¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 31, 2007
 
MORRE O CINEASTA DAS NEUROSES SEXUAIS




Morreu ontem Ingmar Bergman, o cineasta das angústias humanas, como o definiam alguns críticos. Outros preferiam chamá-lo de o cineasta da alma. Eu já o via diferente, considerava-o como o cineasta das neuroses sexuais. Conto mais adiante. Morreu como eu gostaria de morrer, cercado por suas mulheres. Não morreu de doença alguma, mas de velhice, como normalmente o ser humano deveria morrer. No Brasil, seu nome era pronunciado como Inguimar Berguiman. Nada disso, a pronúncia correta é Inmar Bériman.

Nunca esteve entre meus cineastas prediletos. Tinha uma fotografia belíssima, mas isto deve ser creditado mais a seu fiel fotógrafo, Sven Nykvist. Seus filmes tinham uma acentuada marcação teatral - Bergmann também fazia teatro - que nunca me agradou em cinema algum. Se vou ao cinema, quero ver cinema e não teatro. Além do mais, sua obra era por demais brumosa e metafísica para meu gosto. Sempre preocupado com a morte e com a existência de Deus, o cineasta sueco repassava em quase todos seus filmes estas questões para seus espectadores. Ora, estas perguntas devem ser respondidas bem cedo na vida de um homem e não me parece que um cineasta, ainda que genial, tenha o direito de com elas ficar chateando eternamente seu público.

Bergman é daquela safra de cineastas que embalaram meus dias de universidade, como Antonioni, Buñuel, Godard, Visconti, Fellini, Kurosawa, Andrzej Wajda. Criadores que não se fazem mais. Uns geniais, outros chatos, mas com uma filmografia personalíssima. Entre os chatos, ao lado de Bergman, coloco Godard e Antonioni. Que, aliás, morreu hoje. Minha geração teve o cinema como uma de suas referências culturais e não perdíamos um só filme destes autores. Mas havia um certo snobismo intelectual. Quando víamos solenes soporíferos como os filmes de Godard e Antonioni, a intelectuália portoalegrense não ousava falar em soporíferos e preferia ficar buscando sentidos ocultos onde não havia sentido algum.

Toda vez que falo de Bergman, lembro episódio ocorrido em Porto Alegre, em 1972. Devo ter contado a história dezenas de vezes, nos últimos 35 anos. Vou repeti-la - e com prazer - pois desmascara certas modas intelectuais até hoje vigentes.

Era 72, dizia. Na Reitoria da UFRGS, Gritos e Sussurros era analisado por um crítico de cinema e dois psicanalistas. Como eu estava voltando da Suécia, fui convidado por um terceiro psicanalista para o debate. Porto Alegre, naqueles idos, vivia uma circunstância peculiar: sem produzir filmes, tinha uma crítica de cinema ativíssima. Luis Carlos Merten, o crítico, abriu os debates, com voz empostada: "Dois são os instintos básicos da humanidade: sexo e fome. Como não existe fome na Suécia, os suecos fazem um cinema de sexo".

Sem discutir a veracidade histórica da afirmação (no final do século XIX, Estocolmo era uma das cidades mais pobres e sujas da Europa), considerei que no Brasil ninguém passava fome. Vivíamos em plena época das pornochanchadas e o cinema nacional girava em torno a sexo. Merten mudou de assunto e passou a falar de Bergman, o "cineasta da alma".

Discordei. A meu ver, Bergman era o cineasta das neuroses sexuais. Em sua filmografia, o relacionamento físico entre os personagens é sempre sofrido, doloroso, traumatizante. (Quem não lembra o episódio dos cacos de vidro introduzidos na vagina, em Gritos e Sussurros?). Não por acaso, o cineasta estava em seu quinto casamento. Homem que não se acerta com uma mulher - afirmei - não se acerta com cinco nem com vinte e cinco. Mal terminei a frase, fui interrompido por um dos psicanalistas: "Não podemos invadir a privacidade de Bergman, que está vivo. Falemos de sua mãe, que já morreu".

(Pequeno intervalo: Merten parece continuar obcecado pela idéia de fome e sexo. No Estadão de hoje, escreve: "Essas questões metafísicas foram transformadas em temas e o cinema de Bergmann trata da fome e do sexo". Me parece difícil encontrar a temática da fome no cineasta sueco. Merten ajunta: "fome de sexo". Diria que tampouco é isso, e sim um horror luterano a sexo. Volto a Porto Alegre).

O debate continuou por outros rumos. Em uma das cenas, a personagem principal, interpretada por Liv Ullmann, após jantar com o marido, pergunta-lhe se quer café ou se vai dormir. Interpretação do segundo psicanalista: "Café ou cama. Temos uma manifestação típica de sexualidade oral". Observei aos participantes da mesa que pretendia convidá-los para um cafezinho após o debate. Como arriscava ser mal interpretado, desistia da idéia. O debate foi rico em pérolas do mesmo jaez. Registro mais uma.

Da platéia, alguém perguntou porque razões Liv Ullmann usava duas alianças no mesmo dedo. Interpretou um dos analistas: "Agressão instintiva ao marido, desejo de viuvez antecipada. Ou ainda, uma projeção homossexual na mãe. Ela vê na mãe os princípios masculino e feminino e usa os dois símbolos no dedo". Lavei a alma naquela noite: o douto analista ignorava que na Suécia as mulheres costumavam usar ambas as alianças, a própria e a do marido.

Se a história terminasse aqui, até que não seria grave. Ao sair da Reitoria, fui abordado pelo Sérgio Messias, o psicanalista que me convidara para o debate: "Por que aquela agressão pessoal ao Meneghini? Tens algo contra ele?" Referia-se àquele que insistia em falar da mãe do Bergman. Ora, não me parecia ter agredido ninguém. E muito menos o tal de Meneghini, que via pela primeira vez em minha vida. "Acontece que ele também está na quinta esposa. E como sempre as leva para morar com a mãe, parece que também não está dando certo". Atirei no que vi, acertei no que não vi.

Você já ouviu falar, leitor, de pessoas que não conseguem dormir porque não conseguem parar de rir? Foi o que me aconteceu naquela noite. Ri sozinho até boas horas da madrugada.

Assim se pensava, naqueles anos. De Antonioni, o outro monstro sagrado que hoje morre, também tido como "cineasta das angústias existenciais", tivemos de engolir a trilogia mais chata que já foi me dado ver, A Aventura, A Noite e O Eclipse. Era insuportável ver Monica Vitti caminhando sem rumo na noite, por minutos que pareciam não mais acabar. Consta que certa vez la Vitti, cuja voz rouca eu adorava, queixou-se a Orson Welles, que um de seus filmes acabava muito rapidamente. "Bom - teria dito Welles - eu poderia deixar a personagem caminhando durante minutos na noite, como o Antonioni faz com você".

Outro chato da época era Jean-Luc Godard. Quando chegar sua hora, voltarei ao assunto.

 
SUPREMO APEDEUTA DIXIT



"Pobre é sempre escorraçado para a periferia", declarou hoje o Supremo Apedeuta em Mato Grosso. E continuou deitando sabedoria: "O rico cresce pra cima nos grandes apartamentos e os pobres vão se espraiando nas periferias dos grandes centros".

Pelo jeito, nunca viu uma favela de perto, onde são justamente os pobres quem mais crescem para cima. Neste país incrível, ocorreu um fenômeno paradoxal na construção do Rio de Janeiro. Talvez com preguiça de subir o morro, os ricos deixaram de lado a geografia mais privilegiada da cidade e se contentaram com a beira da praia. Hoje, em boa parte são os favelados que gozam da melhor paisagem da baía da Guanabara.

O mesmo não ocorreu na Itália, por exemplo. Não vi nada de mais parecido com favelas no planetinha que a sofisticada e caríssima Costa Amalfitana. Se você, brasileiro, um dia passou por Positano, Amalfi, Ravello, certamente teve uma estranha sensação de déjà-vu. O casario subindo morro acima reproduz exatamente as favelas cariocas. Com uma diferença: quem subiu morro acima foram os ricos. As cidades da Costa Amalfitana são hoje certamente as mais caras da Itália.

O Supremo Apedeuta disse que o objetivo do PAC é igualar oportunidades no País. "Temos compromisso com nossa consciência, somos cristãos. Precisamos saber que pobres e ricos têm o direito de serem tratados nas mesmas condições". Até aí, morreu o Neves. Diante da lei, pelo menos teoricamente, pobres e ricos têm o direito de serem tratados nas mesmas condições. Mas só teoricamente. Filho de presidente pode receber cinco milhões de reais da Telemar só porque é filho do presidente. Filho de Zé Ninguém, se roubar um pãozinho num supermercado vai direto em cana. Somos cristãos, é verdade. Mas primeiro os meus.

Admitindo-se, por hipótese, que ricos e pobres fossem tratados nas mesmas condições neste país, pretenderá o Supremo Apedeuta que pobres freqüentem restaurantes de luxo ou vivam em grandes apartamentos nos grandes centros? Então pobre não seria pobre, ora bolas. Tampouco é verdade que os pobres vão se espraiando nas periferias. Onde quer que haja uma administração do PT, os sem-teto são estimulados a invadir prédios centrais. Tanto em Porto Alegre como São Paulo, hoje há miseráveis habitando em geografias onde o preço do metro quadrado é altíssimo. Não porque tenham condições de lá habitar. Mas porque são miseráveis.

Qual aquele cientista alemão do filme Dr. Strangelove, de Kubrick, Lula parece ser acometido às vezes por um levantar de braços em saudação a utopias sangrentas. No caso, à finada utopia socialista, que julgava ser possível um mundo onde todos fossem iguais.

segunda-feira, julho 30, 2007
 
OS CÃES, O DIREITO E DEUS




Vivi em Paris de 1977 a 1981. Se houve algo que me chocou na França, foi o status do qual gozavam os cães. Cheguei até a mesmo a fazer um dossiê sobre o assunto, que deveria ter uns bons quatro ou cinco quilos. Uma pequena parte desse dossiê está transcrita em Ponche Verde.

Do Le Monde, por exemplo, reproduzi uma reportagem sobre uma psicanalista de cães. A moça tinha seis anos de especialização na Inglaterra - onde a psicanálise canina está um século à frente em relação à França, dizia o jornal - e falava dos traumas que poderiam acometer os animaizinhos. Um dos graves problemas do cão parisiense era a crise de identidade, de tanto andar entre humanos o cão acabava esquecendo que era um cão, assim era bom que de vez em quando ele saísse com seus semelhantes. Um outro problema, e este dos mais graves, era o fato de que, sendo o cão muito sensível, seus problemas psíquicos muitas vezes não decorriam de seu próprio psiquismo, mas dos problemas vividos pelos proprietários. Se havia atritos no casal, estes eram imediatamente intuídos pelo cão, de modo que a psicanalista se via forçada a sugerir ao casal uma boa análise, pelo menos em nome da saúde psíquica do cão.

Mas o recorte que mais me impressionou na época foi sobre o direito de visita a cães. Um marido, em instância de divórcio em Cretéil, Val-de-Marne, obteve de um juiz de paz um direito de visita a seu cãozinho, já que a mulher havia ficado com a guarda do animal. O casal só se entendia em dois pontos: a ruptura e a vontade de ver regularmente o bichinho. O juiz, após ter oficialmente constatado que havia convergência de pontos de vista por parte do marido e da mulher a respeito do animal, deu ao marido o direito de visitar seu cachorro dois fins-de-semana por mês e de guardá-lo durante boa parte das férias.

Para mim, latino, era como se estivesse lendo alguma ficção de Swift ou Kafka. Nunca entendi - e até hoje não entendo - como pode um casal mobilizar a máquina judiciária para chegar a um acordo tão banal.

Entre os livros que trouxe da França, está um Guide du Chien en Vacances, que mapeia a rede hoteleira destinada aos cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos, sendo que nesta última categoria os cuscos eram postos à mesa com guardanapos e servidos, na sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Trouxe também o Recettes pour Chiens et Chats, best-seller que em seu prefácio oferece às donas-de-casa a alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar para o prazer de seus fiéis companheiros. O livro dá uma série de receitas à base de carnes e peixes, mais manteigas caninas, para animais carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos, tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos de resistência, onde se prevê também um regime sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e remédios, onde se especifica desde pastas dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-banho.

Visitei também Asnières, um dos dois cemitérios para cães de Paris. Visitei-o, propositadamente, num dia de Finados. Outra hora faço o relato de minha visita. O que me ocorre agora é comentar notícia que li ontem no Estadão. Em Wisconsin, nos Estados Unidos, uma

LEI VAI REGULAR GUARDA DE BICHOS DE ESTIMAÇÃO

É o que diz a manchete. Os legisladores do Estado americano estão discutindo um projeto de lei que determina como os tribunais devem resolver as disputas de casais em processo de divórcio pela guarda de animais de estimação. Segundo o projeto, é preciso especificar, entre outras coisas, os direitos de visita e de viagem com o animal de estimação. Se o casal não chega a acordo, o juiz escolhe um dos cônjuges como tutor do bicho ou o envia para um abrigo.

Vive la France! Aquela decisão de um juiz francês nos anos 70 - que mesmo na França de então causava espécie - parece estar fazendo escola nos Estados Unidos. "Tradicionalmente, os tribunais tratam os animais de estimação como um objeto", diz a parlamentar Carol Roessler, co-autora do projeto. "Mas um cachorro não é uma escrivaninha". Como dizia Antônio Rogério Magri, ex-ministro do Trabalho e Assistência Social, cachorro também é gente. O ministro foi ridicularizado na época. Nos Estados Unidos, estaria criando jurisprudência.

A principal defensora da nova legislação é a republicana Sheryl Albers, que promoveu a lei da guarda dos bichos de estimação por causa da experiência vivida por seu marido, quando ele se divorciou em 2003 da mulher anterior. Eles entraram numa briga violenta sobre quem deveria cuidar do labrador da família, Sammi. As crianças queriam ficar com Sammi, já idoso e sofrendo de incontinência urinária. Mas nenhum dos pais se dispunha a cuidar do cão em tempo integral. O juiz da Corte Distrital do Condado de Dane decidiu, então, que, da mesma maneira que as crianças dividiriam o tempo entre o pai e a mãe, seria obrigatório compartilhar as atenções em relação a Sammi.

Um novo ramo do direito, o Direito Animal, começa tomar corpo nos Estados Unidos. Segundo Richard Cupp, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Pepperdine, na Califórnia, "é uma das áreas do Direito que se expande mais rápido no país'. Coisas de país grande, que institucionalizou a tortura e a prisão sem culpa formada para humanos e se volta para minudências no trato dos animais. Como o Brasil adora importar o que de mais ridículo produz o Primeiro Mundo, não perdemos por esperar. Dentro em breve nossos juízes estarão decidindo a qual parceiro de um casal confiar a guarda de um cão.

Vi piores, na França. Em meu dossiê veio também um outro livrinho, intitulado L’Animal, l’homme et Dieu, de Michel Damien (Paris, Editions du Cerf, 216p., 45 F na época). Ocorre, diz o autor, que se escreva sobre o animal para situá-lo em relação ao homem, mas é muito raro que os cristãos ultrapassem a etapa da poesia franscicana para chegar a uma espécie de teologia da natureza animada.

LE CHRIST EST MORT AUSSI POUR LES CHIENS

Assim titulou o Le Monde sua reportagem sobre o livro de Damien. "A solidariedade do homem com o animal não é somente biológica, natural, ela é ontológica, transcendental, evangélica. O Cristo morreu também pelos cães. A Igreja Católica infelizmente está ausente deste debate. Os animais não receberam nenhum status de sua parte. No entanto, se o animal não tem a noção de Deus, ele tem por outro lado aquela do homem, que foi feito à imagem de Deus. (...) Os cães nos esperam no caminho de Cristo. Eles são nossos próximos. Seu sofrimento misterioso é uma participação das Beatitudes. Há um Evangelho do animal, que também morreu nos braços de Deus. O animal tem algo de comum com o Cristo: ele morre pelo mundo e seu sacrifício é indispensável ao equilíbrio deste mundo".

Mais um pouco e teremos diferentes confissões de fé para os cães. Teremos talvez cães católicos, luteranos, evangélicos e quem sabe até mesmo espíritas.

Assim caminha o Primeiro Mundo.

domingo, julho 29, 2007
 
REVOADA DE ABUTRES SOBRE O MERCADO DA MORTE




Desde há muito a figura do jornalista é associada a urubus. Onde há cadáveres, lá está o jornalista. Faz parte do ofício. Tragédias são sempre notícias. Cadáveres, particularmente quando aos montes, sempre fazem as primeiras páginas dos jornais. Jornalista é um abutre compulsório. Onde houver cadáveres, sempre haverá jornalistas. Mas um fato novo está surgindo nos noticiários. São os abutres voluntários, abutres que convidam a si próprios em todas as tragédias. Abutres perfeitamente dispensáveis, os psicólogos estão sempre cada vez mais presentes onde há cheiro de morte. Leio manchete na Folha de São Paulo de hoje:

PARA PSICÓLOGA, LUTO DEVE SER VIVIDO, MAS É IMPORTANTE QUE A DOR SEJA TRANSITÓRIA

Até aí morreu o Neves, sem trocadilho. O luto sempre foi vivido em todas as civilizações, sem que profissionais o regulamentem. E a dor sempre foi transitória. A existência se tornaria insuportável se a dor que sentimos pelos nossos seres amados nos acicatasse a toda hora, o dia todo, todos os meses e todos os anos que restam a nós, sobreviventes, viver. Em minha primeira viagem à Itália, encontrei em um restaurante um súbito amigo. Chamava-se Franco e havia ocorrido recentemente um terremoto na Itália. Não era psicólogo, psicanalista nem outro psicanalha qualquer. Era apenas um homem sensato. Até hoje não esqueço uma frase sua: "Após um terremoto, podemos chorar uma semana ou um mês, encharcar um lenço ou um lençol, mas ninguém vai chorar a vida toda, que os mortos enterrem seus mortos e a vida continua, melhor rir e continuar vivendo, salute!"

"A experiência do luto é para ser vivida", diz na reportagem da Folha a psicóloga clínica Maria Helena Pereira Franco. "Não tem como apressar esse processo, especialmente quando há agravantes de morte repentina e violenta", afirma a moça, que também é coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto da PUC-SP. Considerada a principal especialista em luto traumático no Brasil, ela foi chamada logo depois do acidente que matou 199 pessoas. Está coordenando um grupo de 30 psicólogos envolvidos no caso.

Luto virou mercado. Mal surge um grande desastre, revoadas de sinistros gigolôs das angústias humanas cercam os sobreviventes. Os psicólogos estão atuando no IML (Instituto Médico Legal), nos dois hotéis que hospedam os parentes dos cadáveres, nos dois aeroportos de São Paulo e em três departamentos da TAM. Junto a quem sofre, pessoas fragilizadas pela dor que sequer têm como reagir à marquetagem do luto. Mais um pouco e as funerárias oferecerão, junto com o caixão, serviços de assistência psicológica.

Não era assim quando nasci. Esta disputa pela dor alheia é algo bastante contemporâneo. Até bem pouco tempo, a morte era uma circunstância normal da vida - normal e dolorosa, é verdade - que não exigia cuidados psicológicos para quem ficava. Já perdi três dos seres mais queridos que a um homem é dado ter - pai, mãe e minha Baixinha adorada - e nunca me ocorreu recorrer a carpideiras profissionais. O abalo maior foi o desta terceira morte, afinal pai e mãe estão na cronologia normal dos fatos. Mas ela não estava, e isto é o que mais dói. Certo dia, em conversa com minha médica, caí em lágrimas e ela me sugeriu um analista. Quase que termina ali nossa boa relação. Pagar um vigarista para ouvir o quê? Ouvir que minha mulher morreu e que a vida é assim mesmo? Ora, isso eu posso dizer a mim mesmo e não pago nem cobro nada para ouvir.

"As pessoas podem ter raiva, tristeza ou necessidade de achar um culpado. Também é comum que alguma sensação interior se reflita em outra situação. Se um parente começa a achar que está tudo ruim, que o café está fraco, que isso e que aquilo, pode estar transferindo esse sentimento", explica a psicóloga. Só o que faltava achar que o café está ruim porque uma pessoa amada morreu! Morte não significa adição nenhuma de açúcar ou sal ao café. As pessoas nascem, crescem e morrem e o café nada tem a ver com isso.

Algumas frases como "bola para frente" ou "a vida continua" - diz a Folha - são proibidas entre os psicólogos que atendem os parentes das vítimas. "Não falamos nada que traga, nas entrelinhas, que não agüentamos vê-los sofrer. Temos postura de validar o que ele está vivendo, reconhecendo que há motivos para estar triste", diz Maria Helena. Dá-nos a entender que é preciso formação universitária e altíssima qualificação profissional para reconhecer que há motivos para uma pessoa que sofreu uma grave perda estar triste.

Tenho lido, cada vez com mais freqüência, sobre psicólogos e outros ólogos revoando sobre cadáveres. A impressão que me fica é que, nos dias atuais, as pessoas já não conseguem suportar uma decorrência natural da vida sem ter por perto um destes profissionais da morte. Estão, pouco a pouco, roubando as atribuições vulturinas dos sacerdotes. É de perguntar-se como os sobreviventes d’antanho conseguiam continuar suas vidas quando psicólogos desempregados ainda não pululavam como cogumelos após a chuva.

O serviço de assistência a vitimas e familiares de acidentes aéreos é regulamentado pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), e determina que o auxílio se estenderá pelo tempo que for necessário. Mais um cabidão de empregos.

Sou mais Fernando Pessoa:

Não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...

Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

 
CRONISTA TUCANO-PAPISTA
EM PALPOS-DE-ARANHA




Reinaldo Azevedo, o cronista tucano-papista de Veja, está se vendo em palpos-de-aranha para explicar-se junto a seus leitores, depois que sua revista deu, em reportagem de capa, que a causa do acidente da TAM se deveu a um erro humano. É o que dá um jornalista chapa-branca jogar todas as misérias do mundo no PT, só porque tem compromissos com o PSDB.

A realidade nem sempre é tão simples como parece. Há pessoas que julgam que basta ser antipetista para serem honestas. Não basta, não.

sábado, julho 28, 2007
 
OPOSIÇÃO DÁ PRESENTE A INCOMPETENTE



Em reportagem de capa, a Veja desta semana sepulta a avalanche de hipóteses desvairadas sobre as causas do acidente do Airbus da TAM que inundaram as páginas dos jornais nos últimos dez dias. Sem que os dados do acidente fossem conhecidos, súbitos especialistas em aeronáutica saltaram de todos azimutes e acharam imediatamente o culpado pela tragédia. O governo, é claro.


Longe de mim pretender defender este governo - escrevi então. Mas desde há muito afirmo que atribuir a um governo corrupto culpas que não são suas é o mesmo que dar mais alento a este governo corrupto, que pode então colocar-se na confortável condição de vítima de calúnias. Diz a reportagem de Veja:

Um erro humano está na origem do pior acidente aéreo da história da aviação brasileira. As informações já obtidas por meio da análise das caixas-pretas do Airbus A320 da TAM - que no último dia 17 se chocou contra um prédio da companhia, causando a morte de 199 pessoas - indicam que o avião, ao pousar, não conseguiu desacelerar o suficiente por causa de um erro do comandante do vôo. Essas informações, ainda mantidas em sigilo pela comissão da Aeronáutica que investiga o acidente, mostram que uma das duas alavancas que regulam o funcionamento das turbinas, chamadas de manetes, estava fora de posição quando o avião tocou a pista principal do Aeroporto de Congonhas. O erro fez com que as turbinas do Airbus funcionassem em sentidos opostos: enquanto a esquerda ajudava o avião a frear, como era desejado, a direita o fazia acelerar. Com isso, o avião, que pousou a cerca de 240 quilômetros por hora, não conseguiu parar. As investigações revelam ainda que, apesar da chuva, não houve aquaplanagem na pista nem falha no sistema de freios dos pneus.

Lula terá um fim de semana esplêndido. Graças ao açodamento dos súbitos especialistas em aeronáutica, poderá posar de vítima das calúnias da oposição. Seu governo continua sendo um desgoverno minado pela corrupção mas, decididamente, NÃO É o responsável pelos 199 cadáveres do acidente. Este presente de seus opositores, aposto que ele não esperava.

sexta-feira, julho 27, 2007
 
QUEM ELES PENSAM QUE ENGANAM?




João Batista Natali, do Estadão, fez outro dia um levantamento das taxas de embarque nos principais aeroportos internacionais. Em Frankfurt, paga-se R$ 56,26. Em Amsterdã, R$ 36,08. Lisboa, R$ 33,22; Milão, R$ 20,41; Madri, R$ 18,67. Neste país esplêndido, de tráfego aéreo impecável, um passageiro que embarca num vôo internacional em Guarulhos paga uma taxa de R$ 78,00. Na Europa, só perdemos para Londres, R$ 161,32. Em Nova York, o passageiro pagará R$ 54,67, um valor menor que em São Paulo. Mas há um pacote de outras sete taxas, relativas à alfândega e segurança, que totalizam no aeroporto John F. Kennedy no mínimo mais R$ 78,74. Segundo uma associação européia de agências de viagens, em matéria de taxa de embarque propriamente dita, há apenas três países no mundo mais caros que o Brasil: Reino Unido, R$ 161,32, Quênia, R$ 91,00 e ilhas Seychelles, R$ 81,00.

A altíssima taxa paga no Brasil deveria ir para o caixa de custeio do controle do tráfego aéreo. Ocorre que não vai. Fica retida para fazer o famoso superávit primário. Enquanto isto, quem vai hoje a um aeroporto não tem a mínima idéia de quando partirá, para onde partirá e nem mesmo se partirá. Se partir, não sabe se chegará vivo.

Mal se aventou uma solução para o caos aéreo, que nos joga internacionalmente abaixo do rabo de qualquer país africano, falou-se em aumento do preço das passagens. Se a clientela quer segurança, terá de pagar mais caro. Com isto, o governo sinaliza que sem segurança é mais barato. Não bastasse acenar com aumento do preço de passagens, o flamante ministro da Defesa, Nelson Jobim, toma posse do cargo afirmando que as filas serão o preço de mais segurança. “Se o preço da segurança for manter por algum tempo a fila nos aeroportos, ela será mantida. Se o preço da segurança for o desconforto, será mantido o desconforto, porque é uma questão de opção”, disse o ministro.

Foi uma estréia brilhante, para dizer o mínimo. O novel ministro pretende convencer os brasileiros que os aeroportos internacionais todos, da Europa aos Estados Unidos e Canadá, onde as filas são mínimas, constituem uma ameaça à segurança. É mais uma pérola que se enfia no largo colar de pérolas proferidas pelos ministros de Lula. Guido Mantega afirmava que o caos todo se devia à prosperidade do país. O governo considera que segurança só com passagens mais caras. Nelson Jobim considera que sem filas não há segurança.

Essa gente pensa que engana quem? Talvez enganem essa massa amorfa do eleitorado que vota em Lula em troca de esmolas. Mas Brasil não é só esmoleiros. O ministro, com seu pronunciamento, ofende a minoria esclarecida do país.

 
BRASIL REDESCOBRE TREM?




De meu apreço pelos cafés da Europa, quem me lê já sabe. Um outro fator me atrai no velho continente e creio ainda não ter falado disto. São os trens. Verdade que ultimamente tenho usado mais avião que trem na Europa, e por uma razão muito simples: voar está ficando mais barato que viajar de trem. Mas já percorri aquelas plagas de trem, de Roma a Estocolmo, de Madri a Viena, e sempre com muito prazer. Europa, para mim, entre outras coisas, é sinônimo de trem. Assim, foi com certo espanto que, ao tomar um trem na Itália com minha filha, há uns quatro anos, ela me disse: “nunca andei de trem”.

Percebi, de repente, que falava com outra geração. Trem é coisa de minha infância e adolescência. Brasileiros, já tivemos trem. O Rio Grande do Sul teve uma excelente malha ferroviária, cujo centro era Santa Maria. Em minha adolescência, cansei de fazer de trem o percurso entre Porto Alegre e Dom Pedrito. Com baldeações em Santa Maria, Cacequi e Rio Pardo. Lembro que o must de Rio Pardo eram os peixes fritos que comprávamos da janela do trem. Em Cacequi, a ferroviária era o grande acontecimento da cidade. Meninas e mesmos prostitutas faziam footing na estação. Suponho que, fora da estação ferroviária, nada mais havia a fazer em Cacequi.

Daqueles tempos, guardo uma terna lembrança. Era quando ia para o último vagão, sentava-me nos degraus junto aos trilhos e olhava, hipnotizado, as paralelas que iam se juntando conforme se afastavam de minha vista. Casebres de quincha e pau-a-pique iam sumindo na distância e eu, adolescente, sentia profunda lástima daquele pobre povo que vivia à beira das ferrovias. Eu ia para a capital, onde havia gentes de toda laia, jornais, universidade, informação, troca de idéias. Eles permaneciam imóveis, sedentários, olhando o trem passar. Tenho muitas horas de olhar trilhos que se juntam ao longe e isto me dava uma espécie de perverso prazer. Criança ainda, sentia-me poderoso e privilegiado. O trem era meu acesso à cultura.

De repente, não mais que de repente, o Brasil parece estar redescobrindo o trem. Após o desastre de Congonhas, o que mais se fala é de trem. As ferrovias foram desativadas e hoje só existem algumas linhas curtas, para saciar o saudosismo de alguns turistas. Este transporte privilegiado, o trem, foi exterminado com o entusiasmo juscelinista pelo automóvel. Que está matando gentes aos montes. Apesar dos últimos desastres aéreos, o automóvel continua matando mais. O automóvel mata aos poucos. Nenhum acidente de rodovia é tão espetaculoso quanto um desastre aéreo. Um carro mata dois ou três. Um avião mata duzentos. Só que um carro mata dois ou três várias vezes ao dia, todos os dias do mês e todos os meses do ano. Matar aos poucos, passa. O que não passa é matar muita gente de uma vez só.

O Brasil, país plano e sem maiores acidentes geográficos que dificultem a passagem de trens, abandonou o trem. Macaquitos, optamos pela opção ianque. Até hoje há quem considere Juscelino Kubistchek um dos grandes presidentes do país. A meu ver, com ele volta o país às trevas. Há ainda tempo de voltar ao futuro? Talvez não. As favelas se tornaram tão hostis e envolventes que hoje não mais permitem o acesso ferroviário aos grandes centros.

Outro abandono foi o do transporte marítimo. Em um país de oito mil quilômetros de costa, é espantoso ver caminhões e cegonhas entulhando rodovias de norte a sul, transportando tanto grãos como combustível ou carros. O transporte - dizia Monteiro Lobato no início do século passado - é um dos grandes problemas do mundo.

O Brasil, pelo jeito, ainda não percebeu isto.

quinta-feira, julho 26, 2007
 
GIGOLÔS INVESTEM EM TRAGÉDIA




Uma boa tragédia sempre pode render dividendos. Medo sempre gera lucro. Em entrevista ao UOL News, o psiquiatra Luiz Vicente Figueira de Mello, do Instituto de Psiquiatria da USP, explica o que fazer para enfrentar o medo de voar e dá dicas para quem sofre com esse problema. Quais são suas dicas?

"Você deve fazer um tratamento de terapia comportamental, que é expor a pessoa ao objeto do seu medo, para aos poucos ir dessensibilizando o medo".

"O pânico é um outro transtorno. São crises de medo que ocorrem independente de onde você está. Isso se trata com remédios antidepressivos. Nesse caso, é bom procurar um médico para poder voar sossegada".

"Isso é um quadro fóbico desencadeado por um fato real ou imaginário. E se dá por meio de uma predisposição biológica. Precisa ser tratado, investigado, pois a pessoa pode começar e ter crises constantes. Procure um psicólogo".

"É uma claustrofobia, não só um medo de avião. Evitar não é o certo, mas enfrentar gradualmente. Se possível, tutorada por um profissional. É o que chamamos de terapia de exposição, na qual as pessoas vão aprendendo a dominar o medo".

Isto já aconteceu no auge da onda de seqüestros em São Paulo. Na época, não faltaram gigolôs dos medos humanos para dizer que era necessário buscar um analista, psicólogo - ou psicanalha que o valha - para eliminar o medo a seqüestros. Como se, uma vez eliminado o medo ante o fato, como por encanto o fato sumisse.

Falei outro dia do medo de voar que me acometeu há alguns anos. Não procurei médico algum. Só que o faltava procurar médicos para superar o medo. Medo é sentimento personalíssimo, intransferível, que não tem cura com conversa fiada. Meu recurso inicial foi beber. Se não conseguia escapar da fatalidade de voar, empinava uma garrafa de uísque antes do vôo. Não é uma solução. Mas é melhor que ouvir blá-blá-blá de terapeutas. Anestesia e você entra no avião sorrindo. Se tiver de morrer, morre também sorrindo, como peru de Natal.

O medo, em verdade, é outro. É o de morrer. O avião acrescenta um ingrediente mais complicado, você se sente completamente indefeso. Ante a perspectiva de um acidente de carro, conforme as circunstâncias, você tem a possibilidade de poder reagir de alguma forma, tentar safar-se. Talvez não consiga, mas pode tentar. No avião, não. Você está nas mãos do piloto. Só lhe resta rezar, se por acaso tiver fé. Lula, por exemplo, diz entregar-se a Deus quando entra em um avião. Vai ver que andou subornando até mesmo o Altíssimo, pois este senhor já matou muita gente boa e nem mesmo se diverte dando ao menos um susto em quem merece.

Meu medo de voar me acometeu por fatores irracionais, como praticamente todos os medos. Faz parte do medo ser irracional. Eu estava aterrissando em Ghardaia, uma wilaia da Argélia situada no meio do deserto. O comandante mandou atar cintos e preparar-se para a aterrissagem. Foi o que fiz. Só que não via aeroporto algum. O avião estava a menos de cinco metros do solo e eu só via areia. Apertei firme a mão de minha Baixinha e disse para mim mesmo: “é hoje!”

Não era. O aeroporto era assim mesmo, uma pista de asfalto que surgia de repente em meio ao areal. Fosse ou não fosse minha vez, passei quatro anos apavorado ante a perspectiva de voar. Quando descobri que meu medo não era de voar, mas de morrer, tratei de tratar deste último medo. Medo de morrer é muito de jovem. Com a idade, vai passando. Joguei fora este medo e hoje entro em qualquer avião sem medo algum. Se tiver que acontecer, que aconteça. Provavelmente será rápido e isto é muito bom.


Você tem medo de voar? Deixe então de voar. Ou enfrente você mesmo seu medo. Não serão os gigolôs das angústias humanas que o curarão, mediante paga, desse medo. Fuja de terapias. Admita que morrer faz parte da vida e pode acontecer amanhã, ou até hoje, mesmo que você tenha os pés solidamente fincados no solo.

Admitido isto, embarque... e boa viagem.

 
O DIREITO À SECESSÃO



De Guilherme Roesler, recebo o seguinte texto:

Um Estado sem seguidores é um profeta sem discípulos. Sem seguidores sua doutrina nada vale. Assim, o Estado, por meio de uma ideologia, neste caso o nacionalismo, fundamenta por meio do consenso suas ações. Hitler, por exemplo, antes de invadir a Áustria, fez isso. Insuflou o sentimento nacional e aumentou exponencialmente o poder estatal ante a ação individual, que passou a ser impotente ante ao Leviatã. Ante ao barbarismo coletivo estatista o indivíduo nada representa ou significa. Entretanto, é o indivíduo real e concreto que mais sente as conseqüências destas ações.

Posteriormente, depois de aumentar o sentimento patriótico de seus súditos, o Estado passa a agir de modo a desrespeitar quem não concorda com suas atividades. Se esta era proibida anteriormente (antes de existir o "sentimento nacional"), o irracionalismo coletivo permite que estas condutas sejam realizadas sem maiores problemas. Mas o fato é que, para cada ação, existe outra em compensação. Neste caso de agressão por parte de um Estado sobre o indivíduo, podemos recorrer ante aos órgãos judiciários. Agora, se a agressão for, por exemplo, espoliatória em relação a outro Estado, este nada poderá fazer dentro da lei. Veja-se, por exemplo, a situação que ocorreu no Brasil no desgoverno Vargas com o Estado de São Paulo. Somente a luta física foi capaz de estabelecer a promulgação de uma nova Constituição.

Entretanto, da mesma forma o individuo pode se defender desta ação do Estado autoritário, o Estado que se sentir lesado poderá reagir na forma de secessão, ou seja, se separar do Estado opressor. Não há nada mais legítimo que este direito (não confundir legitimidade com legalidade). Da mesma maneira que é legitimo um filho fugir da coação de seus pais que aja dentro de sua esfera individual (por exemplo, obrigar estudar algo que não seja de seu interesse), é legitimo um Estado se separar de outro mediante aprovação de seus habitantes. Se pensarmos que o direito à secessão é ilegítimo, estaremos de acordo que toda opressão é justificada se haver um poder mais forte para impor sua vontade (um caso muito elucidativo desta situação que todos os liberais estão de acordo é este: meu direito vai até onde começa o seu. Isso é mentira na medida em que se existir colisão de direitos, o outro nunca ficará limitado a sua esfera para exercer seu "direito", mas imporá o seu direito ao outro.

Neste caso, teremos uma imposição à força. A sociedade liberal não é definida por esta sentença, mas por um reconhecimento prévio de direitos para cada homem. Se pensarmos que os direitos limitam-se reciprocamente, estaremos aceitando os fundamentos de uma sociedade não liberal, autoritária, baseada no uso da força). A secessão nada mais passa que um direito à liberdade do Estado em um primeiro momento, mas representa também o exercicio pleno de uma prerrogativa individual. Contraditoriamente, as constituições dizem que os indivíduos são livres, mas não os Estados. Estes são membros de uma União indissolúvel.

Ora, isso é contra a liberdade, não do Estado, que não pensa por si próprio, mas dos seus cidadãos. Ou seja, o indivíduo é livre dentro de certa esfera, pois a partir de outra esfera de atuação este indivíduo é coagido a submeter-se a certa opressão por parte do aparelho estatal, sem possibilidade alguma de defesa. E o que é pior: nada poderá fazer "legalmente". Quem lidera a secessão não é o Estado, mas os seus membros humanos, nós. Negar este direito ao Estado, que por nós é representado e que por nós existe e é mantido, é negar nossa completa liberdade de fugirmos daquilo que nos agride. Não é porque a coação é legal que é legitima. A lei, se negar um direito meu, é opressora, antinaturalista. Deve ser abolida. Mas se todos se sentem bem em dizer que são exemplares nacionalistas, que defendem sua nação acima de qualquer coisa, como defender esta postura? Se a primeira lição é ensinar o direito a liberdade a cada cidadão, estaremos muito longe de consegui-la. A esta distância damos o nome de Estado.



O texto completo está em http://acao-humana.blogspot.com/2007/06/secesso-como-direito-liberdade.html

quarta-feira, julho 25, 2007
 
SONHO DE UMA NOITE DE INVERNO




Comentei ontem que o tal de terceiro aeroporto em São Paulo, solução miraculosa para a crise aérea, era apenas truque tirado do bolso da jaqueta. "Para quando o terceiro aeroporto? Bom, só as questões fundiárias demandariam uns quatro anos de litígios na Justiça. Aí o governo é outro e a necessidade do terceiro aeroporto talvez seja até mesmo posta de lado".

O governo nosso é extraordinariamente dinâmico. Não precisou de quatro anos para mudar de idéia. Bastaram 24 horas. Leio hoje na coluna “Painel”, da Folha de São Paulo:

"Anunciada por Lula três dias depois da tragédia em Congonhas, a construção de um novo aeroporto em São Paulo será discretamente deixada em banho-maria. Ciente de que a empreitada terá efeito prático zero sobre a atual crise, dados os anos necessários à sua concretização, a cúpula do governo tende a priorizar a ampliação das instalações já existentes".

Gente que pensa rápido taí. Me lembra um iluminado que conheci nos dias de Porto Alegre: "eu penso tão rápido que não consigo acompanhar meu próprio pensamento".

 
FATWAS



(Enviadas por Charles Pilger, a partir do blog de Pedro Doria -
http://feeds.feedburner.com/~r/pedrodoria/~3/136163496/)



A turma da revista Foreign Policy compôs uma lista de fatwas. A fatwa mais conhecida que há - e que trouxe o vocábulo para o noticiário - é a do aiatolá xiita iraniano Ruhollah Khomeini, que pediu a morte, por um fiel, do escritor Salman Rushdie.

Fatwas são decretos religiosos, pareceres a respeito de uma questão. Algumas:

Rashad Hassan Khalil, ex-reitor da Escola de Lei Islâmica da Universidade al-Azhar, no Cairo, decidiu que todo o casal casado que fizer sexo sem vestir qualquer peça de roupa terá anulado seu casamento.

O Comitê para Pesquisa Científica e Lei Islâmica da Arábia Saudita decidiu que jogos baseados no personagem Pókemon induzem ao vício em jogos de azar e a uma simpatia pelo Estado Sionista de Israel.

Mulás no interior paquistanês declararam que os pais não devem vacinar seus filhos contra pólio por tratar-se de um plano secreto do ocidente para esterilizar muçulmanos.

Ezzat Atiya, professor da boa e velha Universidade al-Azhar, decretou que se uma mulher der de mamar cinco vezes para um colega de trabalho ambos serão considerados membros da mesma família. Esta é a solução, ele diz, para que homens e mulheres possam trabalhar num mesmo escritório sem romper quaisquer leis religiosas que imponham a separação entre pessoas de sexos diferentes.

 
SEPARATISMO



O leitor Raphael Piaia me pergunta se sou a favor do separatismo. Reproduzo artigo que publiquei há 14 anos, na Zero Hora de Porto Alegre. De lá para cá, não mudei de opinião.


O TERRITÓRIO JÁ ESTÁ DIVIDIDO

O articulista argumenta que os ianomamis e outras tribos indígenas podem ter países para uso próprio, enquanto outros brasileiros não podem sequer pensar no assunto porque é crime contra a segurança nacional.

ZERO HORA, 26 de junho de 1993



A idéia de independência dos Estados do sul brasileiro é vista como um sonho separatista de gaúchos saudosos da República do Piratini. O Ministério do Exército afirma que separatismo é barbárie, anomalia cívica, ruptura da unidade nacional. A finada URSS se parte em cacos, a antiga Iugoslávia também, a própria Rússia tem sua unidade questionada: Estônia, Letônia e Lituânia se independentizaram praticamente sem sangue. A Tchecoslováquia cindiu-se em paz, o Canadá quer divorciar-se de si mesmo, a Itália também. Mas esse nosso dinossauro informe, cujo cérebro verde-amarelo nunca conseguiu comandar os próprios membros em nome de uma identidade nacional que jamais foi definida, deve permanecer um só. É o que dizem os que militam pela preservação dos fósseis. Esta tarefa típica de ecologistas está sendo assumida agora por militares, que começam a ranger os dentes ante a uma pacífica iniciativa dos gaúchos. Que também já foi projeto de paulistas, diga-se de passagem.

O que ninguém manifesta - ou prefere não manifestar - é que o Brasil já deixou de constituir uma unidade territorial. Por um punhado de linhas na imprensa internacional, Collor de Mello entregou a dez mil aborígenes - que, existindo há milênios, não conseguiram emergir de uma cultura ágrafa - um território equivalente a três Bélgicas, uma para cada três mil índios. Uma recente edição da revista Geografia já tem um chamado de capa sobre "o país dos ianomâmis". Que ninguém se iluda: os latifúndios entregues de mão beijada àqueles autóctones que sequer chegaram aos preâmbulos de uma gramática, não pertencem mais ao Brasil. Os ianomâmis, que vivem do ócio e da devastação da floresta amazônica, podem ter um país para uso próprio. Gaúcho, catarinense, paulista, gente que trabalha e produz, não pode sequer pensar no assunto. É crime contra a segurança nacional.

Estupro também é crime, exceto quando cometido por índios. Paulinho Paiakan, o cacique caiapó, saudado pela imprensa americana como "o homem que pode salvar a humanidade", estuprou uma menina com a cumplicidade de sua mulher e permanece livre como um passarinho em seu feudo. O processo se arrasta há quase um ano e Paulinho - são simpáticos os diminutivos! - avisou: se for condenado, não sai de sua reserva. Ameaçou inclusive fazer rolar o sangue dos brancos, em caso de condenação. E pensávamos que limpeza étnica é estratégia de sérvios.

A "nação" caiapó - que já faturou US$ 10 milhões nos últimos dez anos exportando madeira de mogno para a Europa - não só não aceita o sistema judiciário nacional, como ainda alberga e protege o estuprador. Se bem me recordo de minhas aulas de Direito, albergar criminoso também constitui crime. Exceto no país caiapó, onde as leis são outras e estupro não é crime. O grave em tudo isto não é propriamente o estupro, crime comum capitulado no Código Penal. Temos agora um cidadão brasileiro, com carisma de salvador da humanidade, que diz com todas as letras que não aceita a lei do país onde vive. Jamais ouvi pronunciamento de autoridade nenhuma condenando esta rebelião civil. Não tenho notícias de que o Ministério do Exército tenha se preocupado com estes senhores que, com todas as letras, negam os sistemas legislativo e judiciário nacionais.

Mal surge a idéia do separatismo - que está longe de ser nova no Rio Grande do Sul - não falta quem fale em racismo e preconceito. Por alusão, evidentemente, aos nordestinos e nortistas, indesejados na nova comunidade. Aliás, depois das exéquias da finada luta de classes, racista é o novo insulto que substitui burguês. O que, no caso brasileiro, é duplo equívoco. Em primeiro lugar, nordestino jamais constituiu raça diferente da branca. Segundo, se constituísse, a ninguém se pode obrigar a dela gostar. O mínimo - e também o máximo - eticamente exigível é respeitá-la. Gostar ou não de alguém é questão de foro íntimo. Respeito é obrigação de todo ser humano em relação ao outro. Ou voltamos à lei da selva. O bíblico "amai-vos uns aos outros" pode ser uma ordem para os cristãos. Ocorre que vivemos em país que não deve obediência nenhuma a Roma. Curiosamente, ninguém acusa de racismo tchecos ou eslovacos, lituanos, letônios ou estônios.

Quanto a preconceito, é mais uma dessas palavras manipuladas pela mídia sem respeito nenhum a seu significado. Se, sem jamais ter visto ou ouvido falar de nordestinos, em relação a eles tenho uma atitude adversa, trata-se evidentemente de um "pré-conceito". Exemplo cabal de preconceito é o nutrido em relação ao Iéti. Jamais foi visto de perto e já recebeu a pecha de "abominável homem das neves". Mas depois de um Collor de Mello, P.C. Farias ou de um Inocêncio Poços de Oliveira Artesiano, temos um pós-conceito. Ao ser acusado de escavar poços em suas terras utilizando serviços de uma instituição pública, o presidente do Congresso, eventual presidente da República, declarou que isto é normal e que muitos outros deputados fazem o mesmo. Sulistas, nada temos contra o Nordeste que trabalha. Nosso rechaço é contra o Nordeste dos aguatenentes, estes gordos carrapatos que sugam o magro dorso do país.

Em bom português: quando autoridades civis e militares se dizem preocupadas com a unidade do território nacional, este há muito já está dividido. Um país para cada tribo indígena é bom, digno e justo. Um projeto de país para os sulistas é um atentado à Constituição. A chancelaria brasileira endossou a fragmentação da União Soviética, Iugoslávia e Tchecoslováquia. Mas Brasil não pode.

Militares não são pagos para mandar, mas para servir. As Forças Armadas devem atender aos desejos nacionais. Quando militares se opõem às aspirações civis, temos ditadura, e da última ninguém tem saudades. Em país civilizado, militar não manda. Obedece. Se o país quer cindir-se, faça-se um plebiscito. A menos que alguém prefira o método iugoslavo.

terça-feira, julho 24, 2007
 
SOBRE O MEDO DE VOAR



Se antes havia um medo de voar, o medo hoje é de aterrissar. Ou talvez nem tanto. Aterrissar sempre se aterrissa. Tudo que sobe desce. O fato é que hoje, quando você vai para um aeroporto, você não tem idéia alguma de quando partirá, nem para onde partirá. Nem mesmo se partirá. Já que existe greve ou sabotagem de controladores de vôo, as companhias aéreas poderiam ao menos fazer algo para amenizar o sofrimento dos passageiros.

Não fazem. Passageiros estão sendo transferidos para aeroportos distantes, nas madrugadas, sem idéia alguma de quando e para onde partirão. Os funcionários das aéreas, se nada podem fazer, poderiam ao menos ficar junto aos passageiros, para que estes pelo menos se sentissem assistidos. Não ficam. Dão no pé e os passageiros viram náufragos de aeroportos. Recentemente, minha filha viajava para Florianópolis. De Congonhas foi jogada para Viracopos, no meio da noite, onde passou a madrugada, sem que um copo de água lhe fosse oferecido. De Viracopos foi empacotada para o Rio de Janeiro, de onde finalmente partiu para Florianópolis, após 18 horas de espera.

Ela é jovem e forte. Imagine uma pessoa de idade e saúde abalada sendo assim transportada como gado. Ou uma mãe com crianças. Mas, como dizia o ministro Guido Mantega, isto é decorrência da prosperidade do país. Se você quiser um tratamento minimamente humano, vá decolar desses países de economias estagnadas, como a França, Alemanha ou Estados Unidos, cujo aviões partem no horário previsto.

Se você não gostou, entre com ação na Justiça. Constitua advogados, incomode-se com advogados e daqui a três ou quatro anos, se você estiver vivo ou ainda viver por aqui, receba uma indenização chinfrim, que não paga sequer um só dia de seus aborrecimentos. Para o governo, isto faz parte da prosperidade econômica. Relaxe e goze, como disse cinicamente a ministra Marta Suplicy. Ministra e continua ministra. Como também continua com status ministerial o velho e desdentado comunista, o Marco Aurélio Garcia, que mandou todo mundo foder-se.

Waldir Pires, o ministro da Defesa, outro velho e incompetente comunista acarinhado por Lula com uma prebenda no Planalto, declarou há alguns meses que o caos aéreo teria solução dentro de pelo menos um ano. O presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, mais otimista, dá o prazo de pelo menos um mês. Os apagões aéreos, que eram mensais, se tornaram semanais e agora são diários. Pode se conceber um país das dimensões do Brasil, servido prioritariamente por transporte aéreo, considerando inevitável que tal situação persista por mais um mês, como prevê o brigadeiro? Ou por mais um ano, como imagina o velho comunista?

Para Milton Zanuazzi, apparatchik petista presidente da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que nada tem no currículo que o habilite a tratar de assuntos aeronáuticos, "o que ocorreu não é incomum. Isso ocorre até nos Estados Unidos. Quando eles invadiram o Iraque houve cerceamento do espaço aéreo, assim como depois do 11 de setembro. Sempre se deve privilegiar a segurança". Imaginará este mentecapto - que por mentecapto andou recebendo uma medalha do governo - que alguém vai engolir sua argumentação? Por acaso o Brasil invadiu o Iraque ou teve algum 11 de setembro ou algo semelhante? Sua declaração é uma ofensa ao bom senso, tão ou mais grave que as de Guido Mantega, Marta Suplicy ou Marco Aurélio Garcia.

De repente, do bolso da jaqueta, surgem as sugestões miraculosas. Urge um terceiro aeroporto para São Paulo. Só agora descobriram? Para quando o terceiro aeroporto? Bom, só as questões fundiárias demandariam uns quatro anos de litígios na Justiça. Aí o governo é outro e a necessidade do terceiro aeroporto talvez seja até mesmo posta de lado. A expansão do aeroporto de Cumbica é dificultada, entre outras coisas, porque 20 mil sem-terra ou sem-teto decidiram fincar pé nos arredores do aeroporto. Pode? Pode um bando de bandoleiros impedir a expansão de um aeroporto? A União diz não ter poder para impedir a invasão dessas áreas. Quem então tem poder? Invasão passou a ser direito mais legítimo que o de propriedade?

Fala-se em um trem-bala São Paulo-Rio, de levitação magnética, para desafogar a ponte aérea. Pelo jeito ninguém mais lembra que até poucos anos havia um trem de luxo neste percurso, que foi desativado por se tornar inviável a passagem pelas favelas que cercam a maravilhosa cidade. Favelados começaram a jogar pedras e mesmo disparar tiros nas janelas, que acabaram tendo de ser blindadas. Que o trem em que Lênin foi de Helsinki a São Petersburgo fosse blindado, se entende. Mas pode entender-se um trem blindado entre as duas maiores cidades do país? A China construiu uma linha férrea a cinco mil metros de altura, de Pequim a Lhasa, no Tibete, e o Brasil já perdeu definitivamente a chance de cobrir os 429 quilômetros que separam o Rio de São Paulo.

Minha filha me perguntava outro dia se este país tem solução. É pergunta que seguidamente me fazem. Minha resposta, desde há muito, é sempre a mesma. Não há solução. Se algum dia o país dividir-se em quatro ou cinco, talvez. Cortar por lo sano, como dizem os platinos. Que cada novo país reúna suas forças e com elas se salve. Os dinossauros sempre estiveram fadados ao insucesso. O Brasil é um dinossauro que sequer consegue comandar seus membros. Não vai dar certo.

Em meio a isso, leio que o comandante Henrique Stephanini di Sacco, um dos falecidos no acidente da TAM, estava escrevendo um livro, intitulado Sem Medo de Voar. Queria ajudar os leigos a vencerem o medo de avião. Apesar das milhares de horas de vôo do comandante, me pergunto se teria autoridade para escrever tal livro. Obviamente, era homem que não tinha medo de voar. Este livro, me parece, teria de ser escrito por quem um dia teve medo de voar e conseguiu vencer este medo.

Eu, por exemplo. Houve em minha vida um período de quatro anos nos quais, se tivesse de tomar um avião daqui a três meses, passava estes três meses dormindo à base de soníferos. Na época, a Internationes ofereceu-me uma viagem aérea por diversas cidades da Alemanha. Aceitei, mas só iria de trem. Era a época em que o grupo terrorista RAF, Fração do Exército Vermelho, mais conhecido como Baader-Meinhof, ameaçava derrubar aviões no espaço aéreo alemão. Funcionários da embaixada alemã tentavam convencer-me de que o país estava muito bem preparado para enfrentar o terrorismo. Mas eu não tinha medo de terroristas. Tinha medo era de voar.

Vivia em Paris e por quatro anos arrastei comigo este medo, perdendo viagens e optando sempre por locomover-me de trem ou navio. Chegou o dia em que tive de voltar por alguns dias ao Sul. Navio era inviável. Só voando. Meses de insônia. No dia do embarque, tomei uma garrafa de uísque enquanto fazia a mala. Mais outra no avião. Permaneci imóvel o tempo todo, não levantei sequer para fazer xixi. Tinha medo de desestabilizar o aparelho. Juro!

Medo irracional, direis. Claro que sim. A maior parte dos medos é irracional. Mas é medo, que se vai fazer? Resolvi enfrentá-lo. Que era o quê me fazia medo? Não era o avião. Era o medo de morrer. Vamos então enfrentar a tal de morte. Não é o destino natural de todo homem? É. Então, por que ter medo? Além do mais, a morte de avião em geral é uma benção. Alguns minutos de agonia, ou segundos, ou talvez nem mesmo isso, como parece ter sido o caso dos sinistrados da TAM. E fim. Sem maiores sofrimentos, nem entubações, nem dias de hospital. Voltei para Paris num vôo dos TAP. Lembro que avião estava quase vazio. Levantei os braços de três poltronas, atei o cinto, deitei-me e dormi como um anjo. Hoje, já nem sinto quando o avião decola.

Vejo também nos jornais a história de um casal de namorados, que voltava de uma semana em Gramado. Nos destroços, encontraram o chip da câmera da moça. Fotos lindas de um casal feliz, curtindo plenamente a vida. Não vejo maiores problemas em morrer depois disso. A estes dois foram poupadas doenças, sofrimentos, divórcio quem sabe, as seqüelas da velhice.

Não, não estou afirmando que o desastre da TAM foi uma benção. Nada disso. Mas não me desagradaria morrer assim. Eu e a minha Baixinha tínhamos um secreto desejo. Morrer os dois juntos em um desastre aéreo. Não aconteceu. Cá estou curtindo sua ausência.

Quem devia escrever esse livro, dizia, sou eu. Ocorre que jamais escreveria um livro. Basta uma frase. Vença o medo da morte, assim acaba o medo de voar. Meu medo, hoje, não é de voar. É de ser tratado como gado nos aeroportos.

segunda-feira, julho 23, 2007
 
SOBRE O APOCALIPSE

(leituras de fim de noite)




"Não vamos falar de partidos políticos, mas de duas espécies da natureza humana: os que se sentem fortes na alma, e os que se sentem fracos. Jesus, Paulo e o maior dos Joões se sentiam fortes. João de Patmos se sentia fraco, no fundo de seu ser.

"Na época de Jesus, os homens fortes em essência haviam perdido o desejo de reinar sobre a terra. Eles desejavam destacar sua força das leis e do poder terrestres e aplicá-la a uma outra forma de vida. Desde então os fracos começaram a erguer a cabeça, a enfatuar-se desmesuradamente e a exprimir seu ódio desenfreado em relação aos 'aparentemente' fortes, aqueles que detinham o poder temporal.

"É assim que a religião, a religião cristã em particular, torna-se ambígua. A religião dos fortes ensinava a renúncia e o amor. E a religião dos fracos ensinava: ‘abaixo os fortes e poderosos, e que os pobres sejam glorificados’. Como sempre há no mundo mais fracos do que fortes, é o segundo cristianismo que triunfou e que ainda triunfará. Se os fracos não são governados, eles querem governar, eis tudo. Ora, a regra dos fracos é: abaixo os fortes.

"A grande autoridade bíblica campeã deste clamor é o Apocalipse. Os fracos e os pseudohumildes vão varrer todo poder, glória terrestre e riqueza da superfície do globo, pois eles, os verdadeiros fracos, vão reinar. Por um milênio teremos santos pseudohumildes, horrorosos de olhar. Mas é precisamente rumo a isto que a religião tende atualmente: abaixo a vida livre e forte, que os fracos triunfem, que os pseudohumildes reinem. A religião de autoglorificação dos fracos, o reino dos pseudo-humildes. Este é o espírito da sociedade de hoje, tanto religioso como político".

Apocalypse, de D. H. Lawrence. Aquele mesmo Lawrence de O Amante de Lady Chatterley. O livro é de 1931. Não por acaso, 14 anos depois da Revolução de 17.

 
ESTUPIDEZ AVANÇA



Essa agora! Os ministros de Relações Exteriores da União Européia (UE) aprovaram nesta segunda-feira um acordo que permite aos Estados Unidos ter acesso a uma série de informações pessoais de passageiros de vôos transatlânticos, incluindo orientação sexual, política e religiosa.

Quer dizer que, na hora de embarcar para os States, devemos preencher formulário indicando se somos judeus, católicos, islâmicos, sikhs, budistas ou umbandistas, se votamos à esquerda ou à direita, se somos heterossexuais, homossexuais ou bissexuais? Santa e protestante ingenuidade! Religião, preferências políticas e sexualidade são questões de foro íntimo, de inviável comprovação. Ou pretendem as autoridades americanas que todo homossexual se declare homossexual ao pedir visto de entrada? Suporão que um xiita ou sunita vai declarar-se xiita ou sunita ao embarcar?

Pelos termos do novo acordo - diz o noticiário on line - o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos terá acesso a endereço, número de cartão de crédito, situação de saúde, eventual associação a sindicatos e origem étnica de todos os passageiros que queiram entrar no país provenientes da Europa, além de eventuais pedidos de refeição especial feitos às companhias aéreas. As informações são fornecidas pelos próprios viajantes ao fazerem as reservas.

Quais os critérios para definir a origem étnica? No Brasil, o senador Paim Filho quer instituir a carteira de negro. Mas e nos outros países que se recusam a esta política racista? E se eu não uso cartão de crédito? E se considero que minhas condições de saúde são informações que só a mim dizem respeito - como realmente o são? Devo declarar no consulado, na hora de pedir o visto, se como kasher ou halal? Se sou vegetariano ou carnívoro? Se como kasher, estou acima de toda e qualquer suspeita? Se como halal, serei um perigoso terrorista?

O comissário europeu de Justiça e Segurança, Franco Frattini, assegurou que o acordo inclui uma cláusula pela qual os Estados Unidos se comprometem com a proteção dos dados recebidos, que podem ser utilizados exclusivamente "com o objetivo de prevenir e combater o terrorismo e outros crimes graves". Desde quando opção sexual pode ser indício de terrorismo? A menos que os americanos andem lendo muito o Olavo de Carvalho. Neste caso, talvez já estejam informados sobre a insidiosa conspiração homossexual que ronda o planeta para exterminar com os ditos valores judaico-cristãos.

Na semana passada, o Parlamento Europeu declarou que o tratado é incompatível com os princípios básicos europeus e que é lamentável o fato de que os dados pessoais de cidadãos da UE sejam tratados de acordo com a legislação dos Estados Unidos. Se o Parlamento Europeu já se sente de braços atados ante a decisão imperial dos States, imaginem os brasileiros o que vai nos tocar. Pior ainda, Frattini estaria planejando adotar o mesmo esquema de intercâmbio de dados de passageiros aéreos entre os 27 países da UE.

Os Estados Unidos parecem não apenas terem sido contaminados pelo festival de besteiras que hoje impera no Brasil, como também parecem estar contaminando a Europa. O acordo, além de totalitário e invasivo, é estúpido e inócuo. Terá provavelmente origem naquela mentalidade protestante, que julga que quando alguém responde a um formulário está fornecendo apenas a verdade e nada mais além da verdade.

A Europa já tem dado mostras de render-se ao avanço islâmico. Se render-se agora à estupidez ianque estará dando mais um passo rumo ao fim de tudo que um dia defendeu: liberdade de ir-e-vir, liberdade de pensamento e de expressão de pensamento, igualdade racial, liberdade de culto e direito à privacidade.

Nós, da periferia, estamos ficando cada vez mais órfãos.

domingo, julho 22, 2007
 
MESLIER NA PRAÇA




Livro bom na praça. Trata-se de Ateísmo e Revolta, de Paulo Jonas de Lima Piva, uma análise do pensamento do padre ateu Jean Meslier, que viveu no século XVII. O livro é da editora Alameda. Há uns dois anos, comentei o assunto.

O abade Jean Meslier morreu em Étrépigny,França, em 1729, com a idade de 65 anos. Ao morrer, após mais de quarenta anos à frente de sua paróquia, resolveu dizer o que pensava do cristianismo em um gordo livro, singelamente intitulado Mémoire dés pensées et dés sentiments de Jean Meslier, prêtre, curé d’Étrépigny et de Balaives, sur une partie des erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l’on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les religions du monde pour être adressé à ses paroissiens aprés sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité à eux, et à tous leurs semblables, e publicado postumamente.

Meslier, que vivera uma pacata vida de cura de aldeia, uma vez morto se sente livre para expressar o que sempre pensara. E solta o verbo:

- De onde tiramos que um Deus que seria essencialmente imutável e imóvel por sua natureza poderia no entanto mover algum corpo? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma extensão nem parte alguma seria no entanto imenso, e mesmo infinitamente esparso por toda a parte? De onde tiramos que um ser que não teria cabeça nem cérebro seria no entanto infinitamente sábio e esclarecido? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma qualidade nem nenhuma perfeição sensíveis seria no entanto infinitamente bom, infinitamente amável e infinitamente perfeito? De onde tiramos que um ser que não teria nem braços nem pernas e que sequer seria capaz de mover-se seria no entanto todo-poderoso e faria verdadeiramente todas as coisas? Quem teve a experiência disto?

- Depois disso, que pensem, que julguem, que digam e que façam tudo o que quiserem no mundo, pouco estou me preocupando; que os homens se ajeitem e governem como eles quiserem, que sejam sensatos ou sejam loucos, que sejam bons ou que sejam maus, que digam ou que mesmo façam o que quiserem depois de minha morte; não me preocupo; eu já quase não faço parte do que se faz no mundo; os mortos com os quais estou prestes a juntar-me não se incomodam mais com nada, não se intrometem mais em nada, e não se preocupam mais com nada. Terminarei então isto pelo nada, também sou pouco mais que nada, e em breve não serei nada.

Liberto pela morte dos horrores da Inquisição, Meslier desafia seus pares:

- Que os padres, que os pregadores façam então de meu corpo tudo que eles queiram; que eles o rasguem, que o cortem em pedaços, que eles o assem ou façam dele um fricassé, e que mesmo o comam se quiserem, no molho que desejarem, eu absolutamente não me preocupo; eu estarei então totalmente fora de seu poder, nada mais será capaz de me fazer medo.

 
VIAGEM RUMO AO SILÊNCIO



Pouco a pouco, o telefone celular foi se tornando uma perversão do mundo contemporâneo. De início, foi sinal de status. Um dos primeiros celulares a chegar no Brasil era um tijolo que custava algo em torno de 20 mil dólares. Foi se tornando barato, como é normal nesse tipo de serviço, mas ainda assim denotava status. Não faz muito tempo, dois objetos eram indefectíveis ao lado de cada freqüentador de um bar: a chave do carro e o celular. Eventualmente, havia um terceiro, o pacote de cigarros, hoje caindo de moda.

Se hoje se tornou objeto do dia a dia, com ele ainda não me acostumei. Quando estou conversando com amigos, não gosto de ser interrompido por alguém distante. Nada me soa tão absurdo como ver quatro pessoas em uma mesa, cada uma conversando com uma outra no outro lado da linha. Há também um certo narcisismo no uso do aparelhinho. Quem já não viu um executivo ou coisa semelhante, tratando de grandes negócios e vultosas somas, aos berros, em um bar? Pior do que o celular, só o tal de Nextel, onde se ouve inclusive o outro interlocutor.

Neste sentido, sou obsoleto. Não costumo usar celular. Como herdei um de minha Baixinha, acabo por usá-lo. Mas só aos sábados e domingos, das 13h às 15h. É quando estou em status randômico, pensando em com quem vou almoçar ou bebericar algo. Há uns dois anos, navegando pela Terra do Fogo, senti na pele como é bom estar longe dos penduricalhos eletrônicos da era hodierna. Fora do alcance de qualquer satélite, vivi cinco dias sem televisão, nem Internet, nem telefonia. Rádio, só para emergências. Não, não sou um neoludita. Mas uma pausa assim na vida faz bem à alma. Nada mais terapêutico que uma semana sem notícias do planetinha. (Mas não mais que uma semana. Na segunda, já começo a sentir falta da humana algaravia).

Leio no Libération de hoje, que as autoridades de uma zona rural da Colômbia britânica, no Canadá, querem atrair turistas mantendo sua região livre de telefonia celular. Não que pretendam destruir as torres de telefonia celular. Mas como no vale de Slocan esta algaravia ainda está ausente, os nativos preferem que assim continue. Um grupo de habitantes do vale pediu à empresa Telus para não construir as torres de transmissão que estavam previstas em New Denver, uma antiga cidade mineira que tem hoje cerca de 600 habitantes. "O fato de que nós não tenhamos serviço de telefonia móvel significa que podemos aproveitar a vida sem o ruído incessante dos aparelhos, imediatamente seguido de uma conversação em voz alta", declara uma autoridade local.

Se a Telus não construir as torres, as autoridades locais pretendem promover o label "sem celular" do vale, para encorajar o turismo. Há muito defendo a idéia de que o silêncio está se tornando algo tão raro, que talvez seja um dia atrativo para turistas. Viajar rumo ao silêncio, comprar uma semana ou duas de silêncio, é pacote que muito me atrai. Pelo jeito, o fenômeno já está em seus albores.

sábado, julho 21, 2007
 
EM PÚBLICO, CORAÇÃO SANGRA




A primeira manifestação do governo sobre o desastre da TAM foi o famigerado gesto do assessor especial para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia. A segunda foi a de Lula, que levou mais de 72 horas para dizer qualquer coisa a respeito. “Eu estou com o coração sangrando”, disse.

Já Marco Aurélio afirmou que jamais faria aquele gesto em público. Disto todos sabemos. Não fosse uma janela providencialmente aberta e um cinegrafista curioso, a reação do assessor especial permaneceria oculta à opinião pública. Neste sentido, é de louvar-se a desfaçatez de Marta Suplicy, que ousou dizer em público o que pensa do caos do tráfico aéreo: "relaxem e gozem". Ou o cinismo do ministro da Fazenda, Guido Mantega, que não viu nenhum despropósito em atribuir à "prosperidade do país" o descalabro do tráfico aéreo no Brasil. O que nos faz sentir profunda lástima desses países pobres, como França, Alemanha ou Estados Unidos, onde os aviões saem no horário. Coisa de países sem prosperidade alguma.

Se algo já se pode deduzir desta crise, é a visão elitista dos sedizentes trabalhadores do Partido dos Trabalhadores. Qual a primeira providência de vulto de Lula, uma vez no Planalto? Foi comprar para seu uso exclusivo - com o dinheiro do contribuinte, é claro! - um avião de luxo, ao qual nem um sultão do Burnei se daria o luxo. Para os ministros, que têm jatinhos especiais com aterrissagem privilegiada em qualquer aeroporto, tanto faz como tanto fez que milhares de passageiros sofram nas salas de espera.

Uma elite vinda de baixo tomou o poder no país. Uma vez no poder, abusa do poder como nem mesmo o aristocrata Fernando Henrique Cardoso fez. Em público, o coração sangra. Nos corredores, fodam-se os brasileiros todos.

Pior cego é o que aprendeu a ver.

sexta-feira, julho 20, 2007
 
A MORTE E SUAS VIRTUDES:
DE CANALHA A SANTO DA NOITE PARA O DIA





"Como amigo, o seu desaparecimento nos entristece, embora esteja certo de que seu exemplo continuará a marcar a Bahia e o país, inclusive por meio de seus descendentes".
Marco Maciel, senador (DEM-PE)

"Ele ainda fazia parte do futuro. A presença dele sempre foi um ponto de equilíbrio".
Romeu Tuma (DEM-SP), corregedor-geral do Senado.

"É uma perda muito grande para a Bahia, para o Nordeste, para o partido e para o Senado da República".
Roberto Magalhães, deputado federal (DEM-PE)

"Quem perde não é só a Bahia, mas o Brasil, sobretudo aqueles que, na Bahia, mais precisavam".
Vic Pires Franco, deputado (DEM-PA)

"É um homem que marcou a história do Brasil. Gostasse ou não dele, foi um homem importante".
Pedro Simon, senador (PMDB-RS)

"ACM era um político audacioso. Um oposicionista combativo a quem devemos prestar nossas homenagens".
Walfrido dos Mares Guia, ministro das Relações Institucionais

"Ele fará muita falta ao debate político".
Aloizio Mercadante, senador (PT-SP).

"Independente das cores partidárias de cada um, o ACM faz parte da História do Brasil".
Tarso Genro, ministro da Justiça

"É inegável que o senador foi uma presença muito forte na cena brasileira".
Eduardo Campos (PSB), governador de Pernambuco.

"ACM gerava um sentimento de amor ou ódio, mas, na política, não gerou indiferença e isso é uma qualidade. Ele era polêmico, desbravador, e até atropelador".
Gustavo Fruet, deputado (PSDB-PR)

"Ele sempre soube distinguir picuinhas pessoais do profissional e, ao contrário do que se pensa, podia ser explosivo, sim, mas não era um homem rancoroso".
Jefferson Peres, senador (PDT-AM)

 
QUESTIÚNCULA COLATERAL,
MAS NÃO MENOS IMPORTANTE




Justo nestes dias do acidente da TAM, após quatro meses de ausência, voltou a meu bar um garçom que muito estimo. Fora acometido por um câncer. Foi internado, tratado por uma equipe de médicos, operado e acabou voltando ao ror dos vivos. Cumprimentei-o emocionado em sua volta, contente em vê-lo de novo.

- Graças a Deus, ressuscitei - me disse.

O homem é tratado pelo que de mais adiantado tem a medicina desta cidade, com tecnologia de ponta, por médicos dedicados... e agradece sua vida ao tal de Deus. Não dá pra entender.

Volto ao acidente. Leio no noticiário que um funcionário da TAM, que pretendia jogar-se do alto do prédio em chamas, decidiu esperar e acabou sendo salvo pelos bombeiros. Em declaração aos jornais, agradeceu ao tal de Deus a salvação de sua vida. Nenhuma menção aos bombeiros que arriscaram a própria vida para salvá-lo.

quinta-feira, julho 19, 2007
 
A FINESSE DO ASSESSOR ESPECIAL




Em meus dias de foca, no Diário de Notícias, de Porto Alegre, fiquei mais ou menos célebre por resposta que dei ao editor do jornal. Eu fizera a cobertura de um incêndio na madrugada, fiz um rápido texto legenda, arrumei minhas coisas e saí da redação. Ainda na porta, ouvi o editor que me perguntava:

- As causas?
- Desconhecidas - respondi.
Ia descendo por um elevador de porta pantográfica, quando ouvi ainda um fio de voz do editor:
- E os prejuízos?
- Incalcuuuulllaaaadooos - gritei, enquanto descia.

Um incêndio, em seus primeiros momentos, só pode ter causas desconhecidas e prejuízos incalculados.

Leitores querem saber quando vou escrever sobre o desastre com o avião da TAM. Escrever o quê? Que se pode saber logo após um desastre destas dimensões? Maior que a explosão do Air-Bus foi a explosão de especialistas que surgiu logo após o acidente. Pessoas que nada tinham a ver com aeronáutica, segurança de vôos ou mesmo de vôos, logo passaram a explicar as causas da queda do avião. Imediatamente formou-se uma corrente de opinião que atribuiu a culpa do acidente ao governo. Se o acidente ocorrera em virtude da falta de ranhuras na pistas, se a falta de ranhuras na pista era responsabilidade da Infraero, e se a Infraero é responsabilidade do governo, logo a responsabilidade é do governo. As vaias a Lula no Rio foram vistas como antecipatórias do desastre. Uma amiga, ainda na mesma noite do fato, telefonou-me querendo se agora finalmente Lula iria cair.

Santa esperança, a de minha amiga. Se uma montanha de evidências de corrupção e de cumplicidade com a corrupção não derrubaram Lula, não será um insignificante Air-Bus que lhe arrancará o osso do poder. Além do mais, a hipótese mais óbvia não parece ter passado de um wishful thinking. O Estadão de hoje traz uma página inteira de leitores e internautas manifestando uma reação indignada contra o governo. Ora, pouco mais de 48 horas depois, uma nova e mais viável hipótese toma conta dos jornais, a de um defeito no reverso dos motores. A própria TAM confirma a falha mecânica.

Longe de mim pretender defender este governo. Mas desde há muito afirmo que atribuir a um governo corrupto culpas que não são suas é o mesmo que dar mais alento a este governo corrupto, que pode então colocar-se na confortável condição de vítima de calúnias. Significativo foi o delicado gesto do douto humanista Marco Aurélio Garcia, assessor especial de Assuntos Internacionais da Presidência da República, ao ouvir na TV que a causa do acidente teria sido uma falha mecânica do Air-Bus. Confira aqui: http://br.youtube.com/watch?v=YGkLK9nYUtg

Com a finesse de quem foi professor na famigerada Université de Paris VIII, considerada "la poubelle du Tiers-Monde", o velho e desdentado comunista mandou todo mundo foder-se. Desdentado mas ainda morde.

 
GERMAN MUHAMAD?



Comentei, na segunda-feira passada, o caso de um motorista alemão que parou um ônibus em Lindau am Bodensee, na Alemanha, para reclamar do decote de passageira. O motorista pediu a ela que trocasse de lugar ou saísse do veículo. Considerei estranho que a imprensa fornecesse até mesmo o nome da moça, mas não o do motorista.

Um leitor me envia link para um blog com a foto de Deborah Moscone, 20 anos, e de seu decote: http://www.dvorak.org/blog/?p=12607. Já temos não só a identidade da moça, mas também foto do indigitado decote. Um decotinho razoável, mas que sequer chega a ser generoso, como os leitores podem julgar. Mas ainda nada do nome do motorista. O blog fala apenas de um "german bus driver". Terá o politicamente correto invadido inclusive a blogosfera alemã?

German bus driver? German, até pode ser. Mas que espécie de german? Mohamad? Muhamad? Hussein? Duvido que um alemão de cepa se escandalize com aquele modesto decote.

quarta-feira, julho 18, 2007
 
PSICANALISTA GASTA VERBO À TOA



Uma das coisas, entre muitas, que me divertem, é ler consultórios sentimentais. Outra é assistir os pastores evangélicos na madrugada. Mas isto já é outro assunto. Volto aos consultores sentimentais. A Veja on line agora tem um, a psicanalista Betty Milan. A consulta da semana passada é das mais divertidas. Diz o consulente:

Sou casado há 40 anos. Há 30, eu me relaciono com jovens travestis. Sei que estou errado em relação à minha mulher, mas o desejo que sinto quando vejo um belo travesti me faz perder totalmente o controle. Minha mulher já descobriu, mas procura aceitar a situação. Ela sabe que as primeiras experiências sexuais que tive foram com pessoas do mesmo sexo. Isso quando eu estudava em colégio interno. Resumindo, não sou e não faço ninguém feliz. Por um lado, desrespeito a minha mulher. Por outro, me sinto um marginal, tendo que representar diante daqueles com os quais convivo.

Ao responder, a Dra. Começa cometendo um grave erro. Diz que o mito do andrógino está em todas as civilizações, "está presente inclusive na Bíblia. Eva só pode ter saído da costela de Adão, porque antes do nascimento dela, Adão era homem e mulher". Estranha interpretação, porque no Gênesis fica claro que no início não havia homem e mulher, mas apenas homem. Para que o homem tivesse companhia, de sua costela fez uma mulher. Mas a costela era costela, não mulher. O hagiógrafo, em verdade, terá bebido na mesma fonte em que bebeu Platão que, este sim, fala de um ser originariamente andrógino. Ora, mitos podem ser uma tentativa do homem primitivo de explicar o mundo. Ocorre que não explicam. Se explicassem, tudo seria mais fácil. Bastaria recorrer aos textos antigos para que o mundo se tornasse inteligível.

Mas a brilhante analista vai adiante. Recorre à mitologia hindu. E diz que Shiva, além de ser o Deus da destruição, é também o Deus do Amor. A analista está inovando em matéria de História das Religiões. Amor é um conceito inexistente na cultura hindu. É coisa de gregos. Shiva é sempre visto como Deus da destruição e da renovação, mas renovação nada tem a ver com o tal de amor.

Diz Milan que entre as representações de Shiva há uma em que "aparece junto com sua esposa Parvati, na figura de um andrógino". Para começar, é espantoso que um articulista de Veja ainda fale em esposa, palavra que pode até ter lugar numa reunião do Rotary, mas jamais em um jornal moderno. (Na Folha de São Paulo, por exemplo, é proibida. A menos que seja citação). Mas isto é o de menos. A analista explica:

"Trata-se de Ardhanarishvara, metade homem e metade mulher, materialização da dualidade indivisível do masculino e do feminino. À direita da imagem, o braço musculoso de Shiva. À esquerda, o braço delicado de Parvati”. Considera ainda que “a dualidade indivisível dos sexos é tão importante na Índia que certos homens, entre 15 e 18 anos, se castram voluntariamente por desgosto de pertencer a um único sexo, revoltam-se contra a biologia".

E conclui, tentando consolar o consulente: "Mas o que importa é dizer a você que, sendo brasileiro, você é um shivaita nato. Não suporta a separação do masculino e do feminino. Podia parar de se torturar e levar a sua vida dupla, que não faz mal a ninguém, ou melhor, só a você mesmo - por causa da culpa".

Embora não freqüente círculos de analistas, tenho observado uma tendência crescente a ver estes vigaristas apelando a mitologias para explicar o mundo. Ora, as mitologias têm um sentido apenas metafórico, jamais se pretenderam ciência nem mesmo verdade. Mitologia deve ser lida como poesia, como tentativa de tatear o real dos antigos, jamais como metodologia para entender o ser humano.

Ora, o homem apenas gostava de relações com travestis. Não é preciso recorrer a mitologia nenhuma para explicar tão singela preferência. É apenas uma das facetas do relacionamento homossexual. A erudita analista gastou verbo à toa.

terça-feira, julho 17, 2007
 
CRIMINOSO E SACERDOTE




Escrevi há pouco que os abusos sexuais de adolescentes constituem um crime tipicamente católico. A Santa Sé parece ter percebido e já põe as barbas de molho. Pedofilia não é exclusividade da Igreja, disse o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, em nota divulgada hoje na página da Rádio Vaticano, ao comentar o acordo financeiro feito entre a Arquidiocese de Los Angeles com 508 supostas vítimas de abuso sexual por sacerdotes. E já vou avisando que “supostas” vai por conta da agência BBC Brasil. Supostas, coisa nenhuma. Foram vítimas, sem mais adjetivos. Se a Arquidiocese de Los Angeles fez um acordo em valores tão altos (US$ 660 milhões), é porque percebeu que perderia muito mais se não o fizesse.

Padre Lombardi sofisma. Ninguém está afirmando que pedofilia é exclusividade da Igreja. Seria uma afirmação insensata. Padre Lombardi lança ao ar uma acusação inexistente, mais fácil de ser contestada, para que melhor possa ser contestada. "Como o problema dos abusos contra a infância e sua adequada tutela não se refere de jeito nenhum somente à Igreja, mas também a muitas outras instituições, é justo que estas também tomem as medidas necessárias", disse o sofista vaticano.

Já que falou em outras instituições, poderia prestar-nos o favor de nominá-las. Ocorre que tais instituições não existem, padre Lombardi. Os abusos sexuais de crianças e adolescentes existem no mundo todo, disseminados pela sociedade toda. O que nunca se viu foi um crime estar tão intimamente associado a uma instituição, no caso a Igreja Católica. E associado não ao laicato, mas a seus ministros, o que é mais grave.

Que o Vaticano minta, se entende, afinal toda sua pompa e fortuna repousa sobre uma mentira milenar. O que é deplorável é ver um porta-voz mentindo primariamente, como menino que foi pego fazendo travessura.

Segundo padre Lombardi, o acordo feito é um sinal do compromisso da Igreja em fechar uma "página dolorosa" e passar a olhar para a frente, "na linha da prevenção e da criação de um ambiente sempre mais seguro para as crianças e os jovens em todos os âmbitos da pastoral da Igreja". Cantiga para ninar pardais. Os abusos continuarão sendo cometidos ad aeternum, enquanto existirem sacerdotes sexualmente reprimidos e crianças por perto. Não encontramos este tipo de crime em outras igrejas, que permitem que seus ministros casem. A grande praga social não é o divórcio, como pretendeu Bento XVI, este papa que em seus muitos anos de convívio íntimo com o poder eclesial parece nada ter visto dos crimes cometidos pelos ministros de seu rebanho. Praga social são os abusos sexuais. Tão abomináveis quanto a ablação do clitóris e a infibulação da vagina.

Os padres, em sua ordenação, professam três votos: obediência, pobreza e castidade. A obediência há muito foi pras cucuias. Há padre rezando missa como bem entende, transformando o ofício divino em show-business e, pior, pregando marxismo. Quanto à pobreza, quando uma paróquia se dispõe a pagar 660 milhões de dólares para livrar seus padres da prisão, nos perguntamos até que ponto foi levado em conta tal voto. E do voto de castidade já nem se fala mais. Padres pedófilos à parte, o Ocidente está inundado de padres que cultivam relações com homens e mulheres adultos. A bem da verdade, um padre não tem sequer o direito de masturbar-se. É pecado. Está profanando um templo do Espírito Santo.

Que os padres cometam pecados, isto não nos diz respeito. É algo que só concerne à relação deles com Deus. O problema é quando o pecado coincide com crime. Se a Igreja fosse pagar em milhões de dólares os pecados cometidos pelos seus, há muito estaria falida. A indenização milionária paga pela Arquidiciose de Los Angeles diz respeito apenas aos crimes.

A Igreja Católica entrou no século XXI exibindo um novo tipo de criminoso, o criminoso-sacerdote.

segunda-feira, julho 16, 2007
 
EUROPA INOVA EM JORNALISMO




Leio na BBC Brasil que um motorista parou um ônibus hoje em Lindau am Bodensee, no extremo sul da Alemanha, para reclamar do decote de passageira. O motorista pediu a ela que trocasse de lugar ou saísse do veículo. A assistente de vendas Deborah Moscone, 20, estava sentada em um dos bancos da frente do ônibus vestindo uma camiseta que deixava à mostra boa parte de seus seios. A imagem era bem visível no espelho retrovisor do motorista, que parou o veículo para reclamar do decote. O motorista disse a Deborah que a visão dos seios o estava incomodando e que ela colocava em risco a segurança dos demais passageiros do ônibus.

A primeira exigência de uma reportagem é a resposta a quatro perguntas: Quem? Quando? Onde? Como? O texto da BBC responde às três últimas. Só faltou a primeira: quem? Esta resposta está sempre ausente na maioria das reportagens européias que tratam de assuntos semelhantes nos últimos anos. No caso de crimes, há quem alegue que uma pessoa só pode ter o nome citado após ter sido julgada e condenada. Ora, não procede. Quando se trata de crimes políticos ou corrupção, o nome do suspeito passa a freqüentar as primeiras páginas dos jornais, antes mesmo de qualquer julgamento. Sem ir mais longe, Jacques Chirac. (Não vai nisto nenhuma defesa ao homem). É citado a toda hora como implicado em casos de corrupção, sem que jamais por isso tenha sido julgado.

Que mais não seja, no episódio ocorrido em Lindau am Bodeense, não houve crime algum. Não haveria prejuízo algum ao motorista caso seu nome fosse citado. O que parece ocorrer é que implicados em crimes políticos ou de corrupção são quase sempre nacionais. E os implicados em faits divers desse tipo, são quase sempre imigrantes ou filhos de imigrantes.

Comentei outro dia o caso de um homem que confessou ter assassinado seus três filhos, encontrados mortos na banheira de sua casa em Montélimar, no Estado de Drôme, na região sul da França. Os jornais franceses noticiaram o fato, mas não deram um pio sobre o nome, ou pelo menos a nacionalidade ou origem, do autor do crime. A imprensa européia já não ousa dar nome aos bois, quando os bois são árabes ou africanos. Desde há muito a imprensa européia vem omitindo o quem. No ritmo em que o politicamente correto invade a Europa, em breve a regra de ouro do jornalismo será reduzida a apenas três perguntas.

domingo, julho 15, 2007
 
UM CRIME TIPICAMENTE CATÓLICO



Em maio passado, o cardeal Roger Mahony anunciava que a Igreja Católica de Los Angeles pensava em vender o Centro Católico arquidiocesano da cidade para pagar as indenizações de 60 milhões de dólares a vítimas de abusos sexuais por parte de alguns sacerdotes. "Algumas propriedades serão mantidas para o funcionamento de futuras paróquias, futuras escolas e estabelecimentos ministeriais semelhantes. Preferiríamos mantê-las todas, mas não temos nenhuma saída para arrecadar dinheiro, a não ser com as vendas", explicou o cardeal na ocasião.

Segundo estudo encomendado em 2003 pela Conferência Nacional dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, 10.667 pessoas haviam apresentado queixas contra 4.392 padres e diáconos entre 1950 e 2002, ainda que os críticos aleguem que muitas das vítimas nunca apresentaram queixa, e que muitas queixas não foram registradas pela Igreja. Pelo menos cinco dioceses católicas tentaram o calote: entraram com uma declaração de quebra, por não poderem fazer frente às demandas das vítimas de abuso sexual, estimadas em centenas de milhões de dólares. O calote permitiria à diocese continuar funcionando normalmente, com os credores ficando apenas com uma parte dos ativos.

Ao que tudo indica, o cardeal Mahony subestimava o montante da dívida. Segundo o noticiário de hoje, a Igreja Católica chegou a um acordo financeiro estimado em US$ 660 milhões (dez vezes mais do que o previsto pelo cardeal) com mais de 500 pessoas que alegam ter sido vítimas de abuso sexual por padres. Isto apenas em Los Angeles. Esta indenização elevaria o total de indenizações pago pela Igreja desde 1950, nos Estados Unidos, a US$ 2 bilhões (R$ 3,7 bilhões). Sexo proibido custa caro nos States.

O problema não diz respeito apenas aos padres. "Temos 40 freiras em nosso banco de dados", disse Anne Barrett Doyle, co-diretora da Bishop Accountability, uma organização nacional norte-americana que compila dados sobre abusos sexuais praticados pela Igreja.

Em meio a isso, a Igreja insiste no celibato sacerdotal e prega a castidade a seu rebanho. Os papas, desde Pedro até o Bento, ainda não se deram conta que o problema reside precisamente no celibato clerical e na exigência de castidade. Nunca um crime foi tão intimamente associado a uma casta sacerdotal, mais precisamente a casta católica. Sempre com características homossexuais. Acontece, é verdade, mas é muito raro ouvir-se falar de padres abusando de meninas. Eles gostam mesmo é dos efebos. Cá e lá, ouve-se falar de tais abusos entre evangélicos e luteranos, mas são exceções. A regra é a Igreja Católica.

Parece que os pontífices, observadores privilegiados da História, nada aprendem com suas lições. O abuso sexual por parte dos padres católicos é praga só comparável à ablação do clitóris entre os muçulmanos. Quando os religiosos aprenderão que quem vive plenamente sua sexualidade não precisa abusar do próximo?

sábado, julho 14, 2007
 
O ARQUITETO CEGUINHO



Falando dos jornalistas que vão entrevistá-lo, escreve Oscar Niemeyer na Folha de São Paulo de amanhã:

Raramente algum deles resolve contestar-me: "E no mundo socialista que vocês propõem, o que vai acontecer?" É claro - respondo - que a vida seja mais justa, as habitações serão mais modestas, mas as escolas, as universidades, os grandes empreendimentos humanos - os hospitais, os estádios, os cinemas, os teatros, os museus, os centros culturais - serão mais importantes, porque deles todos participarão. E o homem será mais simples, mais humano, curioso à procura da verdade de sua própria existência, de sua origem tão longínqua que até uma ameba poderá explicá-la. Perplexo diante do futuro, que nada de bom oferece, mas a sonhar com o progresso da ciência, com as viagens interplanetárias que enfrentam as distâncias mais fantásticas.

Niemeyer deve completar um século de existência no final deste ano. Atravessou praticamente todo o século passado. Tinha dez anos quando eclodiu a Revolução Russa. Antes de completar os vinte, Lênin já praticava seus massacres e criava os primeiros gulags da União Soviética. Não havia chegado aos trinta quando surgiram na Europa as primeiras denúncias das purgas stalinistas. Acompanhou a expulsão de cientistas para a Sibéria quando o agrônomo Lyssenko pretendeu que os gens obedecessem às leis da dialética marxista. Teve notícias das perseguições a escritores e artistas organizadas por Zdanov. Tinha 42 anos quando Kravchenko provou ante todo o mundo a existência dos gulags e as atrocidades do regime comunista. Tinha 49 anos quando Kruschev denunciou os crimes stalinistas, em seu "Informe Secreto", durante o XX Congresso do PCUS. Foi testemunha dos massacres de Mao TseTung, desde 1949, quando proclamou a República Popular da China, até 1976, ano de sua morte. Acompanhou as matanças em ritmo acelerado de Pol Pot, de 1975 a 1979. Testemunhou a queda do muro de Berlim em 1989 e o desmoronamento da União Soviética em 1991. Acompanhou toda a cinqüentenária ditadura cubana e seus crimes.

Niemeyer atravessou todo o século passado e parece não ter notado que comunismo sempre significou ditadura, matanças, gulags, tortura, opressão, miséria, desabastecimento alimentar. Sempre. Não houve um único regime comunista no século passado que levasse um país à liberdade, ao progresso, à prosperidade. São calculadas em 100 milhões as vítimas assassinadas pelo regime, computados nesta cifra os massacres de Lenin, Stalin, Mao, Ceaucescu, Envers Hodja, Pol Pot, Fidel Castro. O arquiteto parece nada ter visto. Continua achando que o socialismo que propõe - leia-se comunismo - redimirá o ser humano de todas suas desgraças. É espantoso que seus entrevistadores se limitem à tímida objeção de uma perguntinha cordial e não oponham o cúmplice de criminosos à evidência dos fatos.

Mais espantoso ainda é que Niemeyer venha afirmar estas bobagens em página nobre de um dos maiores jornais do país.

 
CIDADE PEQUENA NÃO VALE A PENA



A brutal e estúpida agressão a uma empregada doméstica no Rio de Janeiro inundou as páginas dos jornais nas duas últimas semanas e provocou indignação nacional. Não era para menos. Uma malta de filhinhos de papai, sempre escorada pelos pais quando cometem barbaridades, demonstrou extraordinária valentia espancando uma moça indefesa numa madrugada deserta. O pai de um dos animais apressou-se em defender a cria: "Não vai ser justo manter crianças que estão na faculdade, estão estudando, trabalham, presos".

O crime, além de revelar a certeza de impunidade das ditas elites do país, revela um outro aspecto da imprensa nacional. Na madrugada do dia 21 de junho passado, dois dias antes do espancamento da doméstica Sirlei no Rio de Janeiro, um crime brutal - e mais grave porque resultou em morte - foi cometido na distante Dom Pedrito, cidadezinha gaúcha lá na fronteira com o Uruguai. O crime teve motivação estúpida. No dia anterior houvera um jogo de futebol entre o Grêmio Porto-Alegrense e o Boca Juniors, de Buenos Aires, pela taça Libertadores da América. O Boca derrotou o time gaúcho e levou o campeonato.

Um negrinho, que habitualmente vivia embriagado, saiu às ruas com uma bandeira do Internacional, para desafiar os gremistas. Seis marmanjos, entre os quais cinco são de famílias ricas da cidade, espancaram o coitado até a morte. A surra foi tão violenta que a vitíma teve o rosto desfigurado. Apesar de Dom Pedrito ser uma pequena cidade de quarenta mil habitantes, os criminosos, todos conhecidos pela população, só foram presos seis dias depois. Talvez até mesmo em virtude da repercussão televisiva da agressão à doméstica Sirlei.

O crime, muito mais hediondo que o do Rio, não mereceu sequer uma linha nos grandes jornais do país. Li uma nota no Estadão on line, e só. Para o jornalismo do centro, crime em cidade pequena, por cruel que seja, não merece maiores atenções.

sexta-feira, julho 13, 2007
 
REMEMBER CHAUÍ



O escândalo grassa no Olimpo dos PHDeuses uspianos. Desde abril, circula entre os físicos da USP uma denúncia de plágio, que envolve três artigos científicos assinados pelo diretor do IF (Instituto de Física), da Universidade de São Paulo, Alejandro Szanto de Toledo. A denúncia veio à grande luz em reportagem da Folha de São Paulo, de 29 de junho passado. Os artigos sob acusação foram publicados nas revistas Physical Review C, Nuclear Physics A e Physics Letters B.

As denúncias contra Szanto foram encaminhadas à Reitoria da USP, mas até agora o professor continua integrado à universidade como se nada demais tivesse acontecido. Pelo que conheço da universidade brasileira, a USP continuará integrado até os dias de sua aposentadoria. Szanto nega a acusação, embora reconheça "erros de referenciamento". Mais um verbete para a novilíngua criada pelo PT e enriquecida por Delúbio Soares, que chamava Caixa 2 de "recursos não-contabilizados". Ou seja, esqueceu de fazer a devida citação. A acusação contra Szanto partiu de físicos da própria USP. Um deles é o professor iraquiano Mahir Hussein, autor de um dos artigos que foram fontes do plágio.

Quem não lembra da famosa affaire da petista Marilena Chauí? A sedizente filósofa plagiou vergonhosamente seu orientador, Claude Lefort. O plágio foi publicamente denunciado por José Guilherme Merquior, aliás com um eufemismo: o ensaísta usou o termo desatenção, não mais que isso. Foi o que bastou para que uspianos e similares jogassem Merquior, com abaixo-assinado inclusive, nas profundas do inferno da direita. Houve até quem dissesse que "Marilena é intelectual e militante. Não possui o tempo necessário para leituras. Ela pode agir assim, pela causa". Claude Lefort, a única parte legítima para denunciar juridicamente o crime, também o relevou, o que deixa no ar a pergunta: que ocultos favores estaria Lefort agradecendo?

Apropriar-se do pensamento alheio parece estar se tornando perfeitamente aceitável na academia. Ana Cristina César, por exemplo, em seu trabalho de mestrado entregue à Escola de Comunicação da UFRJ em junho de 1979, plagiou gordos parágrafos da tese de doutorado de sua orientadora, professora e amiga, Heloísa Buarque de Holanda. Ana C., como é conhecida, suicidou-se em odor de santidade e seu plágio ficou relegado ao esquecimento. Como também o de Chauí, que permaneceu, impertérrita, no magistério da USP, quando deveria ter sido excluída dos quadros da universidade a que pertence. Mas ela é petista. Pode agir assim, pela causa.

Szanto, pelo jeito, também permanecerá impune, tão impune quantos os Genoínos, ACMs, Jaders Barbalhos e Renans Calheiros da vida. Segundo Alaor Chaves, presidente da SPF (Sociedade Brasileira de Física), "houve um estardalhaço exagerado sobre o caso". O fato de não ter havido apropriação de resultados científicos, e sim "cópias de trechos de alguns trabalhos sem a correta citação" tornam o episódio menos condenável. "É plágio também, mas é menos grave", disse Chaves ontem à Folha de São Paulo.

Szanto reagiu atacando. Exibiu em uma reunião um artigo assinado por Mahir Hussein, seu acusador, também com trechos copiados. Se a moda pega, a USP ainda vai virar um grande Congresso Nacional. Szanto permanece, tão impertérrito quanto a intelectual e militante Marilena Chauí, no cargo de diretor do Instituto de Física.