¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 31, 2007
 
MORRE O CINEASTA DAS NEUROSES SEXUAIS




Morreu ontem Ingmar Bergman, o cineasta das angústias humanas, como o definiam alguns críticos. Outros preferiam chamá-lo de o cineasta da alma. Eu já o via diferente, considerava-o como o cineasta das neuroses sexuais. Conto mais adiante. Morreu como eu gostaria de morrer, cercado por suas mulheres. Não morreu de doença alguma, mas de velhice, como normalmente o ser humano deveria morrer. No Brasil, seu nome era pronunciado como Inguimar Berguiman. Nada disso, a pronúncia correta é Inmar Bériman.

Nunca esteve entre meus cineastas prediletos. Tinha uma fotografia belíssima, mas isto deve ser creditado mais a seu fiel fotógrafo, Sven Nykvist. Seus filmes tinham uma acentuada marcação teatral - Bergmann também fazia teatro - que nunca me agradou em cinema algum. Se vou ao cinema, quero ver cinema e não teatro. Além do mais, sua obra era por demais brumosa e metafísica para meu gosto. Sempre preocupado com a morte e com a existência de Deus, o cineasta sueco repassava em quase todos seus filmes estas questões para seus espectadores. Ora, estas perguntas devem ser respondidas bem cedo na vida de um homem e não me parece que um cineasta, ainda que genial, tenha o direito de com elas ficar chateando eternamente seu público.

Bergman é daquela safra de cineastas que embalaram meus dias de universidade, como Antonioni, Buñuel, Godard, Visconti, Fellini, Kurosawa, Andrzej Wajda. Criadores que não se fazem mais. Uns geniais, outros chatos, mas com uma filmografia personalíssima. Entre os chatos, ao lado de Bergman, coloco Godard e Antonioni. Que, aliás, morreu hoje. Minha geração teve o cinema como uma de suas referências culturais e não perdíamos um só filme destes autores. Mas havia um certo snobismo intelectual. Quando víamos solenes soporíferos como os filmes de Godard e Antonioni, a intelectuália portoalegrense não ousava falar em soporíferos e preferia ficar buscando sentidos ocultos onde não havia sentido algum.

Toda vez que falo de Bergman, lembro episódio ocorrido em Porto Alegre, em 1972. Devo ter contado a história dezenas de vezes, nos últimos 35 anos. Vou repeti-la - e com prazer - pois desmascara certas modas intelectuais até hoje vigentes.

Era 72, dizia. Na Reitoria da UFRGS, Gritos e Sussurros era analisado por um crítico de cinema e dois psicanalistas. Como eu estava voltando da Suécia, fui convidado por um terceiro psicanalista para o debate. Porto Alegre, naqueles idos, vivia uma circunstância peculiar: sem produzir filmes, tinha uma crítica de cinema ativíssima. Luis Carlos Merten, o crítico, abriu os debates, com voz empostada: "Dois são os instintos básicos da humanidade: sexo e fome. Como não existe fome na Suécia, os suecos fazem um cinema de sexo".

Sem discutir a veracidade histórica da afirmação (no final do século XIX, Estocolmo era uma das cidades mais pobres e sujas da Europa), considerei que no Brasil ninguém passava fome. Vivíamos em plena época das pornochanchadas e o cinema nacional girava em torno a sexo. Merten mudou de assunto e passou a falar de Bergman, o "cineasta da alma".

Discordei. A meu ver, Bergman era o cineasta das neuroses sexuais. Em sua filmografia, o relacionamento físico entre os personagens é sempre sofrido, doloroso, traumatizante. (Quem não lembra o episódio dos cacos de vidro introduzidos na vagina, em Gritos e Sussurros?). Não por acaso, o cineasta estava em seu quinto casamento. Homem que não se acerta com uma mulher - afirmei - não se acerta com cinco nem com vinte e cinco. Mal terminei a frase, fui interrompido por um dos psicanalistas: "Não podemos invadir a privacidade de Bergman, que está vivo. Falemos de sua mãe, que já morreu".

(Pequeno intervalo: Merten parece continuar obcecado pela idéia de fome e sexo. No Estadão de hoje, escreve: "Essas questões metafísicas foram transformadas em temas e o cinema de Bergmann trata da fome e do sexo". Me parece difícil encontrar a temática da fome no cineasta sueco. Merten ajunta: "fome de sexo". Diria que tampouco é isso, e sim um horror luterano a sexo. Volto a Porto Alegre).

O debate continuou por outros rumos. Em uma das cenas, a personagem principal, interpretada por Liv Ullmann, após jantar com o marido, pergunta-lhe se quer café ou se vai dormir. Interpretação do segundo psicanalista: "Café ou cama. Temos uma manifestação típica de sexualidade oral". Observei aos participantes da mesa que pretendia convidá-los para um cafezinho após o debate. Como arriscava ser mal interpretado, desistia da idéia. O debate foi rico em pérolas do mesmo jaez. Registro mais uma.

Da platéia, alguém perguntou porque razões Liv Ullmann usava duas alianças no mesmo dedo. Interpretou um dos analistas: "Agressão instintiva ao marido, desejo de viuvez antecipada. Ou ainda, uma projeção homossexual na mãe. Ela vê na mãe os princípios masculino e feminino e usa os dois símbolos no dedo". Lavei a alma naquela noite: o douto analista ignorava que na Suécia as mulheres costumavam usar ambas as alianças, a própria e a do marido.

Se a história terminasse aqui, até que não seria grave. Ao sair da Reitoria, fui abordado pelo Sérgio Messias, o psicanalista que me convidara para o debate: "Por que aquela agressão pessoal ao Meneghini? Tens algo contra ele?" Referia-se àquele que insistia em falar da mãe do Bergman. Ora, não me parecia ter agredido ninguém. E muito menos o tal de Meneghini, que via pela primeira vez em minha vida. "Acontece que ele também está na quinta esposa. E como sempre as leva para morar com a mãe, parece que também não está dando certo". Atirei no que vi, acertei no que não vi.

Você já ouviu falar, leitor, de pessoas que não conseguem dormir porque não conseguem parar de rir? Foi o que me aconteceu naquela noite. Ri sozinho até boas horas da madrugada.

Assim se pensava, naqueles anos. De Antonioni, o outro monstro sagrado que hoje morre, também tido como "cineasta das angústias existenciais", tivemos de engolir a trilogia mais chata que já foi me dado ver, A Aventura, A Noite e O Eclipse. Era insuportável ver Monica Vitti caminhando sem rumo na noite, por minutos que pareciam não mais acabar. Consta que certa vez la Vitti, cuja voz rouca eu adorava, queixou-se a Orson Welles, que um de seus filmes acabava muito rapidamente. "Bom - teria dito Welles - eu poderia deixar a personagem caminhando durante minutos na noite, como o Antonioni faz com você".

Outro chato da época era Jean-Luc Godard. Quando chegar sua hora, voltarei ao assunto.