¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 14, 2004
 
O CONSTRUTOR DE MISTÉRIOS

Ney Messias*



Há grupos de trabalho investigando por todos os lados. Mas tudo que investigam diz respeito a bens vitais: a carne, o leite, o vestuário, as estradas, os viadutos. Se me perguntassem o que é que um grupo de trabalho deveria investigar com prioridade absoluta, responderia sem hesitar: a maneira mais fácil e urgente de construir mistérios. O grande mal do mundo é a ausência sistemática do misterioso, e a mania demasiadamente científica de desmanchar tudo aquilo que ainda apresenta uma face misteriosa. Claro que o grande sentido da vida é dado pelo mistério da decifração: não existe trabalho que não seja, em certo sentido, a procura da chave de uma charada. Pois se a vida é uma constante decifração do mistério, tão importante é o próprio ato de decifrar como a existência da coisa misteriosa.

Por isso os viventes estão divididos em duas espécies, os que decifram mistérios e os que criam mistérios. O grupo dos primeiros está aumentando, e diminuindo a falange dos segundos. Por isso estamos constantemente nos aborrecendo, e tentando, sobre os destroços dos mistérios destruídos, erguer outros para a nossa fome especial de incógnitas. Acreditamos nos discos voadores, na serpente do lago Ness e no Iéti, aquele abominável homem das neves, por absoluta necessidade de ter um mistério à disposição das nossas almas, um mistério que valorize a plana e tediosa sucessão de horas que nos consomem e dos bifes que consumimos.

Penso que haverá um dia de generalizar-se o uso da mescalina, da maconha e outros alucinógenos exatamente porque, com essas drogas, podemos penetrar em mundos desconhecidos e indecifráveis.

Não é nada difícil criar mistérios. Descobri isso quando era muito menino, ainda na época em que as crianças furtam os doces do armário misterioso da varanda. Foi assim: naquela época remota, e não de muitas abundâncias, abriram em minha casa uma lata de compota de abacaxi. Por qualquer motivo o doce ficou na própria lata, à espera da hora da janta. Quando foram servi-lo à noite, com espanto verificaram que a caldas toda tinha desaparecido, o abacaxi estava seco. Passei a escutar, então, as teorias mais desencontradas a respeito do fenômeno. Uma criada que tinha pavores noturnos, ligados sempre aos vampiros, levantou a hipótese de um animal desses ter sugado a calda. Minha mãe pensava que o suco tinha evaporado com o calor. Uma prima levantou a teorias, mais complexa, segundo a qual,em contato com o ar, o abacaxi mesmo se punha a sugar a sua própria calda, teoria que grangeou alguns adeptos, embora fosse evidente que a compota estava seca de verdade. E eu, que havia bebido de um sorvo só aquela calda, fiquei a assistir a cópia de teorias, aquela soma fabulosa de filosofias a respeito do fato de ter secado uma compota de abacaxi. Nunca esqueci o episódio, e é por isso que sei o quanto não é difícil criar mistérios, e o quanto é fácil destruí-los: bastava que eu dissesse que havias bebido a calda para destruir a graça daquela história.

E nisso que penso quando leio que o Chanceler da Cúria Metropolitana da Guanabara, cônego Castelo Branco, falando da substituição da tradicional hóstia pela broa, declarou reconhecer que as modificações introduzidas na missa irão a princípio chocar os católicos... mas "por outro lado, a Igreja conseguirá tirar do povo a impressão de mistério sobre seus ritos tradicionais". É bem assim que ele diz, não lamentando, mas gabando o afinco com que se põe a Igreja a espancar as brumas que coroam o seu lago de mistérios. Não tenho nada com isso. Apenas sorrio de quem se gaba de esfacelar mistérios, tanto mais quanto o que os esfacela é o mesmo que os deve guardar e preservar. Se lhe pudesse dizer pessoalmente alguma coisa diria que o único momento em que me senti sacerdote, e criador, foi aquele em que, menino, bebi às escondidas a calda de uma compota de abacaxi.

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* Ney Messias foi um dos mais brilhantes cronistas que o Brasil já teve. Como não participava de igrejas literárias ou ideológicas, morreu praticamente desconhecido, em Porto Alegre, em 1970. Boa parte das crônicas escritas enquanto agonizava
foram por mim compiladas na antologia O Construtor de Mistérios, hoje só encontradiça em sebos.