¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 06, 2005
 
FAMINTOS DE FOMENTOS
A imprensa nos traz armadilhas que nem todo leitor desprevenido consegue evitar. Uma delas são os passarinhos em extinção. Outra, os movimentos de apoio à cultura. Difícil saber qual o mais safado e mais prejudicial aos cofres públicos.

Nos dias em que vivi no Paraná, durante semanas foi vedete dos noticiários televisivos um pequeno pássaro, uma espécie de pardal, que estaria ameaçado de extinção. Chamava-se curiango-do-banhado e habitava nos arredores de Curitiba. Durante longos minutos, o bichinho era exibido em seus ângulos mais simpáticos, sempre com a mensagem: corre perigo de extinção. Ano seguinte, foi a vez de uma nova espécie de tapaculo, da família Rhinocryptidae, batizada com o nome popular de macuquinho-da-várzea. Também vivia nos arredores de Curitiba. Algumas semanas mais tarde se soube ao que vinham o curiango-do-banhado e o macuquinho-da-várzea. Para preservá-los, era preciso preservar seu habitat natural. E para preservar seu habitat natural, as tais de ONGs fizeram uma ferrenha campanha para impedir a construção de uma barragem que abasteceria a capital paranaense.

Se os ongueiros conseguiram consumar o crime contra a cidade, não sei, pois acabei mudando de paragens. Mas toda vez que vejo a imagem de um adorável bichinho em extinção nos noticiários, fico com um pé atrás. Pois atrás do lindo animalzinho, há propósitos muito feios. O mesmo diga-se a respeito das comissões de intelectuais que procuram sensibilizar o governo em suas campanhas de "apoio à cultura".

Os mais useiros e vezeiros defensores da cultura são os cineastas e gente de teatro. Toda a vez que uma comissão destas máfias se reúne com autoridades governamentais, o fim é um só: pedir apoio para divulgarem suas artes. O governo, que não é bobo, sabe muito o que quer dizer apoio no jargão destes "artistas". Apoio é dinheiro público. Para o governo, que não produz dinheiro algum, tanto faz liberar alguns milhões para estes pedintes de elite. Passa por generoso, protetor da cultura e das artes, e abafa regougos de oposição nos jornais. Quem acaba apoiando a "cultura" - isto é, o dolce far niente dos artistas - é você, contribuinte. Que, se quiser assistir a alguma das "obras" que você mesmo financiou, tem de desembolsar mais alguns trocados de seu orçamento.

Ora, o rei financia só seus amigos e simpatizantes. Como os amigos do rei são sempre de esquerda, e sempre os mesmos, você acaba pagando para engolir panfletos - financiados por você mesmo, ainda que à sua revelia - que louvam doutrinas sanguinolentas e obsoletas do século XIX. Muitos filmes sequer encontram espaço para distribuição e vão direto para o pó dos arquivos. Mas produtores e diretores sempre levam o seu. Conseguem ainda uma graninha extra para propaganda no Exterior - sempre em nome da sacrossanta divulgação da cultura brasileira.

Se chegam a ser nomeados para algum prêmio internacional, é a glória. Mesmo sem levar prêmio algum, ajuntam a seus créditos: "selecionado para o Oscar", "selecionado para o Festival de Cannes", "selecionado para o Festival de Berlim", etc. Selecionado quer dizer que o filme não levou prêmio algum. Mas isto o leitor comum não percebe. Depois, é tratar de empurrar a "coisa" goela abaixo do público, através das cotas obrigatórias de exibição do cinema nacional.
Mesmo assim, as salas continuam vazias. Mas não o bolso dos produtores e diretores, que vivem e habitam como magnatas de Hollywood. Como? Graças à sua gentil e involuntária contribuição, caro leitor! Que atende pelo simpático pseudônimo de isenção fiscal para o fomento da cultura. São as leis Rouanet da vida, lei Sarney e quejandas. O governo isenta de imposto as empresas que financiam as ditas atividades culturais e depois tira de seu bolso o que deixou de receber das beneméritas empresas.

No caso do teatro, os pedintes são mais audazes e insistentes. Que eu saiba, hoje não se encena peça alguma no Brasil que seja financiada pela própria produção. Nossos homens de teatro, quais saúvas vorazes, se lançam com fúria à cata das magnânimas isenções, trate-se de uma produção de luxo ou de teatro mambembe. E ainda lhe cobram ingresso, quando a produção toda já foi paga por você mesmo. Se mesmo assim você ainda hesita em cair no engodo, promovem passeios turísticos às capitais, onde você tem direito a city tours, refeições em bons restaurantes, estada em hotéis de luxo... desde que vá assistir às "obras-primas" do bestunto nacional. O que explica a massa de caipiras engravatados do interior que você encontra nas salas de São Paulo, caso tenha tido a infeliz idéia de visitá-las. Claro que, para efeitos de isenção fiscal, tanto Xuxa quanto Gilberto Gil ou Julio Iglesias constituem cultura.

Não bastasse esta prática contumaz de assalto ao erário em nome da cultura, na semana passada um grupo de 600 artistas invadiu a Assembléia Legislativa de São Paulo, exigindo a votação de mais um projeto de lei que abriria caminho para a criação de mais um mecenato, o Fundo Estadual de Arte e Cultura. Os beneméritos artistas reivindicavam um orçamento de nada menos de R$ 115 milhões, para serem utilizados em três anos, que contemplariam nove áreas da produção artística. Como não o levaram, vaiaram os vereadores. Mas artista é paciente e infatigável. Mais ou cedo mais tarde, talvez mais perto de um período eleitoral, acabarão embolsando seus milhõezinhos.

Os escritores, praticantes de uma arte de produção mais barata, também nunca foram indiferentes a mordomias. É curioso ver a grande imprensa denunciar a corrupção vigente nos organismos estatais e jamais dizer uma palavrinha sobre a corrupção no mundo literário e nas universidades. Pois que outro nome poderia se usar para esta prática infame, a dos livros de leitura obrigatória, nas escolas e nos vestibulares, que só contemplam - e regiamente - os escritores amigos do poder? Já tivemos inclusive o caso de uma escritora - Lygia Fagundes Telles - participando de uma comissão que indicava tais livros e que não teve pejo algum de indicar um livro ... dela própria. Sua cotação no mercado editorial decolou em segundos.

Mas para os escritores, seres criativos por definição, corrupção pouca é bobagem. Ainda na semana passada, num salão de festas em São Paulo, empunhando Ezra Pound, quatro escritores defenderam a criação de mais um mecenato estatal: "Uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio. Depois de um certo tempo ela cessa de agir e apenas sobrevive". Com esta citação do escritor nazista americano, criaram o Movimento Literatura Urgente e redigiram o manifesto Temos Fome de Literatura. Que, assinado por 181 escritores famintos, foi encaminhado para o Coordenador do Programa Nacional do Livro, Leitura e Bibliotecas, Galeno Amorim. Não imagine o leitor que os escritores estivessem pedindo literatura para comer.

Nada disso. Querem é que o Fundo Nacional do Livro, Leitura e Bibliotecas, estudado pelo Ministério da Cultura, inclua uma pequena palavra em sua denominação - a palavrinha literatura - e, last but not least, destine 30% de seu orçamento para a criação literária. Famintos de fomentos, os escritores contemporâneos abdicam da independência intelectual (porque o Estado sempre cobra de volta) que sempre caracterizou a grande literatura, e se tornam reles mendigos que adoram viver da caridade pública. Mais um pouco e a palavra escritor vira palavrão - algo como prostituta das Letras - e entra na famigerada cartilha do Nilmário.

Atenção ao que lê, caro leitor. Quando ouvir falar de curiango-do-banhado, macuquinho-da-várzea, defesa do cinema nacional e fome de literatura, desconfie. Tem maracutaia atrás.