¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 01, 2006
 
IN MEMORIAM



Meados dos anos 60. Eu estava chegando a Porto Alegre, onde fiz a mais importante de minhas universidades. Não, não foi a UFRGS. O curso de Filosofia não me trouxe maiores luzes. Me refiro ao que chamávamos de a República Popular e Democrática da Praça da Alfândega. Em resumo, a Praça da Alfândega, situada entre a livraria Globo e o prédio da Caldas Júnior. Numa das esquinas da praça, a banca do Martins, nosso assessor cultural, que nos nutria com jornais. À frente, a livraria Coletânea, do Arnaldo e do Brutus. Lá, sempre encontrávamos os últimos lançamentos da Argentina. Era um pequeno corredor, forrado de livros, que nos nutria a alma e aquecia o corpo, nas gélidas noites da Rua da Praia.

Naqueles dias em que se podia perambular à noite na Rua da Praia, sem risco de vida ou de assaltos, fazíamos plantão muitas vezes até às seis ou sete da matina. Discutíamos os destinos do mundo, ideologias, filosofia e religião, Platão e Tomás de Aquino. Last but not least, discutíamos esse ser tão semelhante e tão estranho, a mulher. Foi lá naquela ágora e não na universidade que tomei conhecimento dos melhores autores, da história do planetinha e do país e mesmo do marxismo. Na noite de sexta para sábado, lá pelas cinco estávamos ante a gráfica da Caldas, esperando os primeiros exemplares do Correião, ainda quentinhos da rotativa e com cheiro de álcool, para ler os debates do Caderno de Sábado.

Foi lá que conheci aquele esquivo lobo da estepe, sempre silente e absorto em si mesmo, olhando para o mundo com um ligeiro dar-de-ombros, o Mário Quintana. Flanava pela Praça como um fantasma mudo, sentava-se sozinho em um banco ou junto aos demais. Se interpelado, falava. Se não, continuava mudo. Se falava, era quase por monossílabos. Não era pessoa de diálogo fácil. Muitas vezes subi e desci a rua da Praia com o poeta, sem ter muito o quê dizer-lhe, apenas gozando de sua companhia. De dez em dez minutos, mais ou menos, largava uma frase, apenas a parte emersa do iceberg que portava dentro.

Nestes dias dos cem anos de seu nascimento, Quintana está na moda. Os jornais, que em sua vida foram avaros em dedicar-lhe uma linha que fosse, hoje concedem-lhe páginas inteiras. Nada como a morte para enaltecer um poeta. Quintana viveu quase toda sua vida em quase indigência. Em seus anos finais, recebeu hospedagem gratuita em um hotel do jogador de futebol Falcão e uma magra pensão do governo do Estado. Hoje, os editores forram as burras com sua obra. Os quintanares, saudados por Bandeira, tornaram-se mercadoria de boa vendagem e não passa dia sem que a rede Globo nos exiba imagens da vida do poeta. Não vendem tanto quando as novelas, mas a elas já foram equiparados.

Mais que poemas, Quintana tem momentos memoráveis. Quando quiseram erguer-lhe um busto em Alegrete, aceitou. Com a condição de que acrescentassem ao busto: "um engano em bronze é um engano eterno". É frase para permanecer ao longo das eras. Uma outra, de atroz misoginia: "pior que a mulher amada, é a volta da mulher amada".

Precisou morrer para ser respeitado. Pessoa também. Diga-se de passagem, o poeta gaúcho teve mais sorte que o luso. Conseguiu editar vários livros em vida, enquanto o português editou apenas um. Mas Pessoa já contava com isso. "A publicação é uma violação do gênio", escreveu.

Tornou-se leitura obrigatória nos currículos gaúchos. Mais um pouco, e será leitura também obrigatória nos nacionais. Acadêmicos receberão bolsas generosas para encontrar paralelos à sua obra em Roma, Paris ou Londres. Teses surgirão analisando a importância - ou desimportância - do pronome relativo na obra de Quintana. Já começa-se a discutir a gauchidade do poeta e mais dia menos dia os intelectuais do eixo Rio/São Paulo dirão que, apesar de gaúcho, Quintana era um bom poeta. À força de ser empurrado goela abaixo aos jovens, o poeta sutil se tornará tão enjoativo como óleo de rícino.

Ninguém pode obrigar ninguém a ler poesia. Ou dela nos aproximamos por necessidade interior, ou não nos aproximamos. Quando a universidade adota um poeta, está na hora de procurarmos outro.