¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 12, 2006
 
EU, DEUS (1)


Já que tocamos no assunto... Sempre tive grande consideração por essas pessoas que o bom senso qualifica como loucas. Se encontro alguém que diz ser o filho de Deus, não discuto. Já não houve um que se assim apresentou e até hoje lidera milhões de gentes? Se alguém me aborda e diz estar chegando do planeta Orion, não ponho em dúvida sua afirmação. Me contento em perguntar como está o tempo por lá. Assim agindo, atraí não poucos "viajantes" em minha vida.

Tenho contado a história a amigos, mas é a primeira vez que a escrevo. Ela surgiu quando eu trabalhava em Paris. Meu endereço e telefone constavam ao final de cada crônica. Certo dia, recebi uma carta de Ojeriza, distrito de Não Me Toques, cidade gaúcha. A missivista dizia ter lido uma de minhas crônicas no cabeleireiro e achava que um cronista, ao receber um elogio por seu trabalho, deveria se sentir tão bem quanto uma mulher ao ser elogiada pelo penteado. Respondi, como fazia sempre, com um bilhete gentil.

Alguns dias depois, outra carta, nova resposta. Ela escrevia com elegância, caligrafia impecável, gótica. Via-se que lia muito e conhecia Nietzsche. Idade indefinível. Parecia jovem, mas o conhecimento que tinha de literatura me fazia intuir mais idade. Naquela época, fins dos 70, já era muito raro encontrar alguém jovem com maiores conhecimentos de letras. Fazia poemas, com o pseudônimo de Zuleika Berzelius. Chamava-se... bom, digamos H. H. A correspondência continuou e foi tomando uma conotação afetiva.

Um belo dia, a carta que me pôs em guarda: "Sou uma Cleópatra. Preciso de um grande homem ou de muitos pequenininhos". O Marcus Antonius aqui tratou logo de cair do barco. Me disponho a conversar com qualquer um desses "viajantes", aceito seus argumentos, mas não costumo passar recibo. Já tinha falado demais em minhas respostas e me encerrei no silêncio. Melhor continuasse respondendo. A correspondência aumentou, chegavam às vezes três, quatro e mesmo cinco cartas por dia. "Teu silêncio é divino", me escreveu em uma delas. O que eu não sabia era que a moça não estava falando por metáforas. Certo dia, recebi um cartão dela, postado em Recife.

Aí começaram os telefonemas na madrugada. Mantive a postura que sempre mantenho ante os malucos, converso como se estivesse falando com o mais normal dos seres. Afinal, se há gente que acredita em Deus, porque vou duvidar de alguém que me afirma ser algo bem mais viável como uma Cleópatra?

As cartas continuavam chegando. Ela havia descoberto sua missão na Terra: seria a mãe do novo Deus. E quem seria o pai? Eu, é claro, o Deus primevo. Me mandou inclusive uns recortes de Nostradamus, onde se podia intuir que o novo Rei - ou Deus, enfim, já que o novo Deus seria também o Rei cá da Terra - nasceria na França, filho de estrangeiro, e seria coroado em Reims e Aix-La-Provence. Eu era estrangeiro na França, estava em Paris e ela estava imbuída de uma missão. Os dados estavam lançados. Claro que a história me divertia. Os telefonemas foram tomando um caráter erótico. Ela antecipou, via Embratel, o que os franceses mais tarde chamariam de telephone rose. Seu sexo tinha nome, e terrífico: Viúva Negra. Eu, dando trela à moça. Tentava imaginar-lhe o perfil. Talvez fosse uma mulher nos seus 50 anos, com boa educação básica, talvez ex-freira ou algo pelo estilo, isolada no tal distrito de Ojeriza. Ou quem sabe, nada disso.

Certa madrugada, o xeque-mate. Que eu tinha de ir a Porto Alegre. Era urgente, vital para mim. Não podia dizer porque, eu tinha que confiar cegamente e partir no primeiro vôo. Permaneci em minha estratégia, a de não negar nenhum de seus argumentos. Acreditava que a viagem fosse vital, mas não podia viajar naqueles dias. Para encurtar o caso, avancei um argumento que me pareceu definitivo: "Que mais não seja, estou sem um vintém para viajar atualmente". Silêncio do outro lado da linha. "Ah, estás sem dinheiro?" "Estou". Ela conversou mais alguns minutos e desligou. Pelas horas de telefonia internacional, eu concluía que a moça teria algumas posses ou, pelo menos, boa folga financeira. Em geral, me telefonava do hotel Majestic, em Porto Alegre. Era o hotel que abrigava Mário Quintana. Hoje o prédio abriga um cabide de empregos, a Casa Mário Quintana.

Ela deve ter permanecido uma ou duas semanas em silêncio. Quando voltou, foi pra valer: "Estou com o dinheiro da tua passagem comigo. Para onde mando?" O que para mim até então fora um jogo divertido começava a tomar feições preocupantes. Aleguei que meu problema não era bem falta de grana, que estava envolvido com minha tese, que não estava cumprindo meu cronograma de pesquisas, em suma, não havia como viajar. Ela poetava? Pois deveria ter dificuldade para publicar seus poemas. Que reservasse então aquela grana para algo mais importante, a publicação de sua obra. Quanto a mim, voltaria ao Sul no ano seguinte e aí então poderíamos discutir sobre as tais coisas vitais.