¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 31, 2007
 
SOBRE FICÇÕES JURÍDICAS



Em crônica intitulada "A Síndrome de Garzón", publicada em 4/2/2000, escrevi:

Quando o procurador espanhol Baltasar Garzón pediu a detenção do general Augusto Pinochet na Inglaterra, para que respondesse na Espanha por crimes cometidos no Chile, ninguém imaginaria que, naquele momento, estava sendo criado um grande quebra-cabeça para os teóricos desta ficção que se chama Direito Internacional. Ficção porque Direito Internacional não existe. O que continua existindo é o antigo e brutal direito do mais forte. Se o Paraguai, sem ir mais longe, pedisse a detenção no Brasil de Bill Clinton por crimes cometidos na Iugoslávia, uma grande gargalhada reboaria nas redações dos jornais do mundo todo.

O governo de Tony Blair, que retém há quinze meses Pinochet, acusado de violação dos direitos humanos, é o mesmo que, sob a sombra protetora dos Estados Unidos, despeja bombas a granel em cidades e aldeias do que restou da ex-Iugoslávia. Blair retém o ditador chileno a pedido do promotor espanhol, que jamais denunciou alguém na Espanha por crimes do franquismo. Exigir o julgamento de ditadores na ex-colônia é bom, digno e justo. Exigir o julgamento dos colaboradores da ditadura dentro da qual Garzón nasceu e fez carreira... melhor esquecer, pode reabrir muitas feridas.

Nos idos da Guerra Fria, a Áustria permaneceu cercada pelos países satélites da finada União Soviética. Encrave europeu que avança rumo ao Leste, já deu ao Ocidente Sissi e Schwartzenegger, Mozart e Schickelgruber. Para quem não sabe, Schickelgruber é o cabo aquele de bigodinho, que virou chanceler da Alemanha e é mais conhecido como Hitler.


Recebi não poucos emails na época, todos insistindo que Direito Internacional existia, sim senhor, que não era de forma alguma uma ficção. Todos esses emails provinham, ou de professores ou de alunos de Direito Internacional, ou de profissionais envolvidos com o ramo.

Há coisa de uma semana, recebo correspondência de um leitor que ousou citar minha visão sobre o tema... em uma prova de Direito Internacional. Levou zero. Segue a questão e a resposta do aluno. O zero decorreu da parte grifada.

- Comente sobre o direito costumeiro como fonte do Direito International Privado.

- O direito costumeiro é fonte primordial do Direito Internacional (tanto público quanto privado), justamente porque o direito internacional não é coativo : por ser limitado pelas soberanias nacionais, o próprio direito internacional é uma "ficção jurídica". Nesse sentido , o costume emerge como fundamental fonte do direito internacional, pois empresta-lhe legitimidade e serve como dirimidor de conflitos formalmente insolúveis, porque sujeitos a soberanias que podem ser ao mesmo tempo absolutas e conflitantes.

Assim, os costumes servem de luz na formação do direito, não só por emprestar-lhe legitimidade, mas também por conta da própria natureza das operações internacionais, sobretudo as mercantis, que se beneficiam da estabilidade de regras - ou dela até dependem - para prosperar. Ora, o costume implica necessariamente em estabilidade, até porque sem esta, por definição, o costume inexiste.


Ora, é claro que existem tratados internacionais que pretendem regulamentar as relações e obrigações entre as nações. Ocorre que quando uma nação poderosa e beligerante rompe com tais tratados, até pode estar sujeita a sanções. Mas quem ousará - ou poderá - aplicar uma sanção? Estado algum. Então, se não existe sanção, o tal de Direito Internacional é ficção. Só se exerce – quando se exerce – sobre Estados mais fracos. Volto à questão que aventei há sete anos: que aconteceria se o Paraguai pedisse a detenção de Clinton no Brasil por crimes cometidos na antiga Iugoslávia? Ou a prisão de Putin por crimes cometidos na Chechênia? Quem aplicará sanções aos Estados Unidos por ter invadido o Iraque, alegando uma mentira óbvia, a existência de armas de extermínio em massa?

Ninguém. Estado nenhum. Por mais eivado de boas intenções que esteja o Direito Internacional, nas relações internacionais o que vige é a lei do mais forte. E se o que vige é a lei do mais forte, Direito Internacional é conto de fadas.

Moral da história: pense duas vezes antes de afirmar a um professor de Direito Internacional que Direito Internacional é piada. Você está menosprezando o ganha-pão dele. É o mesmo que afirmar a um professor católico que direito natural não existe. Ou a um professor marxista que o marxismo morreu. Eles se ofendem.