¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 25, 2006
 
O DIREITO DE MENTIR - UM DESABAFO



Caro Janer,

Nada tenho a retocar na sua argumentação quanto à diferença entre o direito de não se auto-incriminar e o dito "direito de mentir". Porém, gostaria de fazer um
alerta: pelo andar da carruagem, não duvide se este último vier a ser reconhecido e regulamentado pelos tribuNais. Apenas mais um caso da chamada criação jurisprudencial. Tenha-se em vista o seguinte julgado:

HABEAS. CORPUS. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. ATRIBUIÇÃO DESSE CRIME A PESSOA QUE JÁ FIGURA COMO RÉU NOUTRO PROCESSO, ONDE AO SER INTERROGADO BUSCOU LIVRAR-SE DA ACUSAÇÃO DE SONEGAÇÃO FISCAL ATRIBUINDO A ORIGEM DO FATO A "RETALIAÇÃO" DO DELEGADO DA RECEITA FEDERAL. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO, A MANDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, PARA INVESTIGAR EVENTUAL PREVARICAÇÃO DAQUELA AUTORIDADE FAZENDÁRIA, COM BASE EM TEOR DE INTERROGATÓRIO JUDICIAL. NATUREZA JURÍDICA DO INTERROGATÓRIO. POSSIBILIDADE DE O INTERROGANDO MENTIR SEM SANÇÕES. AUSÊNCIA DE DOLO DIRETO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL DETERMINADO. I - Depois que a Constituição Federal reconheceu ao acusado o pleno direito ao silêncio - sem qualquer conseqüência em seu desfavor, derrogando o art. 186 do CPP - no inc. LXIII, art. 5º, o interrogatório assumiu eminente feição de meio de defesa, pois o réu poderá calar-se, ou resolvendo falar, não se sujeita a qualquer compromisso de dizer a verdade pois no âmbito criminal ninguém pode ser compelido a fornecer provas contra si mesmo, de sorte que o réu, se quiser ser interrogado, poderá até mentir à vontade. Bem por isso, é incompatível com o dolo direto consistente na intenção de provocar instauração de inquérito policial ou processo judicial contra alguém, atribuindo-lhe falsamente um crime (exigido no tipo do art. 339) a mera intenção de se defender de uma imputação (animus deffendendi), que se enxerga em declarações de réu em interrogatório. II - Instauração de inquérito para investigar conduta funcional de agente fazendário que se atribui muito mais a açodamento do Ministério Público Federal diante de teor de interrogatório de réu, do que a conduta do paciente. III - Habeas Corpus concedido para trancar ação penal. (TRF3ª R. - HC 2000.03.00.026479-7 - SP - 5ª T. - Rel. Des. Fed. Johonsom di Salvo - DJU 05.06.2001) [destaques em negrito meus]

Este "poderá mentir à vontade" não está aí à toa. Muitos advogados entendem ser um direito do réu, defendem a tese em juízo e, pasme, até encontram julgadores que simpatizam com ela. Como contrapartida a este estado de coisas, há quem defenda a criação pelo legislador do crime de perjúrio. Caso venha a surgir este novo tipo legal, o réu ou fica calado ou diz a verdade, pois, se mentir, correrá o risco de responder por mais um crime.

Observe ainda a seguinte decisão:

APELAÇÃO. LATROCÍNIO E ROUBO QUALIFICADO. CONCURSO MATERIAL. 1º) INTERROGATÓRIO EM JUÍZO. NOMEAÇÃO DE CURADOR A ACUSADO MENOR E ADVERTÊNCIA DO ARTIGO 186 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL 2º) FIXAÇÃO DA PENA-BASE NO MÍNIMO LEGAL. APLICAÇÃO DE ATENUANTE. INCOMPORTABILIDADE. A nomeação de curador para acusado menor não deve recair, necessariamente, em advogado, sendo possível a escolha de qualquer pessoa idônea para suprir, com sua maior experiência de vida, a presumível imaturidade do interrogado. Sendo o interrogatório um meio de defesa, o acusado pode mentir e negar a verdade. Não há um verdadeiro direito de mentir, tanto que as eventuais contradições em seu depoimento podem ser apontadas para retirar qualquer credibilidade das suas respostas. Não há que se falar em aplicação da atenuante quando, para um dos crimes, a pena-base foi fixada no mínimo legal. Recurso conhecido e improvido. (TJGO - ACrim 20877-5/213 - 1ª C.Crim. - Rel. Des. Elcy Santos de Melo - DJGO 20.04.2001)

De fato, não há (ainda) "um verdadeiro direito de mentir", mas, acredite, a discussão já está posta.

Se quiser ter uma idéia de como vem evoluindo (ou regredindo!) o Direito Penal e o Direito Processsual Penal neste nosso Brasil, sobretudo por obra e graça de advogados criminalistas ditos progressitas e modernos, sugiro o livro Crime e Castigo: Reflexões Politicamente Incorretas. Nele, há decisões judiciais que vão da comédia à tragédia. "Ad cautelam" - para usar o típico latim jurídico - eis que se trata de uma mera recomendação, não propaganda. OK?

Mas para saber que algo não vai bem com nosso Ordenamento Jurídico, ou, pelo menos, com certas interpretações da lei, nem precisa trocar suas costumeiras leituras por um livro desta natureza. Basta lembrar algumas decisões do próprio Supremo Tribunal Federal.

A primeira delas que saliento diz respeito à proibição do depoimento do caseiro Francenildo, sob o argumento de que este não possuía "condições culturais" para tanto. Ora, via de regra, não se proíbe uma testemunha de falar. Na verdade, nunca vi. Se esta mente, responde por um crime (falso testemunho). Diferente do réu, portanto, confere? Se aquela não conhece os fatos, diz que não sabe e pronto. Além disso, independente das "condições culturais" da testemunha, esta poderia responder a indagações de possível interesse para esclarecimento dos fatos, como se viu ou não bicheiros no local ou, mais simples ainda, se ouviu alguém falar sobre jogo do bicho, quem, etc.

Outra decisão que recordo aqui foi a votação por 6 X 5 que praticamente derrubou a chamada lei dos crimes hediondos. Por apenas um voto, uma lei que vinha sendo aplicada, ainda que com controvérsias, há quase vinte anos, foi posta na lona. Não bastasse, logo apareceram advogados sugerindo responsabilizar o Estado para pedir indenizações para seus clientes (de traficantes a estupradores) que ficaram mais tempo cumprindo pena em regime fechado do que seria "o correto". Confesso, porém, que desconheço se algum julgador abraçou esta tese de indenizar os pobres réus que cometeram crimes hediondos. Ah, antes que eu esqueça: uma das controvérsias na aplicação da dita lei se refere ao fato de que esta expressamente fala em cumprimento da pena em regime integralmente fechado, mas alguns juízes escreviam inicialmente e, mesmo sem maiores justificativas, por esta mera troca de palavras, o réu ganhava a progressão de regime. Quando falo em troca de palavras não é exagero. Imagine-se que o douto magistrado já tinha um modelo de sentença para crimes menores e resolveu aproveitá-lo no caso de um crime hediondo. Se no colar/copiar esqueceu de trocar o inicialmente pelo integralmente, já era!

Desculpe se fui prolixo ou cansativo, mas é também um desabafo! Por fim, se quer um último exemplo, ainda que fora da área criminal, recorde seu texto "Não sei se você notou..." em http://www.midiasemmascara.org/artigo.php?sid=2495

Que Deus (mesmo você não acreditando) nos proteja!

Um abraço,
Cledson