôs Dostoievski na boca de um de seus personagens. Província é o que não me falta. E não tenho desprazer algum ao falar de mim mesmo.
Nasci no campo, naquela zona dúbia entre Brasil e Uruguai, Três Vendas e Ponche Verde, Puntas de Yaguari e Villa Indarte. Mais precisamente, em Upamaruty, a menos de uma légua da Linha, fronteira seca com a República Oriental del Uruguay. Em razão dessas curvas anômalas da geografia política, o sol para mim sempre nasceu na Banda Oriental – ou Tierra de Ningún Provecho, como os conquistadores espanhóis definiam o Uruguai em seus mapas. Pelo que aprendi da vida nestas andanças, as fronteiras produzem, entre outros, dois tipos de homem. Existe aquele para quem o mundo termina ali, antes da divisa. Este é o nacionalista atroz: meu país é o melhor país do mundo. Mas as fronteiras geram também outro espécime, que vê o mundo começando do lado de lá. Pelo lado de cá, jamais senti muita atração, já o conhecia.

Só mais tarde fui saber que nasci embalado pelo poema maior gerado por este continente. Nas madrugadas lá da Linha, antes de buscar as vacas em meio à cerração, sempre se tomava um mate ao redor da fogueira no galpão. Enquanto eu chorava a contragosto, com a fumaça de algum cavaco de madeira verde, meu pai recitava as coplas de Fierro. Tenho uma definição muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,


e se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho não é.

que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.


Em abril de 91, em um final de noite em Paris, encontrei uma uruguaia que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo, ela deu a senha. Tudo bem, era gaúcha. Gaúcho, se for gaúcho mesmo, continua a sê-lo mesmo nas antípodas. Aliás, esqueci de perguntar para a uruguaia gaudéria se tinha uma tapera em seu passado. Certamente a teve, bastava olhá-la nos olhos quando falava da pampa.

Entre los pastos tirada
como una prenda perdida
y en el silencio escondida
como carícia robada,
completamente rodeada
por el cardo y la flechilla
que como larga golilla
van bajando a la ladera
está una triste tapera
descansando en la cuchilla
...............................
donde palpitar senti,
llenas de afecto profundo,
cosas chicas para el mundo
pero grandes para mí.


Este excerto é de Mi Tapera, de Elias Regules. O poema não é muito conhecido entre nós. Deslumbrados pelos brilhos teóricos emanados de Paris ou Moscou, os donos da cultura no Rio Grande do Sul ajoelharam-se em direção ao norte e deram as costas para o Prata. Aliás, nisto os rio-grandenses não são nada originais, esta é a atitude nacional. Ao norte do rio Uruguai, raras pessoas conhecem Martín Fierro. Em Florianópolis, quando propus um curso sobre o poema, os PhDeuses que me cercavam julgaram que eu estava falando grego. Hoje, em São Paulo, tenho fascinado não poucos amigos recitando as coplas de Hernández. Jamais haviam ouvido falar do homem ou da obra.

O mesmo já não acontece na Europa. Certa vez, alguns anos antes da reunificação alemã, caí em Berlim Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede de uma amiga riograndense de origem italiana, que não sabia se José Hernández era açougueiro ou alfaiate. Quando soube que o poema começara a ser escrito em Santana do Livramento, achou que eu estava abusando de meu senso de humor. Foi consultar uma enciclopédia literária alemã, lá estaria a verdade. Pois estava: os dicionaristas concediam várias páginas a nosso vizinho e o comparavam –nada mais, nada menos– a Homero.

Em Paris, quando defendia na Sorbonne uma tese de doutorado em Literatura Comparada – no fundo um álibi para queijos e vinhos, mulheres e novas paisagens – tive a grata surpresa de ver no júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema de Hernández ao francês.

Tive ainda um outro reencontro com os versos de minha infância lá no outro lado do Atlântico. Obcecado por ilhas, acabei caindo nas Canárias. Em Las Palmas, encontrei um professor universitário, arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema argentino. Pois naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos da África, tão estranha à pampa gaúcha, o homem siderava platéias recitando a saga de Fierro.