¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 13, 2007
 
FALTA A PÁ DE CAL



Já falei de minha viagem à Romênia, em 1981, durante a ditadura de Ceaucescu, oito anos antes da queda do Muro e dez anos antes do desmoronamento da URSS. Foi a pior das viagens que fiz e, ao mesmo tempo, a mais importante.

A pior viagem, pelo desconforto. Estava em um hotel de primeira classe. (Nos países socialistas, os hotéis eram de primeira ou de segunda classe, nenhuma classificação a mais). Estava em um dos melhores hotéis do país, pagava em dólares e, na hora de comer, não tinha muita opção. No almoço, me davam um papelucho mimeografado e sujo, para optar entre frango ou porco na janta. De nada adiantava escolher frango. Só tinha porco. Para o café, eu tinha de escolher entre café ou chá. De nada adiantava escolher café. Só tinha chá. E da China. Quanto ao açúcar, uma pedrinha. Para conseguir duas, só subornando o garçom. O leitor pode então ter uma idéia de como vivia o cidadão romeno que, sob o tacão de Ceaucescu, nem tinha como reclamar.

A mais importante viagem, pela experiência de ver in loco um regime socialista. Se eu pedia uma informação a um nativo, mal eu me afastava do fulano saltava do nada um soldado com uma metralhadora de baioneta calada e um cão policial. E passava a identificar e interrogar o coitado. Mas o que mais evidenciava o socialismo era o total desabastecimento dos supermercados e bares. Nas gôndolas vazias dos mercados, nada que incitasse ao consumo. Gêneros alimentícios, nenhum. Em compensação, abundavam baldes, pás, vassouras, enxadas. Em bares de praia, nada para comer. Nem para beber. Os distribuidores nada haviam trazido, portanto nada havia para vender. Mas os bares estavam abertos. Os garçons eram funcionários públicos e sua função era abrir os bares. Mesmo que nada houvesse para ser oferecido aos clientes. Certo dia, vi chegar uma paleta de carne em um mercado. Uma multidão de romenos disputou-a a tapas, grama a grama. Claro que disputavam a carne os que tinham poder aquisitivo suficiente para comprá-la.

Sinal indefectível do socialismo, a falta de papel higiênico. Não sei por quê, mas este é um dos primeiros estragos do regime. Nos anos 70 e 80, todo turista que ia aos países socialistas era recomendado a levar consigo papel higiênico. Como não me preveni, todo santo dia eu tinha de lutar por alguns centímetros de papel na portaria do hotel. Rolo, que é bom, nem em sonhos.

O mesmo que ocorre em Cuba. Com uma diferença. Castro isolou setores da ilha para uso exclusivo dos turistas, e nestes sempre se encontra alguma coisa. Quando Hugo Chávez começou a falar de seu socialismo bolivariano, disse a amigos: agora é só esperar pelo desabastecimento. Não demorou muito. Leio na Folha de São Paulo de quinta-feira passada que hoje, na Venezuela, a escassez afeta pobres e ricos. Produtos como carne, feijão preto, leite e açúcar são raros nas prateleiras. Em alguns casos, é necessário pagar gorjeta. Culpado pela situação? Segundo o governo, são os pérfidos Estados Unidos, que querem desestabilizar o país.

Anteontem à tarde, mercado Luvebras, no afluente bairro La Castellana, zona leste da capital venezuelana. Dois funcionários puxam um carrinho carregado de carne em bandejas. Atraem imediatamente a atenção dos clientes, na maioria mulheres de classe média alta. Sem disfarçar a ansiedade, os clientes se aglomeram em torno dos funcionários e se acotovelam para pegar seus pedaços de carne de boi e de frango da prateleira numa velocidade mais rápida do que a reposição. Alguns avançam diretamente no carrinho, outros levam o quanto conseguem segurar. Em pouco tempo, o balcão refrigerado volta a ficar vazio.

Exatamente o que vi na Romênia, há 26 anos.

Cinco estações de metrô mais a leste, na populosa região pobre do Petare, a loja do Mercal, a rede de supermercados pública, sofre com a falta de produtos e clientes. Assim como no primo rico, faltam carne, ovos, leite, feijão preto e queijo branco, embora tenha açúcar, limitado a um quilo por cliente.

E, conseqüência indefectível do socialismo, a falta de papel higiênico. "Aqui, não se consegue nada há três semanas", diz um cliente. "A cada dia é mais difícil encontrar carne, papel higiênico, leite". Segundo funcionário de um supermercado localizado em área nobre da cidade, a escassez é medida pelo volume de trabalho. Nos últimos dias, passou meio período sem fazer nada, já que sua função é abastecer as prateleiras. Como na Romênia. Sem abastecimento, não há trabalho. Mas o trabalhador tem de bater ponto. Para um cliente conseguir carne no mercado é preciso pagar propina para o açougueiro. "Eles vão lá, deixam a lista do que querem junto com um dinheirinho", diz o funcionário. Como eu fazia na Romênia para conseguir uma pedrinha a mais de açúcar ou um bom vinho.

A Venezuela, antes de ser um país, é um poço de petróleo. Nos anos 70 e 80, era um dos países mais prósperos da América Latina. Bastaram alguns anos de "socialismo bolivariano" para ser reduzida a um clone de Cuba. Chávez entrará para história como o primeiro governante a levar um poço de petróleo à miséria. A Bolívia irá pelo mesmo caminho. Como os ditadores têm uma tradição de longevidade neste continente, estes países terão ainda de esperar algumas décadas para voltar a uma economia de mercado.

Cuba, a meu ver, está muito perto disto. Morto o grande ícone da revolução, os cubanos, famintos de capitalismo, reerguerão a ilha em pouco tempo. A queda do Muro foi um grande baque para as esquerdas. Mas pouco afetou os comunistas do continente. A ressurreição de Cuba, após a morte de Fidel, será a pá de cal nas ideologias marxistas na América Latina.