¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, março 15, 2007
 
CUIDADO: PASTOR ALEMÃO SEM FOCINHEIRA



O cronista católico conservador Reinaldo Azevedo escreveu na Veja on line:

Conforme se podia ver no site do Corriere della Sera já no começo da noite, Bento 16 havia dito que o segundo casamento era "una vera piaga" para os cristãos. "Piaga" quer dizer "chaga", "ferida", jamais "praga', como se traduziu no Brasil. Manchete da Folha: "2º casamento é uma praga, diz papa" - não diz. "Papa chama segundo casamento de praga social", afirma o Estadão na primeira página - não chama. 'Para Bento XVI, 2º casamento é 'praga'", informa O Globo na página 29 - não é. Uma das orações de São Bernardo para alcançar uma graça diz assim: "Dilettissimo Signore mio Gesù Cristo, mansueto Agnello di Dio, io povero peccatore Ti adoro e considero la dolorosissima piaga (...)" É uma referência à "dolorosíssima chaga" de Jesus Cristo, jamais à sua "dolorosíssima praga". O que não ficaria nem bem...

Não é verdade. Ou Reinaldo Azevedo conhece o italiano e mente. Ou não se deu ao trabalho de procurar um dicionário. Bento XVI usou de mão pesada em relação aos divorciados católicos. Seu fiel seguidor quer dourar a pílula. Piaga também quer dizer praga. Tem também o sentido, em italiano, de grave danno, flagello, rovina: La droga è una delle più grave piaghe sociali. Le piaghe d'Egitto, secondo la Bibbia, le dieci calamita con cui Dio punì gli egizi che tenevano in schiavitù gli hebrei.

O papa usou uma palavra que admite os dois sentidos, praga ou chaga. Não pode queixar-se que traduzam por praga. O que dá no mesmo: ambas as palavras têm sentido pejorativo. Por mais dolorosissima que seja a piaga do Cristo, chaga não é coisa de que alguém se orgulhe. Exceto talvez os católicos, que têm como logotipo um instrumento de tortura.

Azevedo usou mais ou menos o expediente de Maimônides:

"Segundo Maimônides - escreveu Espinosa - cada trecho da Escritura pode ter vários sentidos e até mesmo sentidos opostos, e não podemos conhecer o verdadeiro sentido de qualquer trecho a não ser que saibamos que, tal como o interpretamos, ele nada contém que esteja em desacordo ou em contradição com a Razão. Se, tomado em seu sentido literal e por mais claro que pareça, algum trecho estiver em contradição com a Razão, convirá interpretá-lo de outra forma".

É o que chamo de linguagem de profeta. Swift apanhou muito bem esta malandragem nas Viagens de Gulliver, quando comenta a guerra deflagrada entre Lilipute e Blefuscu por uma gravíssima questão. Segundo os liliputianos, todos

concordavam que a maneira primitiva de partir os ovos antes de serem comidos, era bater com eles no rebordo de qualquer prato ou copo; mas o avô de Sua Majestade imperial, em criança, estando para comer um ovo, teve a infelicidade de cortar um dedo, o que deu motivo a que o imperador, seu pai, lavrasse um decreto, em que ordenava aos seus súditos, sob graves penas, que partissem os ovos pela extremidade mais delgada. Este decreto irritou tanto o povo, que consoante narram os nossos cronistas, houve por essa época seis revoltas, em uma das quais um imperador perdeu a coroa. Estas questiúnculas intestinas foram sempre fomentadas pelos soberanos de Blefuscu e, quando as sublevações foram sufocadas, os culpados refugiaram-se neste império. Pelas estatísticas que se fizeram, onze mil homens, em diversas épocas, preferiram morrer a submeter-se ao decreto de partir os ovos pela extremidade mais delgada. Foram escritas e publicadas centenas de volumosos livros acerca deste assunto; mas os livros que defendiam o modo de partir os ovos pela extremidade mais grossa foram proibidos desde logo, e todo o seu partido foi declarado incapaz de exercer qualquer função pública.

Os imperadores de Blefuscu fizeram freqüentes recriminações por intermédio dos seus embaixadores, acusando os liliputianos de praticar um crime, violando um preceito fundamental do nosso grande profeta Lustrogg, no quinquagésimo quarto capítulo de Blundecral (que era o lá o Corão deles). Isto, porém, foi considerado como uma simples interpretação do sentido do texto, cujos termos eram: que todos os fiéis quebrem os ovos pela extremidade mais conveniente.

Foi mais ou menos o que Bento XVI fez: os fiéis que decidam qual a ponta conveniente. Praga ou chaga, faltou diplomacia ao Vaticano. O pastor alemão está solto. E sem focinheira.