¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, junho 22, 2007
 
DIAS LOPES, CRONISTA DA BONA-XIRA



O mundo está cheio de comensais que comem sem jamais pretender entender o que comem. Há também os que gostam de saber o que estão comendo. Me situo entre estes últimos e entre minhas leituras prediletas estão os autores que tratam de história da comida. O primeiro livro que li nesta área foi Food in Civilization – How History Has Been Affected by Human Tastes, de Carson I. A. Ritchie. O livro tem uma origem curiosa. Carson havia convidado alguns amigos a jantar em um bom restaurante. Comeram bem e fartamente. Na hora de pagar, Carson pegou a carteira ... e viu que não tinha dinheiro suficiente. Seus amigos o salvaram. "Mas uma vez passado o mau momento, pensei que a história da alimentação em algo se parece a esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que o que desfrutamos custa mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa". Decidiu então escrever este estudo para que o leitor descubra uma nova interpretação de sua própria história e de suas atitudes frente ao que come.

No ano que vivi em Madri, meu guru era Enrique Sordo, jornalista que escreveu España, entre trago y bocado, minha bíblia naqueles dias. Viajando de região em região do país, o autor vai mostrando suas características físicas e geográficas, a estética de sua paisagem, a psicologia de seus habitantes... e as cozinhas regionais. Não é um guia para jogar-se entre outros mapas de turismo, mas um estudo antropológico e sociológico sobre o modo e estilo de comer de cada povo.

Mais recentemente, li o excelente A Invenção do Restaurante, de Rebecca L. Spang, que estuda o fenômeno em suas origens, ou seja, em Paris. Considero os restaurantes um dos mais esplêndidos achados da história humana e atualmente viajo quase só para visitá-los. Foi neste livro de Rebecca que descobri que os restaurantes evoluíram das maisons de santé até o que hoje conhecemos por restaurante. A palavra decorre de uma paráfrase de um versículo de Mateus (11:28) "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei". Lá pelos estertores do século XVIII, um dos primeiros restaurateurs da época pôs na entrada de sua casa esta frase um tanto blasfema: "Accurite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo". Ou seja, corram a mim todos vós cujos estômagos padecem, e eu vos restabelecerei.

Fascinado por este tipo de literatura, não poderia deixar de ir ontem até a Livraria Cultura, onde José Antonio Dias Lopes - pedritense de cepa, veterano jornalista da Abril, ex-correspondente de Veja na Itália e editor da revista Gula - autografava seu último livro, A Rainha que virou pizza. Viajor e cultor da bona-xira, Dias Lopes nos guia em uma viagem no tempo e na geografia, percorrendo cortes e mosteiros da Europa, desvelando as ceias de reis, rainhas, papas e cardeais e nos esclarecendo sobre a origem de coisas de nosso dia a dia - como a toalha de mesa, o guardanapo, a colher, a faca, o garfo - tão banais que nem imaginamos que um dia não tenham existido.

Quando empunhamos um cardápio em um restaurante, ou comemos um croissant num café, não temos nem idéia de como e onde surgiram. Detentor de uma cultura histórica considerável, Dias Lopes nos conduz desde os primórdios da culinária - o banquete fúnebre do rei Midas, a mesa requintada da Magna Grécia, Cleópatra e os festins egípcios - até os pratos prediletos da máfia ou do Vaticano.

Comer e viajar são prazeres espirituais complementares. Falei em crônica passada da pergunta que fiz a um amigo, emérito gourmet, sobre porque os homens viajavam. "Os homens viajam para comer", respondeu-me. O livro de Dias Lopes é a demonstração cabal deste postulado. Só quem viaja consegue falar de cátedra de culinária. Ainda não li o livro, mas sei que tenho muitas horas de prazer intelectual pela frente. Melhor que comer e beber bem, só comer e entender a história do que se come e bebe.

Seguidamente, os leitores me pedem recomendações de leitura. Les voilà. Para quem é chegado a lidar com fogões, o autor oferece ao final de cada crônica uma receita relacionada ao assunto tratado. Last but not least, Dias Lopes foi quem me introduziu pela primeira vez em um restaurante na Paulicéia. Eram os anos 70, e o restaurante era a Osteria do Piero. O autor pode ser encontrado todas as quintas-feiras no suplemento "Paladar", do Estadão.