¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 15, 2006
 
VIAJAR - RUMO AO SAARA




Sim, Estocolmo foi bom, Paris foi bom, Madri foi bom. Foram cidades em que vivi. Viajar é um pouco diferente. Se quiser falar das viagens que mais me fascinaram, não é fácil dizer qual fascinou mais. Hesito entre el Hoggar, no Saara argeliano, a navegação rumo ao Ártico pela costa da Noruega e a travessia de Punta Arenas a Ushuaia, pelos canais de Magalhães e Beagle, na Tierra del Fuego. Por uma questão de cronologia, começo pela Argélia.

São estranhos os fatores que nos levam para lá ou para cá. Meus desejos de deserto começam perto do Círculo Polar Ártico. Em Estocolmo, em um exercício de vocabulário de uma aula de sueco, soube que tinha como colega uma författarina. Isto é, uma escritora. Era suíça, elegante e charmosa, e chamava-se Federica de Cesco. Quantos livros havia escrito? Ah - me respondeu com certo enfado - mais de cinqüenta.

Fiquei com um pé atrás. Era bastante jovem, mais de cinqüenta livros me pareciam um exagero. Nunca havia visto uma författarina de perto, muito menos uma que tivesse escrito meia centena de livros. Passei no apartamento dela. Em uns dois metros de estante, ela tinha algumas das traduções de alguns de seus cinqüenta livros. Meu ceticismo caiu por terra. Perguntei qual considerava o mais importante deles.

- Ah! Só escrevo best-sellers. Nada de importante. Mas gosto muito deste aqui.

Passou-me um livro sobre el Hoggar, o país dos homens azuis. Falava da geografia dos tuaregues e harratines que habitam o extremo sul da Argélia. Havia na obra um certo deslumbramento de europeu em visita ao Terceiro Mundo. Mesmo assim, o livro incitava à viagem. O que me espantou naquele momento foi encontrar alguém que vivia de escrever, escrevia muito e não dava importância alguma ao que escrevia. Estava em Estocolmo paga por sua editora, para criar uma novela ambientada em aeroportos internacionais. Federica me deixava pasmo. A ela devo minha opção pela escritura. Se esta moça - pensei com meus botões - escreveu mais de cinqüenta livros e acha que só escreve bobagens, vou escrever pelo menos um, que não considero bobagem. Assim surgiu O Paraíso Sexual Democrata.

Paris, dezembro de 74. Estou lá com minha Baixinha adorada. Estamos em férias, com grana no bolso e uma pergunta na cabeça: daqui, para onde vamos? Lembrei-me da Cesco e respondi sem hesitar: para o Saara. Não costumo viajar em excursões, mas esse tipo de viagem não se faz sozinho. Passamos numa agência, compramos o pacote e fomos ao consulado argelino tratar dos vistos. Pepino: eu era jornalista e a Argélia socialista.

Naquela época, constava do passaporte brasileiro a profissão do portador. Eu tinha umas três ou quatro a escolher, mas sempre me pareceu que a um jornalista todas as portas estariam abertas. Assim, já no formulário para vistos, fui tascando: jornalista. O funcionário leu o formulário, examinou o passaporte, me tirou da fila e me conduziu a uma porta. Exultei. A profissão realmente abria portas. Me mostrou um arquivo de aço, abriu uma gaveta cheia de pastas.

- Olhe aqui. São mais de 400 pedidos de entrada no país de jornalistas. Estão à espera de visto há mais de seis meses.

Gelei. Já havia pagado o pacote e pagado caro. Senti meus dólares voando em meio a oásis e tempestades de areia. Meus sonhos de deserto se revelavam miragens. Com uma sensação de secura na boca, apostei tudo num blefe só.

- É que esse passaporte é antigo, Monsieur. Eu era jornalista. Não sou mais jornalista. Vivo atualmente como tradutor.

Milagre dos milagres, colou. O mundo, subitamente, readquiriu sentido e esperança e o homem do passaporte sorriu, como diria Pessoa. E meus dólares recuperaram seu valor. Mais tarde, tive outros problemas do gênero na Iugoslávia, até que finalmente o Brasil decidiu não mais registrar a profissão no passaporte.

Paris, Argel e de Argel voamos para Tamanrasset. Estávamos para aterrissar em Gardahia, o piloto pediu para atar cintos, o avião descia e eu não via nem cidade, nem aeroporto, nem pista alguma. Estaríamos a uns cinco metros do solo e eu só avistava areia. Apertei a mão da Baixinha e, serenamente, me preparei para o fim. É hoje - pensei.

Não era. Aeroporto no deserto é assim mesmo. Só areia, areia, areia e uma pista. Que surgiu, gloriosa, alguns segundos depois. Eram os dias da Aid-al-Kabir, celebração religiosa em que os muçulmanos lembram o sacrifício de Isaac por Abraão, degolando cordeiros. No aeroporto, um pequeno prédio ao final da pista, os peregrinos que voltavam de Meca eram esperados por Land Rovers, camelos e uma multidão de mulheres que faziam um alarido infernal, uivando com as mãos batendo na boca. Elas saudavam os peregrinos.

Este vôo me rendeu quatro anos de pânico ante a perspectiva de voar. Fui tomado por um medo irracional, como em geral são todos os medos. Se tinha de voar, três meses antes já não conseguia dormir bem. De pouco adiantava me avançarem estatísticas, que avião é meio de transporte seguro, muito mais seguro que automóvel. O que mais nos atemoriza é a impotência ante qualquer perspectiva de desastre. No automóvel, posso tentar reagir, tentar salvar-me talvez. Que mais não seja, estou na velha e boa terra. No avião, estou dez quilômetros longe dela.

Passei quatro anos panicado ante a idéia de voar, dizia. Cheguei até a perder algumas viagens. Se decididamente tinha de voar, derrubava uma garrafa de uísque antes de embarcar. Quando recebi uma bolsa em Paris, em 77, o governo francês me pagava duas passagens de avião. Agradeci e fui de navio, pagando de meu bolso. (O que não deixou de ter seus fascínios). Psicólogos oferecem cursos para perder o medo a voar, mas nunca depositei muita fé em psicólogos. Ou resolvia o problema por mim ou nunca mais voava.

Medo de voar, os psicólogos que me desculpem, não é nada mais nada menos que o ancestral medo da morte. O que precisa ser enfrentado não é o medo de voar, mas o de morrer. Este medo é típico de jovens, que temem partir antes de dar seu recado ao mundo. Com o tempo concluí que, se não desse meu recado ao mundo, tanto faz como tanto fez. El mundo sigue andando - como diz um tango - e dispensa recados. Ao aceitar a idéia de morte, passei a voar com prazer. Tínhamos até um sonho, a Baixinha e eu, morrermos juntos em um desastre aéreo. O que um dia foi fator de medo passou a ser algo desejável. Mas nem sempre se come pão quente. Ela partiu e eu cá estou, evocando nossos dias no deserto.