¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 11, 2004
 
TEÓLOGO RIDES AGAIN



Ano passado, surgiu no pensamento brasileiro mais um especialista em assuntos bíblicos. O novel teólogo chamava-se Luís Inácio Lula da Silva, e não esperou dez dias para deitar cátedra. Já no nono dia de governo, pontificou: "Não está escrito em lugar algum, nem mesmo na Bíblia, que alguém precisa ficar dias sem comer". Ora, além de o jejum ser preceito bíblico, a fome permeia o Livro de ponta a ponta. Na ocasião, comentei ser normal que um homem inculto ache que entende da Bíblia, só por ter ouvido trechos dela várias vezes no decorrer de sua vida. Já em um presidente, tal declaração depõe contra a cultura toda do país.

Na reunião internacional de prefeitos realizada sexta-feira passada em São Paulo, o exegeta atacou de novo. "Temos que pensar não só com a cabeça mas também com o coração", disse então aos presentes, ao destacar que os pobres do mundo esperam que lhes seja estendida uma mão que possa "garantir o direito bíblico e constitucional" de comer três vezes ao dia. O Supremo Apedeuta da nação mais uma vez fez jus ao título. Não só sua cabeça, como também seu coração, andam pensando torto.

No início de suas campanhas, com sua Weltanschaaung de pau-de-arara, prometia uma dieta de transatlântico de luxo: cinco refeições ao dia. Pelo menos está rumando à sensatez, hoje já fala em três. Quanto ao direito bíblico e constitucional de três refeições ao dia, parece que jornalista algum se preocupou em consultar a bíblia ou a constituição, para checar se o novel constitucionalista e teólogo se fundamenta em algum documento ao falar.

Comecemos pela Bíblia. "Três vezes no ano me celebrarás festa", diz o Livro. "Três vezes no ano todos os teus homens aparecerão diante do Senhor Deus". Quando Balaão espanca uma jumenta, o Senhor abre a sua boca, e a jumenta pergunta a Balaão: "Que te fiz eu, para que me espancasses estas três vezes?" Quando Balac, filho de Sefor, rei de Moab, julgando que Balaão não tem coragem de combater Israel com as armas, manda-o amaldiçoar o inimigo. Em vão: "Para amaldiçoares os meus inimigos é que te chamei; e eis que já três vezes os abençoaste". Diz Dalila a Sansão: "Já três vezes zombaste de mim, e ainda não me declaraste em que consiste a tua força".

O rei Davi lança-se sobre o rosto de seu amado Jônatas e inclina-se três vezes: "e beijaram-se um ao outro, e choraram ambos, mas Davi chorou muito mais". Salomão oferecia três vezes por ano holocaustos e ofertas pacíficas sobre o altar edificado ao Senhor. Quando Elias vê morrer o filho da viúva que o hospeda, estende-se sobre o menino três vezes, e clama: "Senhor meu Deus, faze que a vida deste menino torne a entrar nele". O Senhor ouve e o menino revive. Ameaçado pelos sírios, Jeoás, rei de Israel, consulta Eliseu. Este lhe diz para ferir com flechas a terra. "E ele a feriu três vezes, e cessou". Contra Jeoás se indigna o homem de Deus e diz: "Cinco ou seis vezes a deverias ter ferido; então feririas os sírios até os consumir; porém agora só três vezes ferirás os sírios". Jeoás fere três vezes Bene-Hadade, filho de Hazael, e recupera as cidades de Israel.

Dario, o medo, baixa decreto determinando que qualquer um que, pelo espaço de trinta dias, fizesse uma petição a qualquer deus, ou a qualquer homem, exceto a ele, o rei, fosse lançado na cova dos leões. Daniel, ao saber do edital, abria as janelas de seu quarto que davam para Jerusalém e "três vezes no dia se punha de joelhos e orava, e dava graças diante do seu Deus".
Disse Jesus a Pedro: "esta noite, antes que o galo cante três vezes me negarás". Quando Simão Pedro tem fome, um objeto desce do alto, no qual havia de todos os quadrúpedes e répteis da terra e aves do céu. Uma voz os manda matar e comer por três vezes. Simão Pedro não mata nem come e o objeto é recolhido aos céus.

Na segunda epístola aos coríntios, Paulo diz ter sido três vezes açoitado com varas, três vezes sofrido naufrágio, três vezes roga ao Senhor que dele afaste um emissário de Satanás. Você pode ler a Bíblia toda, do Gênesis ao Apocalipse, e em momento algum encontrará a tal de obrigação bíblica de comer três vezes ao dia.

Não satisfeito em posar de especialista em assuntos bíblicos, o Supremo Apedeuta ataca de constitucionalista, e qualifica as três refeições por dia de dever constitucional. Pego a bendita Constituição-cidadã de 88, tão precisa a ponto de especificar que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal (sic!). Só uma única vez, no artigo 93, aventa-se uma tríplice obrigação: a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento. E mais não diz.

Sobre refeições, nem um pio. Desde há muito defendo a tese de que um nordestino não resiste a proparoxítonas e polissílabos, vide Augusto dos Anjos. Onde consegue encaixar um vocábulo assim, encaixa-o sem perguntar-se pela pertinência ou não do que diz. É o que deve acontecido, quando falou no direito bíblico e constitucional de comer três vezes ao dia. A menos que prevaleça a tese de Larry Rohter, Leonel Brizola e Hector Babenco.

É espantoso como apenas duas palavras podem demonstrar a abissal incultura de um presidente. Adjetivos para Lula é como sal na salada. Ele os joga a torto e a direito em seus improvisos, sem importar-se onde caiam. Que profira tais sandices, entende-se. Faz parte de sua falta de leituras. O que não se entende é como toda a dita grande imprensa permaneça silente ante tais despautérios.