¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 18, 2005
 
CHANCE NA SORBONNE

Os grandes escritores sempre tentaram - mas nem sempre conseguiram - criar um personagem que sintetize uma coletividade ou, pelo menos, um certo tipo de seres. Jerzy Kozinski o conseguiu. Falo de Being There, traduzido no Brasil como O Vidiota.

Chance Gardiner, o personagem, é dos mais perturbadores de nossa época. Quem não leu o livro, pode ainda pegar o filme, que passou no Brasil com o título de Muito além do Jardim e tem uma interpretação magnífica de Peter Sellers. O tradutor brasileiro do livro teve um momento de iluminação ao traduzir o título americano por O Vidiota, isto é, o idiota do vídeo. Gardiner é o jardineiro de um misterioso senhor, identificado na obra como "o Velho". Chance vive recluso no jardim da mansão e só teve contato, em toda sua vida, com duas pessoas, o Velho e a criada do Velho. Chama-se Chance porque nasceu por acaso. Não sabe ler nem escrever. Seu único contato com o mundo exterior é através da televisão. Quando o que vê não lhe agrada, é simples: desliga o aparelho ou muda de canal com o controle remoto.

Morre o Velho e Chance é largado no mundo pelos herdeiros. Sem lenço nem documento, literalmente. Quando a esposa de um senador o atropela na rua e lhe pergunta quem é, diz: I?m the gardener. A mulher imediatamente o relaciona com algum milionário de sobrenome Gardiner, e nosso personagem passa a ser conhecido como Chance Gardiner. Como não portava nem dinheiro nem documentos, a mulher do senador considera que deve ser alguém muito importante e o recolhe à sua casa. Além do mais, vestia as antigas roupas do velho, que agora eram o must em termos de moda. Chance, sem jamais ter pensado no assunto, passa a fazer parte do círculo do poder. Certo dia, o senador recebe a visita do presidente dos Estados Unidos e o apresenta como economista.

- E você, Mr. Gardiner, o que pensa do mau clima na Bolsa? - pergunta o presidente a Chance.
Chance Gardiner, da vida só conhece o jardim onde se criou. Como se sente obrigado a uma resposta, fala da única coisa que conhece:
- Em um jardim, há uma estação para o crescimento das plantas. Há a primavera e o verão, mas também o outono e o inverno. E depois, a primavera e o verão voltam. Enquanto as raízes não forem cortadas, tudo está bem, e tudo continuará bem.
O presidente se mostra satisfeito:
- Mr. Gardiner, devo confessar que o que você acaba de dizer é uma das declarações mais reconfortantes e otimistas que me foi dado ouvir, desde há muito tempo.

Dia seguinte, o presidente fala em cadeia nacional e, ao discorrer sobre economia, cita a sábia observação de Gardiner. Jornalistas e serviços de segurança, CIA e FBI, se desesperam na busca de dados sobre o novo economista. Descobrem até o número de sua cueca, mas não encontram um único registro documental de sua existência. Estamos em plena Guerra Fria e os agentes americanos já começam a desconfiar da existência de alguma tramóia soviética. Mas também a KGB quer saber quem é o novo conselheiro do presidente e não chega a resultado algum.

Quem leu o livro ou viu o filme conhece o fim da história: a força de repetir chavões que ouviu na televisão, Chance faz uma brilhante carreira na mídia e começa a ser cogitado para presidente dos Estados Unidos. E quem não leu Kosinski, deve lê-lo imediatamente: é uma das mais profundas parábolas da literatura contemporânea. Estamos vivendo em plena época Gardiner, de ascensão do analfabeto. Com a televisão, qualquer iletrado pode ter uma idéia mais ou menos geral do que ocorre em torno a si e no mundo. A rigor, ninguém precisa mais ler para entender - ou supor que entende - o mundo.

Quem chegou até aqui, já intuiu de quem pretendo falar. Desde as primeiras candidaturas de Lula, vi no Supremo Apedeuta a mais perfeita encarnação do personagem de Kozinski. Venho afirmando isso há muitos anos, desde as primeiras candidaturas de Lula, e se hoje me repito é porque tenho consciência da frágil memória dos leitores.

De líder sindical no ABC paulistano, um nordestino analfabeto - manipulado pela Igreja Católica e pelos intelectuais uspianos, que ainda cultivam o velho sonho bolchevique de um presidente operário - foi crescendo até tornar-se a esperança de um país novo. Tenta três vezes a presidência da República e é por três vezes derrotado. Insiste e na quarta chega à Suprema Magistratura. Sem instrução alguma, sem leituras, sem nenhuma experiência administrativa, nem mesmo a gestão de uma padaria ou boteco, é saudado urbi et orbi como a Esperança não só do Brasil, mas da América Latina.

Se alguém objetava como poderia este ser tosco e despreparado gerir uma economia vasta e complexa como a brasileira, a resposta já estava na ponta da língua: basta que seja honesto e escolha bons assessores. A Esperança da América Latina escolheu então seus ministros. Para começar, elegeu como eminência parda um ex-terrorista com curso de guerrilha em Cuba. Os demais ministérios, distribuiu-os a comunistas, compagnons de route e companheiros de partidos que haviam sido rejeitado pelos eleitores de seus respectivos Estados.

O resultado aí está: um deputado federal - réu confesso de crimes eleitorais - lança uma série de denúncias, denúncias graves mas sem prova alguma, e os ministros da Esperança dos Oprimidos da Terra começam a cair como uma fileira de dominós. Denúncias vazias, conspiração das elites, resmunga a Esperança dos Povos. Mas porque então derrubar ministros e demitir assessores e militantes de seus cargos, se não há prova de crime algum?

Estamos vivendo dias de O Processo, de Kafka. Ninguém é culpado de nada e todos caem como moscas borrifadas com inseticida. As denúncias começaram com um magro achaque de três mil reais, que logo se revelou girar em torno de milhões e hoje já ultrapassa a casa do bilhão de reais. E o imbróglio está longe de seu fim. A Esperança dos Humildes, cúmplice da mais vasta rede de conspiração jamais vista na História do país, só não é destituído porque seus adversários querem vê-lo rastejando nas eleições de 2006.

Semana passada, Chance da Silva largou a crise à deriva e foi a Paris, para participar da dilapidação do dinheiro dos contribuintes, em nome de supostas comemorações culturais entre França e Brasil. Digo supostas comemorações culturais porque de cultura não se tratou, mas sim da promoção do show business tupiniquim. Lula saudou Jacques Chirac como grande estadista, logo Chirac que há uns vinte anos era insultado pelas esquerdas como homem de extrema direita. Chirac mandou o elevador de volta e distribuiu mimos similares ao Chance Gardiner de Garanhuns. Pois os europeus, e particularmente os franceses, adoram presidentes operários... desde que seja longe da Europa.

O Supremo Apedeuta fez, na ocasião - segundo a imprensa nossa - uma palestra na Universidade de Sorbonne. É de supor-se que até mesmo Lula tenha certeza de que fez uma palestra na Universidade de Sorbonne.

Jornalista, por ofício, é um homem bem informado e em verdade não podemos nos queixar do nível de informação de nossos profissionais de imprensa. E é exatamente isto que demonstra a ciclópica desinformação de nossos jornalistas. A Universidade de Sorbonne deixou de existir há exatos 37 anos. Morreu em 1968. Há quase quatro décadas. O que hoje existe são as universidades de Paris I, II, III... até Paris XII, creio. A única universidade a herdar o nome de Sorbonne é a Paris III, também conhecida com Université de la Sorbonne Nouvelle. O que existe hoje é o antigo prédio da Sorbonne, onde hoje funciona a Paris IV. O prédio, e nada mais.

O Gardiner tupiniquim deve ter-se sentido muito orgulhoso por ter saído de uma infância pobre em Garanhuns para deitar falação na Université de la Sorbonne. A Esperança das Nações, que de francês parece conhecer apenas duas palavras - merci bocu, pois assim deve soletrá-las em seu bestunto - talvez um dia rememore a seus netos o momento memorável de sua palestra na Universidade de Sorbonne, afinal assim a imprensa brasileira atesta. O pobre coitado, prisioneiro da língua e da própria insciência, deficiência inconcebível em um chefe de Estado, nem sabia onde estava. Idi Amin Dada, de triste memória, pelo menos falava inglês além de sua língua nativa.

A grande imprensa brasileira, ou quis ser gentil com o Supremo Apedeuta, ou talvez participe de boa parcela de sua ignorância. Outra explicação não há.