¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, janeiro 25, 2007
 
CHEZ MOI



Quando o leitor estiver lendo esta, estarei refestelado em alguma terrasse em Paris, talvez numa manhã ensolarada, sob uma temperatura de uns dez graus, com uma Leffe em punho e livros e jornais do dia sobre a mesa. Esta é minha concepção de paraíso. Se a vida lá nas altas esferas for assim, até posso repensar minhas posturas atéias. Desde que a imprensa celestial seja livre, é claro. Porque a ler o Osservatore Romano todo santo dia prefiro as chamas do inferno.

Leffe, se alguém não sabe, é uma cerveja belga, minha predileta. Tem três versões: blonde, brune, triple e radieuse. A meu lado estarão duas amigas, por coincidência uma blonde e a outra brune, para melhor combinar com as Leffe. Viajar sozinho não tem graça. Há quem goste. Não é meu caso. Me sinto mal quando estou cercado de coisas que me encantam e não tenho com quem dividi-las. O leitor que ainda não viajou deve estar me invejando.

Mas quem o inveja, no fundo, sou eu. Paris é meu segundo lar. Vivi quatro anos nesta cidade, apenas um ano a menos que em Dom Pedrito, onde fiz meu ginásio. Nos últimos 35 anos, devo ter estado aqui pelo menos em 30. Me sinto em casa. Já nem vejo a Notre Dame ou Tour Eiffel quando passo por elas. Certa vez, numa dessas idas e vindas, minha Baixinha adorada me observou: "Notaste que estás passando frente à Notre Dame?" Não, eu nem havia notado. Era como se sempre tivesse passado por ali. Paris tem para mim uma sensação de déjà-vu.

O deslumbramento daquela tarde, em 1971, quando fui entrando de trem, pouco a pouco, na cidade, morreu e morreu para sempre. A arquitetura antiga, os telhados e chaminés, conferiam com as lembranças de meu imaginário, nutrido pelos Mistérios de Paris, de Eugène Sue. A Paris dos romances de capa e espada, dos três mosqueteiros, desfilava com vagar ante meus olhos. Em verdade, não seria exagerado afirmar que Paris, mesmo para o viajor iniciante, terá sempre um ar de déjà-vu. As imagens de Paris são universais e estão no inconsciente de praticamente todos os mortais. Sob os telhados e chaminés havia, é claro, uma outra Paris, moderna e agitada, que já não era a dos romances de capa e espada. Mas a primeira impressão batia com os antigos relatos.

Invejo quem ainda não conhece Paris, dizia. Chegar lá pela primeira vez é sensação que se tem uma só vez na vida, eu já a tive e nunca mais a terei. É algo que se deve fazer preferentemente quando jovem. Por uma razão muito simples. Se você já chegar velho em Paris, será tomado por um arrependimento doloroso: "meu Deus, por que não vim antes?"

As melhores refeições de meus dias parisienses, eu as tive graças ... a um quadro comunista gaúcho. Era médico, dono de um hospital e a cada ano viajava à Europa, ora com a própria mulher, ora com uma scort a tiracolo. Me convidava para restaurantes que meu magro orçamento de bolsista não permitia. E assumia a conta com prazer. No fundo, acho que gostava de minhas críticas ao comunismo. Perguntei-lhe, certa vez: por que os homens viajam? Respondeu-me:

- Os homens viajam para comer.

Matutei durante muitos anos sobre esta resposta, dita com a segurança de autoridade no assunto. Na época, eu imaginava que os homens viajavam atrás de mulheres fascinantes, pois foram elas que me levaram à Suécia. Com a passagem dos anos, quem sabe aprender aprende. (Ou não aprende nunca mais). Certa vez, me perguntava um jovem como eram as mulheres em Paris. Bom, respondi, têm dois braços, duas pernas, um par de seios e outro de nádegas, uma cabeça e tronco, um rosto, dois olhos nos quais às vezes temos vontade de naufragar, conversam como araras quando gostam de com quem estão conversando, riem quando acham graça, gemem quando sofrem ou amam. Viaje por onde quiser e o fenômeno será sempre o mesmo.

Já um Pata Negra, um cochinillo, um cordero lechal ou pascual, na Espanha, uma cataplana de frutos do mar em Lisboa, um boudin aux pommes ou umas andouilletes em Paris, um cotechino ou um culatello di Zibello na Itália, comer salmão ou arenque no café da manhã nos países do Norte, degustar um surströmming na Suécia (desaconselho a quem não é chegado a emoções fortes) - para isto é preciso viajar. Os franceses têm um conceito que me agrada muito, é o de cuisine du terroir. São as cozinhas regionais. Quando ouço falar em cozinha internacional, só posso entender aquela cozinha abominável que as empresas aéreas oferecem aos clientes, quando voam a dez mil metros de altura entre um continente e outro. Cozinha internacional é como deus: não existe. E se alguém me fala com entusiasmo de cozinha internacional, eu o deploro. Passou pela vida e não comeu.

Não que eu seja um glutão. Nada disso. Como muito pouco. Mas gosto de experimentar o que não conheço. Ainda não tive a chance de degustar os famigerados ovos de mil anos dos chineses. Suponho que, pelo menos por curiosidade, os enfrentaria. Tampouco imagine o leitor que entre mulher e comer, prefiro a comida, nada disso. Se tivesse de optar entre uma coisa e outra, morreria feliz de fome. Mas o turismo gastronômico sempre foi mais intenso que o sexual. Turismo sexual é coisa de bobalhões que ainda não entenderam que a mulher mais interessante é a que está a nosso lado.

Em meus primeiros anos na Europa, sentei o traseiro em universidades e bibliotecas, freqüentei cinematecas e museus, ouvi palestras e fui a exposições. Estes tempos são findos. Nos últimos quinze ou vinte anos, tenho me dedicado à flânerie, este prazer que há muito perdemos nas cidades brasileiras. Flanar por ruas e vielas, curtir a arquitetura e as cores locais, sair de um café e rumar a outro, e ler ? sobretudo ler ? cardápios. O cardápio, esse singelo papelucho que recebemos nos restaurantes, é uma revolução na história da restauração. Se antes os comensais tinham de comer indistintamente o que havia nas tables d?hôte, com a introdução do cardápio operou-se o milagre: em uma mesa de quatro pessoas, cada uma delas pode comer uma cozinha distinta.

Considero os restaurantes uma das mais gratas invenções da humanidade. Você chega em um país estranho, onde não conhece ninguém, e lá encontra uma equipe de funcionários prontos a recebê-lo com fidalguia e com a melhor cozinha e bebida do país. A humanidade precisou de séculos para chegar lá. Nestes dias, revisitarei com gosto estas grandes invenções da humanidade. Penso até mesmo revisitar em Madri alguns museus que adoro, los Museos del Jamón. Jamón, em espanhol, é presunto. É uma cadeia de restaurantes, cujos tetos e paredes estão forrados de presuntos. Sob os presuntos, comemos, bebemos, conversamos e namoramos. Certa vez, li num jornal a notícia de que um homem morrera soterrado por presuntos. Só pode ser na Espanha, pensei. Era.

Não deve ser morte desagradável, morrer sob o odor dos Pata Negra. Bom, não pretendo ser soterrado por presuntos. Apenas curtir esta vida da forma que me parece a mais requintada. Viajando. Salud, leitor!