¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, julho 27, 2007
 
BRASIL REDESCOBRE TREM?




De meu apreço pelos cafés da Europa, quem me lê já sabe. Um outro fator me atrai no velho continente e creio ainda não ter falado disto. São os trens. Verdade que ultimamente tenho usado mais avião que trem na Europa, e por uma razão muito simples: voar está ficando mais barato que viajar de trem. Mas já percorri aquelas plagas de trem, de Roma a Estocolmo, de Madri a Viena, e sempre com muito prazer. Europa, para mim, entre outras coisas, é sinônimo de trem. Assim, foi com certo espanto que, ao tomar um trem na Itália com minha filha, há uns quatro anos, ela me disse: “nunca andei de trem”.

Percebi, de repente, que falava com outra geração. Trem é coisa de minha infância e adolescência. Brasileiros, já tivemos trem. O Rio Grande do Sul teve uma excelente malha ferroviária, cujo centro era Santa Maria. Em minha adolescência, cansei de fazer de trem o percurso entre Porto Alegre e Dom Pedrito. Com baldeações em Santa Maria, Cacequi e Rio Pardo. Lembro que o must de Rio Pardo eram os peixes fritos que comprávamos da janela do trem. Em Cacequi, a ferroviária era o grande acontecimento da cidade. Meninas e mesmos prostitutas faziam footing na estação. Suponho que, fora da estação ferroviária, nada mais havia a fazer em Cacequi.

Daqueles tempos, guardo uma terna lembrança. Era quando ia para o último vagão, sentava-me nos degraus junto aos trilhos e olhava, hipnotizado, as paralelas que iam se juntando conforme se afastavam de minha vista. Casebres de quincha e pau-a-pique iam sumindo na distância e eu, adolescente, sentia profunda lástima daquele pobre povo que vivia à beira das ferrovias. Eu ia para a capital, onde havia gentes de toda laia, jornais, universidade, informação, troca de idéias. Eles permaneciam imóveis, sedentários, olhando o trem passar. Tenho muitas horas de olhar trilhos que se juntam ao longe e isto me dava uma espécie de perverso prazer. Criança ainda, sentia-me poderoso e privilegiado. O trem era meu acesso à cultura.

De repente, não mais que de repente, o Brasil parece estar redescobrindo o trem. Após o desastre de Congonhas, o que mais se fala é de trem. As ferrovias foram desativadas e hoje só existem algumas linhas curtas, para saciar o saudosismo de alguns turistas. Este transporte privilegiado, o trem, foi exterminado com o entusiasmo juscelinista pelo automóvel. Que está matando gentes aos montes. Apesar dos últimos desastres aéreos, o automóvel continua matando mais. O automóvel mata aos poucos. Nenhum acidente de rodovia é tão espetaculoso quanto um desastre aéreo. Um carro mata dois ou três. Um avião mata duzentos. Só que um carro mata dois ou três várias vezes ao dia, todos os dias do mês e todos os meses do ano. Matar aos poucos, passa. O que não passa é matar muita gente de uma vez só.

O Brasil, país plano e sem maiores acidentes geográficos que dificultem a passagem de trens, abandonou o trem. Macaquitos, optamos pela opção ianque. Até hoje há quem considere Juscelino Kubistchek um dos grandes presidentes do país. A meu ver, com ele volta o país às trevas. Há ainda tempo de voltar ao futuro? Talvez não. As favelas se tornaram tão hostis e envolventes que hoje não mais permitem o acesso ferroviário aos grandes centros.

Outro abandono foi o do transporte marítimo. Em um país de oito mil quilômetros de costa, é espantoso ver caminhões e cegonhas entulhando rodovias de norte a sul, transportando tanto grãos como combustível ou carros. O transporte - dizia Monteiro Lobato no início do século passado - é um dos grandes problemas do mundo.

O Brasil, pelo jeito, ainda não percebeu isto.