¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 01, 2004
 
PANGLOSS NO VATICANO



O papa João Paulo II afirmou recentemente, em Memória e Identidade, livro que acaba de lançar, que o comunismo pode ter sido "um mal necessário" do século XX. A obra é baseada em conversas particulares que o papa teve com dois filósofos poloneses no verão de 1993, quatro anos após a queda do comunismo na Europa oriental. Sua Santidade é um homem de extraordinária coragem intelectual. Lembra-nos Pangloss, o personagem de Voltaire, para quem tudo vai bem no melhor dos mundos.

Segundo Le Livre Noir du Communisme, de Stéphane Courtois et allia, no século passado o comunismo produziu nada menos que cem milhões de cadáveres. Isso em período não de cem anos, mas de sete décadas. As 846 páginas do livro tornam o relato cansativo. Basta, a meu ver, o resumo: URSS - 20 milhões de mortos; China - 65 milhões; Vietnã - 1 milhão; Coréia do Norte - 2 milhões; Cambodja - 2 milhões; Europa do Leste - 1 milhão; América Latina - 150 mil; África - 1,7 milhão Afeganistão - 1,5 milhão; movimento comunista internacional e PCs fora do poder - uma dezena de milhar de mortos.

Enfim, para um vice-deus, cem milhões de mortes não deve ser algo alarmante em um planeta que conta com seis bilhões de habitantes. No Gênesis, o desastre foi proporcionalmente maior. Morreu todo ser vivente, menos Noé, os seus e os animais de sua arca. Não foi nem genocídio. Foi pancídio, se é que a palavra existe. (Se não existe, eu a crio). Sem falar na hecatombe ecológica. Embora a Bíblia seja omissa sobre o assunto, é de supor-se que os peixes e demais seres marinhos tenham escapado da ira de Jeová. Para quem aceita sem restrições a fúria divina manifesta no dilúvio, cem milhões é café pequeno. É o que diria Pangloss.

Quando a Polônia e outros países do Leste Europeu caíram sob o domínio soviético, após a Segunda Guerra Mundial, considerou Sua Santidade: "Ficou claro para mim, de repente, que o comunismo duraria muito mais tempo do que durara o nazismo. Quanto tempo? Era difícil prever. O que éramos levados a crer era que esse mal era, em algum sentido, necessário para o mundo e para a humanidade. De fato, pode acontecer que, sob determinadas situações concretas da existência humana, o mal revele ser de alguma maneira útil - útil na medida em que cria oportunidades para o bem".

Há males que vêm para o bem, é o que quer nos dizer Sua Santidade. O mesmo não diriam poloneses, tcheco-eslovacos, húngaros e alemães orientais. Mas, se Paris vale uma missa, como disse Henrique de Navarra ao converter-se ao catolicismo, o triunfo da idéias democráticas vale bem toneladas de defuntos. Neste sentido, podemos concluir que o nazismo foi um mal providencial. Não fosse Hitler, não seria criado o Estado de Israel e os coitados dos hebreus viveriam em eterna diáspora, cumprindo a sina de Ahasverus, "o mísero Judeu, que tinha escrito na fronte o selo atroz", como escreve Castro Alves.

Misérrimo! Correu o mundo inteiro,
E no mundo tão grande... o forasteiro
Não teve onde... pousar.
Co'a mão vazia - viu a terra cheia.
O deserto negou-lhe - o grão de areia,
A gota d'água - rejeitou-lhe o mar.

Adolph Schicklgruber, ainda que por vias transversas, encontrou um território para Ahasverus. Teorias peregrinas chegam afirmar que os judeus já encontraram seu messias, o Schicklgruber. Há males que vêm para o bem, como diria Sua Santidade. Para construir Israel, nem foi preciso matar cem milhões. Seis milhões foram bastantes. Mesmo sem ter vivido na pele a diáspora, o vice-deus reconhece os efeitos benéficos do nazismo. Recordou a era em que a Polônia esteve sob ocupação nazista e quando ele estudou em segredo para tornar-se sacerdote. "O Senhor Deus permitiu que o nazismo existisse por doze anos, e após doze anos esse sistema caiu. Percebe-se que esse foi o limite imposto pela divina Providência àquele tipo de loucura". Embora não muito eqüitativa, a justiça divina é distributiva: aos poloneses concedeu apenas doze anos sob o nazismo, para quatro décadas sob o comunismo. A Polônia, penhorada, agradece tanto senso de misericórdia.

A Inquisição, então, foi mal necessaríssimo, segundo a ótica papal. Construiu a Res Publica Christiana, hoje chamada Europa, e consolidou o poder vaticano, emblema contemporâneo dos maiores faustos do mundo. Certo dia, em Toledo, quis visitar o Museu da Inquisição, na época lá instalado. Perguntei a uma toledana onde ficava, ela de bate-pronto me retrucou: por que o senhor não vai visitar nossa catedral? Ela é belíssima. A catedral eu já havia visitado, sua arquitetura majestosa sempre me faz chorar. Mas o que eu queria ver, daquela vez, eram os instrumentos que haviam possibilitado a ereção da catedral. A vontade é de vomitar. Difícil conceber o talento do humano engenho quando se trata de fazer o próximo sofrer. Mas, enfim, há males que vêm para o bem. Turista algum se comoveria hoje até as lágrimas, visitando aquele templo imponente, não fossem as torturas horrendas pelas quais passaram os homens da época que o erigiram.

Mas mal dos bons, mal divino mesmo , foi a ditadura de 64. Pelo menos para suas supostas vítimas. Em país algum do mundo os derrotados da História foram tão bem agraciados. A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça divulgou ontem mais uma lista de pessoas com direito a receber indenizações pelo período em que foram perseguidos pela ditadura militar. Para esse grupo de 76 pessoas que tiveram os resultados dos processos divulgados no Diário Oficial, a União vai pagar R$ 47,7 milhões.

O imortal Carlos Heitor Cony, por exemplo, em processo anterior, passou a ganhar a bagatela de 19 mil reais mensais pelos desserviços prestados ao país. É quantia para estimular a auto-estima não só de imortais, mas de qualquer mísero mortal. Os pedidos de indenização dos militantes, por terem sido impedidos de levar o país à tirania e à miséria, já são 43 mil. Estima-se que essas indenizações possam chegar a quatro bilhões de reais. Mais ainda: os contemplados pela generosidade estatal estão isentos do imposto de renda e contribuições à Previdência. Tais ônus são encargo de quem trabalha e sustenta estes marajás.
Entre os novos agraciados está o jornalista Hélio Fernandes, diretor do jornal Tribuna da Imprensa, que vai receber R$ 1,4 milhão como indenização, além de uma pensão de R$ 14,7 mil mensais como reparação econômica pelo período em que foi impedido de exercer a profissão. Isso sem falar no presidente da República, que se aposentou aos 42. Lula, que obteve a graça divina de passar trinta anos sem trabalhar, teve aposentadoria especial para anistiado político ? sem nunca ter sido anistiado, afinal nunca foi condenado. Concedida em 1996 e requerida um ano antes, o benefício, que hoje totaliza R$ 3.862,57, está devidamente isento do pagamento de imposto de renda. Há males que vêm muito, mas muito mesmo, para o bem. Mais do que Sua Santidade imagina. 1964 foi uma benção para os comunistas e compagnons de route tupiniquins.

Mas há bençãos e bençãos. Uma delas foi decorrente da vitória do PT nas últimas eleições presidenciais. Não fosse esta vitória, que hoje a todos enoja, o PT não teria ontem sido derrotado em capitais-chave como São Paulo e Porto Alegre. Deus não joga, mas em seus momentos de ócio fiscaliza.