¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, fevereiro 08, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (II)


Em Madri, em uma feira de antigüidades encontrei uma edição poliglota do poema. Só para dar uma idéia dos dois primeiros versos. Em inglês, dá isto:

I sit me here to sing my song
To the beat of my old guitar,


Em francês, na tradução de Verdevoye, temos:

Ici je m'mets a chanter
aux accords de ma guitarre.


No italiano:

Incomincio qui a cantare
pizzicando la mandola.
L'uomo, si anche di una sola
pena in cuor sente il rovello,
come solitario augello
con il canto si consola.


Deixei-me embalar pela música do italiano e saiu a sextilha toda. O poema nascido nesta nossa geografia de fronteira, esquecido e desprezado pelos intelectuais gaúchos e brasileiros, e hoje talvez pouco conhecido em Livramento ou Dom Pedrito, tem prestígio nos mais importantes centros culturais do Ocidente. Traduzir é impossível –costuma-se dizer entre tradutores– mas é necessário. Ao estudar em Santa Maria e depois em Porto Alegre, notei que muitas coisas separavam o homem do asfalto do homem da pampa. Entre outras, de uma muito me orgulho, é a possibilidade de degustar o poema de Hernández naquele castelhano estropiado, em sua rudeza original. Se por um lado traduzir é impossível, por outro é necessário. No inglês e no francês, o poema perde sua musicalidade, torna-se grotesco. No italiano, soa como tarantela.

Este universo hernandiano, que há muito deixou de existir, ainda era vivo naquela região em meus dias de campanha. Raras pessoas sabiam quem era Hernández. Conhecia-se o personagem Martín Fierro, um gaúcho payador e bom de briga, que talvez até ainda andasse galopando por aquelas coxilhas. Mais uma prova da grandeza do poema: raros criadores conseguem construir um personagem tão forte que acaba por matá-los. As lutas de Fierro com o negro, com os índios e com a polícia encantavam as fogueiras no galpão. Ao enfiar uma adaga na cintura e ir até um bolicho ou a um baile num domingo, todo paisano se travestia de Fierro. Muita gente morreu naquelas plagas por ter proferido uma palavra inconveniente.

Dificilmente um homem urbano, que não tenha crescido no campo, conseguirá entrever o abismo que o separa do camponês. Ou pelo menos daquele camponês, da época anterior ao rádio e à televisão. Lá, as leis são outras. Percebi isso brutalmente em uma de minhas férias em Dom Pedrito, quando já vivia em Porto Alegre. Cheguei na madrugada, quando um de meus primos estava sendo julgado por homicídio. Matara o sogro na Linha Divisória, certamente por alguma dessas intrigas fúteis que se tornam uma questão de vida ou morte para o fronteirista. Aí já começava a polêmica. Haviam-se cruzado, os dois a cavalo, na estrada da Linha. Meu primo havia atirado do Brasil, seu sogro havia caído no Uruguai. Onde o crime? Por via das dúvidas, o matador preferiu se entregar no Brasil, se achava mais em casa. O que já era uma certa noção do ordenamento jurídico do mundo. Normalmente, quando alguém matava alguém lá na fronteira, simplesmente passava vinte anos do outro lado da Linha Divisória, até que o crime prescrevesse ou que alguém vingasse o morto.

O júri acabou na madrugada, o réu chegou todo contente lá em casa. "Que advogado bom, Canário. Fui absolvido. Por unanimidade, tche. Quatro a três". Meu pai, que nada tinha de urbano, quis saber mais. "E falaram muito no crime?" O primo respondeu indignado: "Parece que não tinham outro assunto. Levantaram coisas da minha vida que eu já nem lembrava mais". O toque surrealista foi dado pelas circunstâncias da absolvição. Ele levava a filha sobre o lombilho na ocasião do tiroteio. "Guria buena, Canário! Foi ela quem me salvou, quando disse: o vô puxou primeiro". Na época, estudava Direito, só então me dei conta do mundo em que havia nascido. E que a ele não mais pertencia.

O primo havia sido absolvido pela lei urbana. Mas não pela do campo. Morreu mais tarde em uma dessas circunstâncias estúpidas, onde a chamada defesa da honra vale mais que a própria vida. Foi a um bolicho em um domingo, o bolicheiro pediu-lhe que o ajudasse a corear uma vaca. "Se não for roubada, te ajudo". Morreu na hora com um tiro na testa. De repente um gaúcho com fama de violento cruza com outro com fama de contrabandista, diz algo dúbio e o desfecho é um só.