¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, abril 30, 2004
 
INIMPUTÁVEIS



Espigão d'Oeste - Dois garimpeiros que trabalharam para os índios cintas-largas no garimpo de diamantes na reserva Roosevelt, em Roraima, confirmaram ontem o assassinato de uma menina de 12 anos por um cacique. Roberson Lugon de Souza, de 35 anos, conhecido como Pardal, disse que viu Ita Cinta-Larga estripar a garota ainda viva, porque pensou que ela havia engolido um diamante.

"Chamávamos a menina de Garotinha. Ela estava sentindo cólicas, provavelmente por causa da água suja que bebíamos", contou. No dia em que seria levada à cidade, um dos índios se aproveitou de um descuido e escondeu uma pedra. Foi mais fácil acusar a menina. Ita Cinta-Larga foi até sua oca, pegou uma faca e abriu a menina. Não encontrou nada", disse Souza.

O Estado de São Paulo, 30.04.04

quarta-feira, abril 28, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XI)


Olhando de longe aquela polêmica, vejo que na época já intuíamos o que hoje é evidente. O marxismo é filho bastardo do cristianismo, reconhecido tardiamente pelo progenitor. Que o digam os sedizentes teólogos da libertação. Quando Dom Paulo Evaristo Arns ou Leonardo Boff ou frei Betto elogiam o ditador Fidel e seu regime, fica evidente que, na América Latina, em sua "opção preferencial pelos pobres", a igreja assumiu no Brasil o caminho do obscurantismo e da inquisição.

Estas brigas foram o melhor legado de Dom Pedrito. Com elas inauguramos uma quebra de hierarquia. Não interessava a idade ou o suposto saber de nossos adversários. O que pesava era a lógica, os argumentos. Hoje, teria de rever aqueles artigos – meus recortes foram queimados por minha mãe, como também muitos livros, questão de manter o filho saudável e em liberdade – para saber se estavámos dizendo bobagens ou algo sensato. Provavelmente bobagens, mas isto é o de menos. Aqueles embates nos enrijeciam a pele para confrontos futuros. Sabíamos que verdade não era privilégio exclusivo de professor algum. Pena que muitas mães, com a melhor das intenções, queimaram muitos livros naqueles anos pós-64.

Quando em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi com sangue doce que enfrentei o professor Guilhermino César, historiador mineiro, autor de Meia Pataca, que havia roubado do Aníbal Damasceno Ferreira a descoberta do Qorpo Santo. Ao mostrar os originais do artigo em que o defendia, Aníbal chegou a assustar-se com minha "coragem". Ponho a palavra entre aspas, foi usada por ele. Para mim se tratava apenas de uma rotineira defesa do que julgava correto. Influência talvez do campo, onde a solidão da pampa individualiza as pessoas, jamais me pareceu ser necessário coragem para dizer o que se pensa.

As polêmicas pedritenses ultrapassavam as meras inquietações de adolescência. Através de nós, se manifestava naquela cidadezinha a dez mil quilômetros da Europa a velha disputa entre Roma e Moscou, entre Cristo e Marx, entre Dom Camilo e o camarada Pepone, na obra de Guareschi. Se hoje Marx morreu, não fique Cristo pensando que é eterno. Apesar de erros e desvios, guerras e massacres, a humanidade acaba encontrando as melhores soluções para seu avanço. A última década do milênio passado foi a melhor prova disto.

Mais dia menos o poder do Vaticano desmorona, ou pelo menos reduz seus círculos. Assim como marxismo hoje não passa de um verbete de enciclopédias, mais século menos século alguém terá de consultar um dicionário para saber o que é cristianismo. Não é possível que numa era dos satélites e computadores, da aviação e do turismo, um ser pensante continue acreditando no cabaço de Maria. Tampouco há Maomé que sobreviva a uma antena parabólica. Os países árabes sabem disto e vêem a televisão ocidental como algo muito mais perigoso que o livro.

A dinâmica destas polêmicas me levou a uma ambiência mais arejada, os cabarés da cidade. De nosso grupo eu era o carola por excelência, certamente o único a não conhecer mulher nem freqüentar a zona. Inexoravelmente, fui cair lá. Não por razões de ordem sexual. Ainda tinha medo do bicho-mulher, e sequer um centavo para fretá-las. Nossas mães detestavam ver-nos reunidos num quarto lendo e discutindo, dali nada poderia sair de edificante. Mais ou menos corridos de casa, tínhamos o footing na praça General Osório para trocar idéias. Mas o footing –saudades daquela época, quando as pessoas iam às ruas para ver o rosto dos semelhantes!– tinha hora para acabar, depois restava o bar do Santinho. Como também o Santinho tinha hora para dormir. Depois só restavam as putas. Com o escasso dinheiro para algumas cervejas, nos instalávamos naquelas casinhas de eterna luz vermelha na porta, para discutir filosofia, religião e reforma agrária.

Com o tempo, em final de noite, as moças postaram uma atalaia na janela. Mal despontávamos na esquina, elas fechavam a casa: "lá vêm os filósofos, deles não sai um vintém". Sempre que vou a Dom Pedrito, procuro revisitar estas casas, certamente as tribunas mais abertas da cidade. Nada de original, velha tradição helênica. Na Grécia antiga, o debate intelectual ocorria não nos lares, mas nos lupanares.

Mais contemporaneamente, o rei Ludwig I, nomeou Margaret Trautmann como ministra da Cultura e das Artes da Baviera. Esta senhora, longe de ser uma acadêmica, administrava um bordel em Munique. Quando o ministro da Justiça mandou fechar a casa, Trautmann pediu uma entrevista ao rei. Alegou que sua casa era um ponto de encontro de poetas e artistas, nobres e políticos, que lá se reuniam para cultivar o espírito, claro que sempre na boa companhia de suas pupilas. Ludwig não hesitou. Ordenou a reabertura da empresa e a nomeou ministra. Não pretendo comparar um prostíbulo da fronteira gaúcha com uma casa galante da Baviera, durante o reinado de Ludwig. Mas sempre encontrei mais inquietação de espírito e abertura mental nos bordéis do que em qualquer reunião familiar. Em família, normalmente as pessoas mentem. Aos prostíbulos, vamos para fugir da mentira.

Falar nisso, revisitei há pouco Dom Pedrito. Amigos dos velhos tempos manifestaram o desejo de reler aquele meu primeiro conto, que me valeu a expulsão da cidade. Gente mais nova, que só ouviu falar do assunto, gostaria de conhecê-lo. Foi publicado em 1968, no Correio do Povo, de Porto Alegre, quando eu tinha 21 anos, mas escrito dois anos antes. No próximo post, o conto. Com todas as deficiências de quem mergulhava, pela primeira vez, nesse vício da escritura.

segunda-feira, abril 26, 2004
 
CORAGEM INTELECTUAL


"Sim, há que se endurecer. Temos de fuzilar essa gente que acabamos de fuzilar em Cuba, porque não merecem viver".

Alberto Granado, companheiro de viagem de Che Guevara pela América Latina, em 1952, em entrevista para a Folha de São Paulo, 26/04/04. Está solto e percorre o Brasil prestigiando o filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

sexta-feira, abril 23, 2004
 
O AUTOR ESQUECIDO

Nicolau Emérico – O Manual dos Inquisidores

Sobre a tortura (2)


Se tudo isso for inútil conduzir-se-á à tortura, durante a qual será submetido a interrogatório, em primeiro lugar referente aos artigos menos graves em que seja suspeito, pois que ele confessará as faltas leves de preferência às mais graves. No caso de ele se obstinar sempre a negar, pôr-se-lhe-ão frente aos olhos instrumentos de outros suplícios e dir-se-lhe-á que vai passar por todos eles, a não ser que confesse toda a verdade.

Se enfim o Acusado nada confessar, pode continuar-se a tortura um segundo dia e um terceiro, mas com a condição de seguir os tormentos por ordem e nunca repetir os já praticados, não podendo ser repetidos enquanto não sobrevierem novas provas, embora não seja proibido neste caso o continuar por ordem (ad continuandum non aditerandum, quia iterari non debent, nisi novis supervenientibus indiciis, sed continuari non prohibentur).

Se o Acusado tiver suportado a tortura sem nada confessar, deve o Inquisidor pô-lo em liberdade mediante sentença na qual constará que após um cuidadoso exame do seu processo, nada se encontrou de legitimamente provado contra ele, no respeitante ao crime de que havia sido acusado.

Quanto àqueles que confessem, devem ser tratados como hereges penitentes não relapsos, se for essa a primeira vez; como impenitentes, se não quiserem abjurar; e como relapsos, se é efetivamente a segunda vez que caem em heresia.

Quando começou a estabelecer-se a Inquisição, não eram os Inquisidores que aplicavam a tortura aos Acusados, com medo de incorrerem em irregularidades. Esse cuidado incumbia aows juízes laicos, conforme a bula Ad Extirpanda do papa Inocêncio IV, na qual esse Pontífice determina que devem os Magistrados obrigar, com torturas, os Hereges (esses assassinos das almas, esses ladrões da fé cristã e dos sacramentos de Deus) a confessar os seus crimes e a acusar outros hereges seus cúmplices. Isto no princípio; posteriormente, tendo-se verificado que o processo não era assaz secreto e que isso era inconveniente para a fé, achou-se que era mais cômodo e salutar atribuir aos Inquisidores o direito de serem eles mesmos a infligir a tortura, sem ser preciso recorrer aos juízes laicos, sendo-lhes ainda outorgado o poder de mutuamente se relevarem de irregularidades em que às vezes por acaso incorressem.

De ordinário utilizam os nossos Inquisidores cinco espécies de tormentos no decorrer da tortura. Como isso são coisas sabidas de toda a gente, não irei deter-me neste assunto. Podem consultar-se Paulo, Grilando, Locato, etc. Já que o Direito canônico não prevê particularmente este ou aquele suplício, poderão os Juízes servir-se daqueles que acharem mais aptos para conseguirem do Acusado a confissão dos seus crimes. Não se deve porém fazer uso de torturas inusitadas. Marsílio menciona quatorze espécies de tormentos: acaba por afirmar que imaginou ainda outros, como seja a privação de sono, também referida e aprovada por Grilando e Locato. Mas, se me é permitido dizer a minha opinião, isso é mais trabalho de carrascos do que tratado de Teólogos.

É por certo um costume louvável aplicar a tortura aos criminosos, mas reprovo veementemente esses juízes sanguinários que, por quererem vangloriar-se, inventam tormentos de tal modo cruéis que os Acusados morrem durante a tortura ou acabam por perder alguns de seus membros. Também Antônio Gomes condena violentamente este procedimento.

quinta-feira, abril 22, 2004
 
O AUTOR ESQUECIDO

Nicolau Emérico (1320-1399) - O Manual dos Inquisidores


Sobre a tortura (1)


TORTURA-SE o Acusado, com o fim de o fazer confessar seus próprios crimes. Eis as regras que devem ser seguidas para poder ordenar-se a tortura. Manda-se para a tortura:

1. Um acusado que varia as suas respostas, negando o fato principal.
2. Aquele que, tendo tido reputação de herege, e estando já provada a difamação, tenha contra si uma testemunha (mesmo que seja a única) a afirmar que o viu dizer ou fazer algo contra a fé; com efeito, a partir daí, um testemunho somado à anterior má reputação do Acusado são já meia-prova e índice bastante para ordenar a tortura.
3. Se não se apresentar qualquer Testemunha, mas se à difamação se juntarem outros fortes indícios ou mesmo um só, deverá proceder-se também à tortura.
4. Se não houver difamação de heresia, mas se houver uma Testemunha que diga ter visto ou ouvido fazer ou dizer algo contra a Fé, ou se aparecerem quaisquer fortes indícios, um ou vários, é o bastante para se proceder à tortura.

Geralmente, entre estas várias coisas – testemunha de conhecimento certo, má reputação em matéria de fé, e um forte indício – um deles só não basta, mas dois são necessários e bastantes para ser ordenada a tortura. Há entretanto uma exceção ao que temos vindo a dizer sobre o fato de a má reputação não ser suficiente para se ordenar a tortura:

1. Quando à má reputação se juntam maus costumes; visto que as pessoas de maus costumes facilmente caem na heresia e sobretudo em erros que originam sua vida criminosa. É desta forma que, por exemplo, os que são incontinentes e que têm grande inclinação por mulheres facilmente se convencem de que a simples fornicação não é pecado.
2. No caso de o Acusado fugir, esse indício somado à má reputação é já suficiente para ser ordenada a tortura.

Segue-se a fórmula da sentença de tortura: “Nós, F... Inquisidor, etc, considerando com atenção o processo contra ti instruído, vendo que varias as tuas respostas e que há contra ti provas suficientes, com o fim de tirar da tua boca toda a verdade, e para que não canses mais os ouvidos dos teus juízes, julgamos, declaramos e decidimos que no dia tal... à hora tal... sejas submetido à tortura”.

Não deverá decretar-se a tortura sem primeiro ter inutilmente usado todos os meios de descobrir a verdade. Boas maneiras, esperteza, exortações através de outras pessoas bem-intencionadas, a reflexão, as incomodidades da prisão, podem ser o bastante para conseguir dos réus a confissão da sua falta. Os tormentos não são mesmo um método mais seguro para conseguir a verdade. Há homens fracos que, à primeira dor, logo confessam crimes que não cometeram, enquanto outros, teimosos e fortes, são capazes de suportar os maiores tormentos. Há homens que tendo já sido submetidos à tortura a suportam com constância, porque se lhes distendem logo os membros e lês resistem fortemente; e há outros que, graças a sortilégios, se tornam a si mesmos insensíveis e seriam capazes de morrer no suplício, sem nada confessar. Para tais malefícios, esses desgraçados empregam passagens da Escritura que, de forma estranha, escrevem em pergaminhos virgens, misturando-as com nomes de Anjos que ninguém conhece, círculos, caracteres desconhecidos, que depois escondem em qualquer parte do corpo. Não sei ainda de remédios certos contra tais sortilégios, mas convém sempre despir e revistar bem os Acusados antes de os submeter à tortura.

Lida a sentença da Tortura, e enquanto os Carrascos se preparam para a execução, convém que o Inquisidor e outras pessoas de bem façam novas tentativas para levarem o acusado a confessar a verdade. Os Verdugos procederão ao despimento do criminoso com certa turbação, precipitação e tristeza para que assim ele se atemorize; já depois de estar despido, leve-se de parte e seja exortado novamente a confessar. Prometa-se-lhe a vida, sob essa condição, a menos que ele seja relapso, pois neste caso não se pode prometer-lha.


sábado, abril 17, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (X)


Quando abordamos a obra de um escritor de renome, as mulheres que o acompanharam fazem parte de sua fama, trate-se de um Balzac ou de um Vinícius de Morais. Mas quando o candidato a escritor começa a fugir da monogamia, a gostar de muitas mulheres, seu gesto é quase criminoso. Se o candidato em questão for mulher, pior ainda: é puta e fim de papo. Em um escritor famoso, as muitas mulheres são um adorno à sua biografia. Como em uma escritora ou artista de renome, os vários homens que freqüentaram seu leito constituem currículo, aí estão Lou Salomé, Anaïs Nin, Frida Kahlo, Patrícia Galvão. No adolescente que começa a rabiscar seus contos, seja macho seja fêmea, a diversidade de parceiros é um estigma. Mesmo em Porto Alegre, em ambiente universitário, este comportamento não era muito bem visto. Na época, um radical de esquerda, mais tarde alcaide da capital e hoje ministro da Cultura, comentou que eu deveria ter muitos problemas, pois sempre andava com várias mulheres. Mandei um recado de volta: problemas teria ele, que andava sempre com a mesma. Eu tinha, isto sim, muitas soluções. Mais ainda: sem jamais ter mentido a nenhuma parceira.

Outro atrito com a cidade, a polêmica em torno à reforma agrária. Com os debates sobre a prostituição, foram surgindo detalhes que não imaginávamos existir. Por que uma mulher se torna prostituta? Por prazer é que não é. Havia o problema da migração do homem do campo para a cidade. Se o pequeno proprietário rural abandonava o campo com sua prole, era porque o latifúndio o expulsava. Os comunistas que nos rodeavam foram pródigos em bibliografia. Na época – final do governo Goulart – a grande questão nacional era decidir se a reforma agrária já estava prevista na Constituição, ou se seria necessário reformá-la para dividir as terras.

Lançamos então – éramos uns cinco ou seis pivetes, na faixa dos 14 ou 15 anos – um manifesto no Pirilampo, um jornalzinho estudantil que havíamos criado, em defesa da reforma agrária, solidamente fundamentado em Direito Constitucional. Era impresso na gráfica do Ponche Verde, de propriedade de Bernardo Munhoz, jornalista e fazendeiro. Na mesma semana, o jornal nos desancava em furioso editorial, assinado pelo Dr. Márcio Bazan. (Nas cidades do interior, todo bacharel se intitula doutor). O editorialista, advogado ao estilo antigo, em um texto pontilhado de muito latim, alertava a comunidade para os perigos do comunismo. O que preocupava as "forças vivas do município" era saber onde nós, pivetes, havíamos encontrado tantos argumentos jurídicos. Só podia ser coisa de comunista.

Não estavam longe da verdade. Naquela época, chegavam a Dom Pedrito dois exemplares do jornal Brasil, Urgente, editado em São Paulo por dominicanos de esquerda. Um dos exemplares era nosso, o outro do partido. Quem os distribuía era o Gerson Prabaldi, operário e militante, um dos raros comunistas que até hoje merece meu respeito. Funileiro, patrão de si próprio, lutava por uma sociedade mais justa, nada a ver com os filhos da classe média que fizeram carreira e fortuna montados nos ideais socialistas. Final de tarde, fechava a funilaria, pegava uma bicicleta e saía a fazer seu apostolado, o porta-cargas repleto de ideologia. Líamos as revistas China e Unión Soviética, em espanhol, mais aquele catecismo em edições mensais do PC, a revista Problemas, e muita imprensa de esquerda.

O funileiro acreditava na utopia e dedicava suas horas de lazer à construção do socialismo. Homem de uma era pré-televisiva, na qual mesmo os jornais que eventualmente chegavam a Dom Pedrito desconheciam o que se passava no mundo soviético, Gérson acreditava piamente nos panfletos vindos de Pequim ou Moscou. Fosse um dia ao paraíso que louvava, ou tivesse melhores fontes de informação, tenho certeza de que faria marcha à ré. Era homem desinformado, mas honesto. Em sua oficina, rodeado de pneus e aros de bicicletas, recebi minhas primeiras aulas de marxismo, baseadas em um livrinho de Georges Politzer, Curso de Filosofia - Princípios Fundamentais. Primeiras e primárias: sua argumentação simplória não me convencia. No entanto, este divulgador menor foi bastante significativo. Em sua tentativa de trocar em miúdos o marxismo para um público operário, Politzer despe a doutrina de sua retórica e a exibe em sua indigência.

Nem por isso deixo de admirar o apóstolo da bicicleta, apesar de sua visão simplista do mundo. Com sua assessoria, argumentos para debate ideológico ou constitucional era o que não nos faltava. Enquanto os oblatos nos falavam em corpo místico de Cristo, estávamos mergulhados em estudos de materialismo dialético. Hoje, sabemos que as duas religiões pouco diferem uma da outra. Na época, eu julgava estar manipulando um método científico para encontrar um pouco de luz em meio às trevas clericais. Esconjuradas as trevas, acabei jogando no lixo o suposto método científico. Foi precioso como instrumento de libertação de uma fé. Eu conseguira escapar de uma religião, com não pouco sofrimento. Não estava disposto a submeter-me ao jugo de outra.

No dia seguinte às catilinárias do Ponche Verde, estávamos batendo às portas do Dr. Munhoz, de Constituição e Lei de Imprensa em punho, indignados. Exigíamos direito de resposta, o que nos foi concedido. Apelávamos aos sentimentos cristãos da comunidade, talvez até antecipando a dita teologia da libertação. Título:

Exigência de Cristo:
amor aos comunistas


Para não fazer feio ante o latinista, jogamos cá e lá alguns datas venias e quousque tandens na réplica, mais ou menos ao azar, assim como quem joga sal em uma picanha. O artigo foi publicado, cercado de editoriais. Novo mistério, nosso conhecimento do latim dos juristas. O único a matar a charada foi o padre Francisco, outro oblato vindo da Alemanha, professor de matemática: "Focês non me enganan, focês lerram as páchinas finais do Aurrélio". Na época, havia uma edição do Aurélio com expressões latinas ao final. Mas pesquisa nunca foi pecado.

Em meio a réplicas e tréplicas, um de nossos professores de português começou uma frase com um pronome oblíquo. Fomos implacáveis: "Admoestamos o ínclito mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase". A resposta veio curta e grossa: "Rui Barbosa não foi presidente da República". Gerson Prabaldi voava em sua bicicleta, difundindo a polêmica. Me consta que as edições do semanário se esgotaram naqueles dias.

terça-feira, abril 13, 2004
 
MEU 1° DE ABRIL


Quando um acontecimento histórico faz aniversário em números redondos, ocorre o que os jornalistas chamam de efeméride. Foi o aconteceu no início deste mês, quando a dita Revolução de 1964 completou seus 40 anos. O leitor já deve ter notado que sempre busco fugir ao lugar-comum. Assim sendo, me abstive de contar o que estava fazendo no dia 1° de abril de 1964. Mas já recebi alguns mails exigindo o relatório e, já que estamos mais distantes da data - e do lugar-comum - vou contar. Aliás, já devo ter contado em crônicas passadas.

No dia 1° de abril, com a arrogância de um estudante de 17 anos - eu os completaria no dia seguinte - eu defendia bravamente as instituições democráticas, na sede do Sindicato dos Ferroviários, em Santa Maria, do ataque brutal dos militares. Trepado em uma mesa, eu deitava o verbo contra Lacerda, contra as Forças Armadas e contra os reacionários e golpistas em geral. Conclamava os operários à resistência contra o golpe e a eles oferecia o importante apoio da classe estudantil santamariense. Na época, se algum leitor está lembrado, a fórmula mágica para resistir a ditadura era a aliança estudantil-operário-camponesa. Verdade que a maioria dos estudantes jamais havia visto um camponês de perto, mas isto pouco importava. Havia também aquele outro slogan, povo unido jamais será vencido, refrões que repetíamos como mantras para exorcizar o mal.

Esperávamos, no sindicato, a tomada de posição do general Pope de Figueiredo, comandante da guarnição local. Confiávamos que, se a base aérea de Camobi, sediada em Santa Maria, tomasse o partido do povo, a ditadura estaria conjurada. Pois justo na hora em que eu discursava, com o ardor de meus 17 anos, chegou a tomada de posição do general Pope: trezentos homens armados, com baionetas caladas, cercaram o prédio, chamado pomposamente de Casa Rosada. Enquanto eu falava, o salão ia se esvaziando. Eu, que não sabia do que acontecia lá fora, desci da mesa muito sem graça, achando que meu discurso não estava convencendo ninguém.

Não era bem o caso. Mais convincente era a tomada de posição do general. Fiquei no prédio, com mais dez operários, um deles bêbado e armado com um facão. Queria enfrentar sozinho as baionetas. Tive de puxá-lo para dentro e fiquei me perguntando o que fazia ali. Ninguém foi preso, nem o seria, desde que abandonasse o prédio. Acabei indo embora, com a terrível sensação de herói ignorado, sem aplausos e nem mesmo vaias.

De atitudes como esta - ou semelhantes - se gabaram na semana passada escritores e cronistas de não poucos jornais. Eu, se por algum tempo me orgulhei de minha modesta participação nos acontecimentos daquele dia, hoje a deploro profundamente. Como todos os jovens, eu era um perfeito idiota. Seguia atrás de palavras de ordem, em geral oriundas de Pequim, Moscou ou Havana, e as defendia como quem defende uma verdade sagrada. Não sabia, na época, que guerrilheiros vinham sendo preparados em Cuba para, sob o comando de Julião, tomar o poder no país e transformá-lo em mais uma republiqueta atrelada a URSS. Era a segunda tentativa do Kremlin de tomar o poder no país. A primeira, fora a de 35, liderada por Luís Carlos Prestes e mais três ou quatro aventureiros internacionais.

Hoje, está mais que visto: não fossem os militares, estaríamos vivendo sob regime comunista. Com a queda do Brasil, não seria fácil de imaginar o Chile e Argentina, que já vinham sendo infiltrados pelos comunistas, sob o jugo de Moscou. Não seria também de duvidar que, com o continente latino-americano subjugado, o regime soviético tivesse mais alento e inclusive sobrevivesse mais algumas décadas. E não é demais afirmar que, sem a atitude dos militares em 64, o horror talvez tivesse dobrado a esquina do século.

Mas a vitória das Forças Armadas foi ilusória. Venceram a primeira batalha, é verdade. Mas perderam o combate. Hoje, transcorridas apenas quatro décadas, metade de uma vida de homem, menos que a ditadura de Fidel Castro, os militares foram jogados na famosa lata de lixo da História, com a pecha de vilões Os vilões da história não só tomaram o poder como posam de heróis e recebem régias aposentadorias, pelos (des)serviços prestados à Pátria. Os grandes vencedores de 64, costumo dizer, foram as esquerdas que, na época, pretendiam instalar no Brasil um regime soviético. Mas os tempos mudaram, o Muro caiu, a URSS afundou. Hoje, no poder, as esquerdas não têm mais moral para empunhar bandeiras socialistas.

Há quem creia, é verdade, que o Brasil de hoje se encaminha ao comunismo. Não acredito. Não há mais clima. Se o PT tivesse ganho em 1980, quando o mundo ainda tremia ante qualquer arroto da URSS, talvez. Agora é tarde, camaradas.

Naquele distante primeiro de abril, eu, idiota atroz, sem ser marxista nem membro do Partido Comunista, fazia o jogo dos marxistas e comunistas. Se alguém hoje ostenta tais bravatas com orgulho, eu as exibo com vergonha. Mas a vida é isso mesmo. Bom senso não é o quinhão dos jovens.

quarta-feira, abril 07, 2004
 
ASSIM SE PERDEM AS PERDIZES


Um leitor pergunta porque gosto de escrever sobre mim mesmo. Não é verdade. Prefiro escrever sobre uma escrivaninha, que é bem mais cômodo. Pergunta-me também como desenvolvo esta crônica.

Honestamente, não sei. Me dou por feliz, quando, ao sentar na mesa, já tenho o tema escolhido. Isto é, metade da crônica está feita. Uma vez sentado, não tenho idéia muito precisa do ponto de chegada. Muitas vezes penso ir a Paris e acabo chegando a Ponche Verde. Às vezes me preocupa uma reflexão sobre a História e acabo entrando num bar. E ao sair do bar o rumo é sempre incerto, como o é o desfecho da crônica. Como a desenvolvo?

Prefiro falar de perdizes.

O leitor já ouviu falar de mundéus? Se não nasceu no campo, mais precisamente na Campanha, certamente desconhece o que seja mundéu. É uma armadilha para perdizes. Sobre uma trilha de ovelhas faz-se uma pequena muralha de pedras, esterco, mio-mio ou chirca, de um palmo de altura e uns dois braços de homem de comprimento. Nas pontas da cerca, dois braços laterais saem um para cada lado, formando assim uma espécie de T, cortado por cima e por baixo. No centro do mundéu, por onde passa a trilha, há uma porteirinha.

Da porteira pende uma trança de rabo de cavalo, trançada de três ou torcida, mas sempre em forma de forca. A torcida é melhor, se fecha mais fácil. O mesmo não diria a perdiz, mas quem ocupa este espaço é o cronista e não ela. Só posso falar de meus pontos de vista.

Primeiro é necessário levantar a perdiz. A melhor hora é o nascer do sol, quando seus raios tornam brilhantes as babas-de-boi que se estendem de cardo a cardo. Não pode ser dia de vento. Nesses dias, a perdiz se amoita no primeiro alho-bravo que encontra e não quer saber de passeios, já se levanta voando. Outra hora boa é depois de um temporal, quando um cheiro de terra se ergue da terra e fica para sempre nas narinas de quem na infância com esse cheiro se embriagou. Outro cheiro que também marca para sempre é o cheiro de sanga ao entardecer. Mas falava de perdizes.

Para levantar a perdiz, basta passear pelo campo, de preferência a pé, assobiando em seu ritmo assustadiço. Ela ouve. Se está aninhada, levanta. Espicha o pescoço e responde. Está perdida.

Cabe agora ao caçador mangueá-la para o mundéu, o que exige grande conhecimento da psicologia das perdizes. As perdizes são desconfiadas por natureza. Para ganhar-lhes a confiança, o assobiador tem de ser melífluo, insinuante. Quando a perdiz assobia, o assobiador cala. Quando ela cala, eu respondo. Se ela está à direita do mundéu, vou caminhando de longe, para a esquerda. Como quem não quer nada, sempre assobiando, como se o mundéu nem existisse.

Um bom expediente é dar as costas para a perdiz, de mãos no bolso. A perdiz vê o assobiador de costas para ela e fica até despeitada. Ele não quer nada comigo, me deu as costas, pensa a perdiz. São ingênuas, as perdizes.

Se ela vai para a esquerda, sigo assobiando pela direita. A perdiz se desespera. Ele nem me quer. Eu assobio para um lado, ele assobia para o outro. E aí se perde a perdiz, pois o assobiador a ama e o amor é guerra. A perdiz entra na trilha. Logo adiante, está o mundéu. E a trança. Torcida.

Uma vez na trilha, mais amorosamente assobia o assobiador. Com tanto amor que a perdiz chega a assustar-se. Assobia agora nervosa, qual virgem se abrindo ao amado. Mulheres e perdizes em muito se parecem.

Entrou nos braços do mundéu. Só há uma saída, a trança, branca e redonda. Próximo à forca, o assobiador sempre deixa alguns grãos de trigo ou milho, tanto que ama a perdiz. Gorda é a laçada da trança. Magro é o pescoço da perdiz.
O assobiador abre os braços e grita, a perdiz voa e se enforca. Salvo engano, escrevi uma crônica. Ou algo parecido.