¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 22, 2007
 
MEDICINA E CATOLICISMO



Discutia eu outro dia, pela Internet, a condição de jornalista. Falávamos de um jornalista católico chapa-branca, que hoje escreve na Veja, e não perde oportunidade de fazer proselitismo. A meu ver, um jornalista não pode ser católico. Não me refiro, bem entendido, àquele tipo de católico francês que comentei em crônica passada. Lá, segundo recente pesquisa, apenas um católico em cada dois crê em Deus. Tampouco me refiro ao Brasil. Segundo o Vaticano, 84% dos brasileiros são católicos. Segundo pesquisa também recente, 51% dos brasileiros sequer sabem o nome do papa.

Não, não me refiro a estes católicos de fachada. Penso naquele que conhece profundamente sua fé, que sabe o que é um dogma e que tem ciência de todos os dogmas, que conhece o magistério da Igreja e a ele obedece. São raros, mas existem. Este não pode ser jornalista. Católico sendo, ele terá de crer firmemente nos dogmas da virgindade de Maria, da ascensão de Maria aos Céus, na divindade do Cristo, na Santíssima Trindade, na transubstanciação da carne e outros menos prestigiosos. Obviamente, não podemos conferir credibilidade alguma a quem acredita em tais potocas.

Palavra puxa palavra e alguém objetou que também devo ter restrições a médicos ou engenheiros católicos. A objeção, aparentemente sem sentido, foi muito oportuna. Não vejo muito o que objetar a engenheiros católicos. Que façam seus cálculos corretamente, é o mínimo que exijo de um engenheiro. Pelo que me consta, até agora ninguém criou uma matemática católica por oposição a eventuais matemáticas atéias ou protestantes. Quanto a médicos católicos, tenho minhas restrições, sim senhor.

Quando busco um médico, é claro que não me pergunto por sua fé. Em geral, vou por recomendações. Se não as tenho, busco ao azar. Neste caso, meu primeiro critério é que seu consultório fique perto de onde moro. No entanto, quando observo que um viés católico interfere nas prescrições médicas, caio fora. Já aconteceu. Nos estertores do século passado, passei dois anos sem beber uma gota de álcool. Proibição de uma médica... católica. Tive de mudar até mesmo meus hábitos diários, a geografia que percorria em meu bairro. Abandonei meus bares e amigos, pois não suportava, estando sóbrio, participar de uma mesa em que todos bebiam. Passei a freqüentar cafés de senhoras judias, tomar chás e comer biscoitos, em suma, perdi boa parte do prazer de viver. Até o dia em que me perguntei: será mesmo que não posso beber? Busquei outra médica. Ela, que não professava religião alguma, me liberou para os antigos prazeres. E minha vida voltou a ter sentido. O pior momento da médica católica era quando dela me despedia. Me dizia: "vá com Deus". A impressão que me ficava é que a ciência nada mais podia fazer por mim.

Quando vivia em Santa Catarina, tive outro conflito com um destes senhores. Ao saber que eu ia para Paris, recomendou-me: nada de vinho, nada de foie gras, nada de boudins, cuidado com os queijos. Coincidiu que eu viajava em dias de meu aniversário e meus amigos em Paris me receberam com tudo: muito vinho, muito foie gras, muito camembert. Eu, temeroso, apenas beliscava um pouquinho de cada coisa. Me mantive sóbrio, comedido, o tempo todo. Ao voltar, compro um Nouvel Obs como leitura de bordo. Reportagem de capa: "Le Paradoxe du Périgord".

É um paradoxo até hoje não explicado pela literatura médica. No Périgord, uma das regiões da França onde mais se bebe vinho, onde mais se consome patês e queijos, seus habitantes têm uma saúde cardiovascular invejável. Voltei a meu médico de Nouvel Obs em punho. "Conhece o paradoxo do Périgord, Dr?" Não conhecia. Alegou que não lia francês. "Tudo bem, eu traduzo". E fui traduzindo. Depoimentos médicos asseguravam não haver nada demais em meia garrafa de vinho às refeições. Ou em duas doses de uísque por dia. E recomendavam, inclusive, misturar um pouco de boudin no leite das crianças.

Meu médico teve de render-se aos depoimentos de seus pares. De fato, me disse, o álcool, em doses moderadas, é benéfico ao coração. "Mas não podemos dizer isso, sob risco de induzir pacientes ao alcoolismo". Pode ser. O fato é que ele era católico. E catolicismo significa renúncia ao que de bom a vida tem. Este tipo de médico busca exercer poder sobre seu cliente. E se você é tímido e não negocia, terá uma existência muito sem sabor pela frente.

Quando busco um médico, não é para ouvir preceitos éticos. Ética, eu tenho a minha e convivo muito bem com ela. Em um médico, busco avaliações médicas. Aos 60 anos, uma pessoa já tem uma boa experiência de médicos. Outra constatação que fiz em minhas décadas de consultórios, é que há uma diferença bastante significativa entre médicos formados nos Estados Unidos e médicos formados na Europa. Dificilmente estes últimos farão restrições rigorosas ao vinho. Eles se formaram em países em que o vinho faz parte da alimentação. Um operário francês ou espanhol, ao almoçar, em geral terá em sua mesa um meio litro - ou mesmo uma garrafa - de vinho. Faz parte da vida. Nem por isso estão caindo aos magotes de cirrose ou delirium tremens.

O paradoxo do Périgord só pode ocorrer na Europa. Já os formados nos Estados Unidos, em geral, querem proibir qualquer gota de álcool. Um gastro de Curitiba, formado nos States, é claro, me dizia: a dose permissível de cerveja é meio copo por dia. Ora, Dr - respondi - meio copo de cerveja não existe. Que ele tivesse suas restrições ao álcool, tudo bem. Que meio copo de cerveja possa prejudicar um cirrótico, entendo. Mas não venha um médico me dizer que a dose permissível de cerveja é meio copo por dia.

Claro que se eu precisar de um cirurgião, não vou me perguntar por sua fé, mas por sua competência. Mas em tratamentos continuados ou em casos extremos, o catolicismo vai interferir. Se eu optar por eutanásia - seja para mim, seja por vontade de pessoa próxima - ele, se for católico, por coerência terá de se recusar. Já aconteceu em minha família e o resultado foi desastroso, uma pessoa vivendo quatro anos como vegetal.

Há médicos que, em nome de uma ética católica, se recusam a prescrever anticoncepcionais. Se um dia o aborto for legalizado no Brasil, teremos legiões de médicos que se recusarão a praticá-lo. Será uma objeção de consciência e não podemos exigir de um profissional que faça algo que fira seus princípios. Mas isto é a religião interferindo no exercício da medicina.

Se não tiver a suprema ventura de morrer em acidente rápido, confesso que não quero esse tipo de médico perto de meu leito no hospital.