¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, janeiro 31, 2008
 
CHIUSO SE FECHA



Amigos,

Há pouco mais de dez anos atrás, em 1997, criei o jornal O Expressionista com mais três amigos de faculdade. O jornal foi crescendo ao longo da década, chegando a ter, em média, 20 mil acessos mensais. Claro que não poderia deixar de agradecer todas as pessoas que ajudaram a engrandecer o jornal. Também não posso deixar de lembrar - e agradecer - a amiga Milla Kette, que em toda história do jornal, foi a campeã de audiência, com suas reportagens desde os Estados Unidos. Uma, em especial, atingiu 6 mil visitas num único dia. Tratava das denúncias de corrupção do programa Oil for food da Onu, um verdadeiro furo em toda imprensa nacional, que só veio mencionar o fato dois longos anos depois.

Houve uma época em que não dispunha de tempo para atualizá-lo, e isso fez com que o jornal ficasse quase um ano fora do ar. Com ajuda dos amigos, Moreno Garcia e Sandro Ribeiro, o site voltou na versão que hoje vigora. Neste momento não posso deixar de me desculpar com ambos, por ter descumprido a promessa de pautar o site mais com assuntos culturais do que políticos. Mil desculpas!

Após esta introdução que a mim é muito pertinente, vamos direto ao ponto: é com pesar que lhes comunico que tirarei o site do ar. No entanto, não os deixarei sem os motivos que levaram a tal conclusão.

Em primeiro lugar, não tenho mais tempo disponível para ele, tanto em relação ao sistema (que detém algumas falhas grotescas), quanto em relação ao editorial, que, como editor, seria minha obrigação.

Em segundo lugar, é sempre bom saber a hora de fechar as portas. Um site que já teve uma média de 2.000 visitas diárias, não pode se contentar com uma média de 100. E o declínio é constante, exceto pelas últimas semanas, que com o advento do bate-boca com o sr. Janer Cristaldo, as visitas aumentaram, mas com ela veio o espírito de porco daqueles que têm predileção às porcarias. Claro que o incidente com Janer, pouco influenciou na decisão de fechar o jornal, que já se arrasta desde o final do ano passado. Certamente, precipitou a decisão, o que agora não importa lá muita coisa.

Decerto, Janer com sua nova turminha, não perderão a oportunidade de sair por aí a dizer que eram tão importantes ao jornal que tive que fechar depois e dispensá-los. Ou algo mais criativo que saiam das suas mentes férteis e detetivescas. Seja como for, estou me lixando para o que vão falar. Nos últimos dias foi triste vê-los enchendo a rede com baixarias e cretinices. É constrangedor eles não perceberem.

Por fim, agradeço a todos que colaboraram com o jornal. Peço desculpas aos excessos que aqui foram cometidos.

Aos colunistas, sorte e sucesso!

Aos leitores, um grande abraço e muito obrigado!

Diogo Chiuso



É uma lástima. O Expressionista era um bom fórum de debates e Diogo foi, por vários anos, um bom interlocutor. Aparentemente, não agüentou a liberdade de expressão que a Internet permite. Os jovens, sempre os vi como libertários, pessoas que lutavam contra a censura e a opressão. Ao que tudo indica, os tempos mudaram. Em meus debates, tenho me confrontado mais com jovens que com idosos. Jovens que não aceitam opiniões contrárias ao que pensam.

Embora tenha tido texto censurado no Expressionista, fico triste com o fim do jornal. É uma voz a menos no espaço da Web. Ao mesmo tempo, vejo nesta atitude um desrespeito aos colaboradores que, durante anos, publicaram no jornal sem cobrar um vintém. Diogo, como faziam os inquisidores na Idade Média, queimou uma biblioteca.

 
SOBRE MINHAS VIAGENS



Um menino que nada entende de jornalismo está preocupado em saber como custeio “viajens (sic!) à Europa, vinhos e restaurantes, foie gras, prostitutas” e meu ego. Bom, ego não custa caro. Quanto ao mais, já ouvi várias teorias ao longo de minha vida. No final dos anos 60, em meus dias de universidade, pelo simples fato de não ser comunista, considerava-se que eu era pago pelo DOPS. Se as jovens gerações já não lembram o que quer dizer, explico: Departamento de Ordem Política e Social, organismo do governo criado durante o Estado Novo, cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder.

Comecei então a trabalhar em jornais. Fui imediatamente promovido ao SNI. Se as jovens gerações já não lembram, o Serviço Nacional de Informações foi criado pela lei nº 4.341 em 13 de junho de 1964, com o objetivo de supervisionar e coordenar as atividades de informações e contra-informações no Brasil e no Exterior. Um burguês reacionário que trabalhasse em jornal, naqueles dias, só podia ser agente do SNI. Eu, camponês e filho de camponeses, achava muito divertida a nova profissão que me fora atribuída.

Comecei a viajar. Já na primeira “viajem” – como escreve o menino analfabetinho – percorri a Europa de sul a norte e de leste a oeste. Era jovem, as geografias longínquas me fascinavam e 30 ou 40 horas de trem para mim constituíam lazer. Após um ano de Suécia, voltei para Porto Alegre. Recebi nova promoção. Trabalhava agora para a CIA. Mais ainda: minha missão seria vigiar os exilados brasileiros que planejavam a revolução latino-americana nos hotéis de luxo de Estocolmo e nos restaurantes caríssimos de Gamla Stan.

Que assim seja, pensei. Já que vivia de parcos recursos na Suécia – vinho só em fins de semana e olhe lá! – pelo menos curti o prestígio de espião internacional bem remunerado. A Guerra Fria acabou, tornou-se demodé pichar como agente da CIA quem não fosse comunista. Após toda uma trajetória como jornalista, escritor, tradutor e professor universitário, ainda há quem queira saber como vivo bem. Nesta altura dos acontecimentos, certamente sou financiado pelo Foro de São Paulo.

Nada mais prazeroso para um homem honrado do que falar de si mesmo – escreveu Dostoievski. Não vou perder a vaza. O leitor em questão parece ignorar que a forma mais prática de viajar sem ter muito dinheiro é exercer o jornalismo. Me formei em Direito e Filosofia. Se exercesse o Direito, teria boas chances de acumular bom capital. Mas seria prisioneiro da profissão. Certa vez, viajei um mês pelas ilhas gregas com uma advogada trabalhista gaúcha. Na volta ao sul, ela descobriu que seu sócio no escritório lhe havia roubado todas as causas e clientes. Teve de recomeçar de zero.

Optei pelo jornalismo pela possibilidade de exercer este ofício onde quer que se esteja. Graças à profissão, consegui bolsas e muitas viagens. Volto à minha primeira viagem. Foi em 71. Com minha companheira, percorremos a Europa de ponta a ponta durante dois meses. Irritado com o Brasil – não com a ditadura, mas com o país do carnaval e do futebol – decidi ficar em Estocolmo. Na época, não pretendia mais voltar a meu país. Dois livrinhos me mantiveram em pé no reino dos Sveas: as Poesias Completas, do Fernando Pessoa, e o Martín Fierro, do Hernández. Mas minha mulher era funcionária pública e não era sensato largar seu emprego. Apesar do afeto das suecas, muitas noites chorei, estático junto a uma janela, olhando aquele deserto branco e hibernal dos hiperbóreos. Um dia, um amigo boliviano me disse: Sos un boludo, che! Tienes en Brasil una mujer que te quiere. Que haces en esta tierra de hombres tristes?

Voltei. Foi certamente a decisão mais sensata de minha vida. Desempregado, estava me preparando para um concurso na Capitania dos Portos, para trabalhar como faroleiro no litoral brasileiro. Veleidade romântica minha, afinal eu jamais suportaria a vida de farol. Foi quando fui convidado a substituir Luís Fernando Verissimo na Folha da Manhã, em Porto Alegre. Após um ano de crônica diária, tive uma recaída de uma doença que geralmente acomete quem mora na Suécia, a resfeber. Em bom português, febre de viagens. Candidatei-me então a uma bolsa para um doutorado em Paris. Candidatei-me junto à embaixada francesa, não pela Capes ou CNPq, onde quem não tem pistolão não consegue nada. Não que estivesse interessado em doutorado ou vida acadêmica. Queria aqueles vinhos, queijos e mulheres só encontradiças às margens do Sena.

A bolsa me foi concedida sem que eu tivesse uma única carta de recomendação. Quando o cônsul telefonou-me para anunciá-la, disquei imediatamente para minha companheira. Eu, que sempre fora avesso ao casamento, perguntei à queima-roupa: “queres casar?” Perplexidade do outro lado da linha. “É que estou indo para Paris e quero te levar junto”. Envergonhado, casei meio às escondidas, num cartório ao lado de meu bar.

Às onze da manhã, eu bebia com o Carlos Coelho, excelente amigo e colunista da Zero Hora, na Rotisserie Pelotense. Deixei minha caipirinha pela metade e disse ao Coelho: “segura aí que vou comprar um jornal”. Entrei no cartório, onde já me esperavam familiares e testemunhas. Aí o juiz me fez uma pergunta idiota: você quer casar com esta mulher? Claro que queria, senão não estaria lá. Disse então aos circundantes: “vou comprar um jornal, me esperem na churrascaria aqui na frente”.

Voltei à Pelotense, terminei minha caipira com o Coelho, ele sequer imaginava que naqueles poucos minutos eu mudara de estado civil. Ocorre que Coelho, jornalista futriqueiro, tinha o detestável hábito de ler o Diário Oficial. Viu os proclamas e largou a história na imprensa. Viu os proclamas e largou a história na imprensa. Dia seguinte, tive de dar longa entrevista na Folha, tentando convencer minhas demais amadas que continuava sendo o mesmo homem solteiro de sempre. Não convenci muito.

Mas já estava com um pé em Paris.

 
AINDA MINHAS VIAGENS



Foram anos de muitas viagens. Durante quatro anos, fiz crônica diária para a Caldas Júnior, de Porto Alegre. O vínculo empregatício, mais a bolsa, nos deram vida folgada. Sem falar que o governo francês pagava metade de meu aluguel. A cada início do mês, um funcionário dos Correios me trazia em casa um pacote de notas estalando de novinhas e as contava em minha frente, até o último centime. Os seis primeiros meses de aluguel, por questões burocráticas, atrasaram. Quando peguei a bolada acumulada, compramos bermudas e sandálias e fomos para as ilhas gregas. Daí minha eterna gratidão à França. O Brasil nunca me pagou metade de meu aluguel nem jamais me proporcionou navegações pelo Egeu.

Quando passei a fazer correspondência de Paris, todo dia era festa. Minhas crônicas, eu sempre as elaborava em algum café, ao lado de uma Leffe radieuse. Minha pauta, eu mesmo a fazia. Se jantava em um bom restaurante, escrevia sobre gastronomia. Se andava nas ilhas gregas ou canárias, escrevia sobre as ilhas gregas ou canárias. Se marcava um encontro no Café Florian, em Veneza, com uma amiga macedônia, escrevia sobre o Florian, sobre Veneza, sobre a Iugoslávia e até mesmo sobre minha musa da Peônia, berço do Alexandre. Saudades daquelas noites de Veneza. Nos perdíamos entre os canais e só ouvíamos o chiado dos sapatos no silêncio da noite. Conversando com outros viajores que conheceram a ilha, soube que esta sensação de ouvir o chiado dos sapatos na calçada é bastante comum.

A peoniana levou-me para Skopje e Mljet. Escrevi sobre os soberbos restaurantes nas montanhas próximas a Skopje e escrevi sobre uma ilha de nudismo em Mljet, ilha dentro de um lago dentro da ilha maior, onde passei dias felizes. Não pelo nudismo. Mas pelo silêncio extraordinário da ilhota interior. Lembro que um dia dediquei-me a cortar as unhas e Katitza protestou com veemência contra minha insuportável agressão ao silêncio.

Ursula, uma namorada polonesa – que me chamava de “mon ours tropical” – rendeu-me várias crônicas sobre a Polônia. Não há melhor maneira de conhecer um país do que namorar uma das filhas desse país. Nem melhor dicionário que o dicionário de cabeceira. Em suma, meu lazer era meu trabalho. Durante quatro anos, viajei para onde quis e trabalhei onde quis. Sempre com uma maquininha de escrever a tiracolo. Fui ao Cairo e escrevi sobre o Cairo. Fui ao Sahara argelino, percorri El Hoggar em Land Rover e lombo de camelo, e escrevi sobre as montanhas e os tuaregues de El Hoggar. Aproveitei para escrever também sobre Argel. Percorri alguns países do Leste Europeu e escrevi sobre o socialismo. Participei dos festivais de cinema de Cannes, Berlim e Cartago. Sempre trabalhando. Nada melhor que ter como matéria de trabalho os melhores filmes da Europa e do mundo.

O menino preocupado com minhas viagens demonstra desconhecer o que seja jornalismo. Jornalista, em trabalho, não paga viagens. Além de meu salário e de minha bolsa, viajei subsidiado pela Internationes alemã, pelo Senado de Berlim, pelas mairies de Cannes e de Túnis, pelo Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI), da Espanha, e mais algumas instituições que já nem lembro. Viajar é inerente ao jornalismo. Esta foi uma das razões pelas quais optei pela profissão.

Cansei de Paris. Após quatro anos de Sorbonne Nouvelle, Paris III (a Sorbonne mesmo naqueles dias já não existia), meu orientador ofereceu-me mais um ano de bolsa. Comovido, agradeci. Minha mulher já havia voltado e eu não conseguia viver sem ela. Meu jornal havia falido. Foi quando descobri que doutorado servia para lecionar em universidade, coisa que até então eu sequer havia percebido. Fui lecionar Literatura Brasileira e Comparada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como professor-visitante.

Foram quatro anos de muitos dissabores e muitas alegrias. Os dissabores consistiam no relacionamento com meus colegas e nas reuniões de Departamento, verdadeiros aquelarres onde bruxas caquéticas se dedicavam ao estranho prazer de amarrotar egos alheios. As alegrias me foram dadas por minhas aluninhas, que – muitas delas – me honraram com a honra maior que um professor pode merecer. São homenagens que rejuvenescem.

Ocorre que eu não era marxista, nem petista, nem papista, nem politicamente correto. Claro que não duraria muito no magistério. Certo dia, o chefe de Departamento, com ar grave, veio falar-me. “Uma aluna se queixou ao Departamento que quando entrou na universidade tinha certezas. Depois das tuas aulas, não tem mais certeza nenhuma”.

Nossa! Aquilo foi música para meus ouvidos. Me senti plenamente realizado como professor. Considero que a função maior do magistério é destruir certezas. Também causou espécie meu hábito de orientar teses em bares. Ora, por que não? – objetei. Não existe determinação nenhuma que proíba orientar teses em bares ou mesmo na cama. E continuei orientando meus alunos sempre em torno de um bom vinho. Por essas e por outras – e as outras foram muitas – fui ejetado da universidade.

Fui então para Madri, com bolsa do ICI. Orgia total. Nossas aulas terminavam a las dos de la tarde, como dizem os madrilenhos. É quando se começa a almoçar naquelas plagas. O vinho era barato como água, comia-se bem por três ou quatro dólares, e eu terminava minhas tardes com minhas amigas latinas naqueles cafés adoráveis de Madri. Nunca consegui chegar à Biblioteca Nacional. Entre o ICI e a biblioteca havia um dos mais charmosos cafés da cidade, o Gijón. Ao passar pelo café, algo imperioso me atraía para suas mesas e nunca consegui atravessar o Paseo de Recoletos. Se não fosse o Gijón, havia o El Espejo ao lado. Não é fácil freqüentar uma biblioteca em Madri.

Pelas regras do ICI, estávamos proibidos de sair da capital. Cantiga para ninar pardais. Um dia tínhamos notícias de que uma colega fora vista em Fez, no Marrocos, uma outra zanzava por Berlim e um terceiro fora encontrado em Paris. E se alguém fora visto em Fez, Berlim ou Paris, era porque alguém o vira. Os turistas já eram no mínimo seis. Minha mulher vivia então em Paris. A cada mês, eu – ou ela – pegávamos um trem e íamos degustar vinhos em outras paisagens.

Nunca viajei tanto pela Espanha. Tinha de entregar uma tese ao final do curso. Ora, eu já tinha doutorado em Paris. Para que mais um? Entreguei então uma carta a meus professores. Nela, eu dizia que quando se faz uma bolsa, as teses são duas. Há aquela que se defende ante uma banca e fica mofando nas bibliotecas. E há a segunda, a mais vital, a que se defende freqüentando os bares da cidade, lendo seus jornais e conhecendo seu povo. A segunda – declarei – eu a defendi com brilhantismo nos cafés de Madri, Barcelona, Salamanca, Sevilha, Toledo, Cuenca, Santiago. A primeira, vou ficar devendo.

De volta da Espanha, vivi um ano em Curitiba e acabei vindo para São Paulo, onde trabalhei na Folha de São Paulo, no Estadão e depois na Folha de novo. Neste jornal, tive um problema sério. Vomitava todos os dias, antes de ir para a redação. Quando saí da Folha pela primeira vez, parei de vomitar. Quando voltei, voltei a vomitar. O diagnóstico se confirmava. Ora, eu não podia viver vomitando cada vez que pensava em ir para a redação. Acabei me demitindo. Dia seguinte, de novo parei de vomitar. Gostei muito de trabalhar lá e gostei do convívio com meus colegas. Mas havia uma incompatibilidade entre mim e o jornal e eu a somatizava.

De 71 para cá, acho que só não fui à Europa em três ou talvez quatro anos. De modo geral, sempre financiado por instituições ou em função do jornalismo. Ultimamente, afastado dos grandes jornais, não tenho mais essas colheres de chá. Hoje, graças ao bom Deus dos ateus, tenho como pagar minhas viagens. Depois da morte de minha mulher, a cada ano escolho uma parceira e saio a bater pernas pelo planetinha. Como nem sempre encontro a companhia adequada, não viajo tanto quanto poderia. Viajar sozinho, não consigo. Viajar é partilhar prazeres, paisagens, emoções. Não vejo graça alguma em comer um bom prato ou tomar um bom vinho sem dividi-lo com alguém, por melhor que seja um restaurante.

Tive vida serena até hoje. Gosto de meu passado. Para quem só conheceu cidade aos dez anos, está bom demais. Verdade que uma sombra empana meus dias, a perda da companheira com a qual partilhei quatro décadas de viagens e prazeres. Solo queda al desgraciao lamentar el bien perdido – dizia Hernández.

Não que a lembre todos os dias. Eu a lembro todas as horas de todos os dias. Que fazer? Morrer faz parte da vida. Como todo homem que chega aos 60, tive outras perdas nos dias que me foram dados viver. Não foram uma nem duas. Foram mais. É normal. Envelhecer é perder. Nos últimos anos, muitas vezes me perguntei o que seria melhor, se ter sido feliz ou não ter sido feliz. A pergunta, à primeira vista, pode parecer sem sentido. Afinal é óbvio que ter sido feliz é melhor. À segunda vista, não. Pois quem não foi feliz não tem sensação de perda alguma quando não é feliz. Seja como for, concluí que ter sido feliz foi melhor.

Como vivo? Bom, isto é questão que só diz respeito a mim e à Receita Federal. E com esta estou quite. Poderia até dizer, em minhas rendas não há nada de ilícito. Mas deixo a questão no ar, para alimentar boatos. Esta questão irrita um tipo de leitor que adoro irritar e é claro que não vou furtar-me a este prazer. Posso no entanto afirmar que

- não vivo de tráfico, nem de drogas nem de ideologias, nem de religiões

- estou mais preocupado com os índices da Bovespa do que com o desmatamento da Amazônia ou o terceiro mandato do Sumo Apedeuta

- não dependo mais de chefes ou editores. O menininho que grafa “viajens” acha, por isso, que sou “mal sucedido” (assim ele grafou, sem hífen). Ora, me considero extremamente bem-sucedido, afinal posso trabalhar sem depender de patrão. Escrevo o que quero, quando quero e como quero. Não tenho mais as restrições que normalmente tem um redator de jornal. Nos jornais eletrônicos em que atualmente escrevo, posso criticar deuses, papas, lulas e castros, marxistas e carolas, petistas e tucanos, o que nem sempre é viável na imprensa em papel. Conquistei a liberdade de expressão e isto é muito bom. Feliz do jornalista que chegou à condição de escrever o que quer escrever. Não o invejo, porque também cheguei lá

- milhões de pessoas no mundo prefeririam que Nietzsche, Voltaire ou Swift permanecessem calados e nada tivessem escrito. Mas escrever é direito de todo cidadão e dele não abdico

- nunca fui chapa-branca, nunca escrevi para revistas do PSDB nem de partido algum, nunca fui tucano nem papista, nunca fui ghost writer de políticos em anos eleitorais, nunca dependi de fiesps nem de afifs

- last but not least, nunca pedi esmolas a meus leitores. Sangra mucho el corazón, del que tiene que pedir – poetava Hernández. Claro que coração de quem não tem vergonha não sangra nada. Volto ainda a meu guru: cuando la vergüenza se pierde, jamás se vuelve a encontrar. Sentir vergonha, escreveu Aristóteles, é um dos indicadores mais inequívocos de que não perdemos de todo o sentido da ética em nossas vidas. Ruborizar-se é conseqüência de termos consciência da maldade ou da imoralidade dos atos que praticamos. A ausência de rubor e de vergonha indica que as pessoas se tornaram imunes ante a imoralidade de suas ações. Quem acompanha esta discussão, sabe de qual astrólogo estou falando.

Se alguém anda irritado com minhas viagens, quero brindar-lhe com mais um motivo de irritação. (Cronista, tenho dois prazeres em meu ofício. Um, o de agradar leitores. Outro, o de irritá-los). Estou projetando para junho ou julho próximo mais uma, com uma menina jovem, linda, profissional competente e dotada de qualidade que muito prezo, a curiosidade pelo anecúmeno. Quero mostrar-lhe o sol da meia-noite, o verão boreal, Oslo, Bergen, Ålesund, os fjords noruegueses, Trondheim, Bodø, as ilhas Lofoten, Tromsø, Kiruna, Luleå, Umeå, Estocolmo. Penso sobrevoar o arquipélago de Estocolmo em balão durante suas noites brancas. Talvez tome um daqueles ferryboats divinos da Silja Line para visitar uma amiga em Helsinki. Volto por Berlim, para revisitar a cidade e uma outra amiga dos dias de juventude.

Mais uma passadinha por Paris, para matar saudades daqueles cafés onde bebi, li, pesquisei, escrevi, trabalhei, namorei e fui feliz. Quanto ao foie gras e às prostitutas, que constituem mais uma preocupação de meu irado leitor, talvez a responda mais tarde. Ou não. Veremos.

quarta-feira, janeiro 30, 2008
 
ALEGRIA DE POBRE DURA POUCO



A Polícia Federal acaba de editar um manual de operações para disciplinar suas ações do órgão. O novo manual reforça o uso de algemas como “regra de segurança”, mas veta a exposição de presos, sob pena de punição disciplinar ao policial infrator. Ora, neste país onde impera a impunidade, particularmente quando os criminosos são políticos, magistrados ou empresários, a única alegriazinha – fugaz, é verdade – que restava ao povão era ver os distintos senhores escondendo suas algemas com casacos ou blusas cobrindo os pulsos.

Verdade que era precaução exibicionista por parte da polícia. Algemar um traficante ou qualquer outro criminoso jovem e forte faz sentido. Mas velhotes gordos e corruptos, que sequer teriam energia para correr dez metros ou dar um soco, é evidente exagero. De qualquer forma, ver um Fábio Maluf ou um Jader Barbalho algemados sempre fez bem à psique nacional. A Polícia Federal acaba de nos roubar estes raros instantes em que parecia que justiça estava sendo feita. Digo parecia, porque se contarmos nos dedos os criminosos ricos ou poderosos que estão na cadeia neste país vai sobrar um monte de dedos.

Também alegrava ver um político sendo jogado num camburão. Esta alegriazinha vai terminar também. “A algema é o símbolo do Estado exercendo seu poder de prisão, mas o sucesso da PF não deve ser marcado pela imagem de alguém sendo jogado num camburão”, disse alta autoridade da Polícia Federal. Consta que estas novas determinações decorrem das preocupações do Sumo Apedeuta, em junho passado, pelo fato de que a PF estaria vazando informações para jornais sobre o suposto envolvimento de seu irmão, Genival Inácio da Silva, o Vavá, num esquema de lobby.

Melhor prevenir que remediar. Mas o país fica mais triste a partir de hoje.

 
VELHO BOLCHEVIQUE
NÃO PERDE OCASIÃO




Leio na revista Istoé entrevista com o professor e historiador João Fragoso, da UFRJ. Como todo velho bolchevique, não perde ocasião de dizer bobagens:

“Nós somos miscigenados, porém existe de fato o racismo contra as pessoas de pele negra. Há o racismo, mas acho que estamos em um nível diferente do dos EUA, onde um senador pode ser eleito no sul tendo como plataforma a repressão violenta contra os negros. No Brasil, um político assim nunca seria eleito”.

Parece que o ilustre historiador desconhece a história do país das últimas décadas. Quando me falam de racismo no Brasil, entre todos os negros bem-sucedidos do país, gosto de citar o gaúcho Alceu Collares. Poderia citar a Benedita da Silva ou o Celso Pitta, políticos negros que, se saíram mais sujos que pau de galinheiro de suas administrações, indubitavelmente foram muito bem-sucedidos na política nacional. Mas prefiro citar o Collares, que sempre teve boa recepção no eleitorado de um Estado majoritariamente branco e com fama de racista.

Nascido de família pobre em Bagé, pequena cidade na fronteira gaúcha com o Uruguai, Collares foi prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul e deputado federal por cinco mandatos. Não teve, é verdade, como plataforma a repressão violenta contra os negros. Afinal, nunca houve no Brasil repressão violenta contra negros, como houve nos Estados. Nunca tivemos nada parecido com as leis Jim Crow.

O professor carioca, em sua miopia histórica, demonstra desconhecer o passado recente do país. Ou talvez imagine que o Rio Grande do Sul pertence à República Cisplatina. Quando ouço esses disparates, costumo lembrar que o Estado mais negro do país, a Bahia, jamais elegeu um governador negro.

terça-feira, janeiro 29, 2008
 
ARCEBISPO QUER SHARIA



Diz o artigo 2º da Constituição da República Islâmica do Irã:

1. Há um só Deus que por direito é soberano e legislador, e o homem deve submeter-se a seu mando.

2. A revelação divina tem um papel a desempenhar na promulgação das leis.

3. A ressurreição desempenha um papel essencial no processo de desenvolvimento do homem em relação a Deus.

4. A justiça de Deus é inerente à sua criação e sua lei.

5. O imamato proverá a liderança e desempenhará um papel fundamental no progresso da revolução islâmica.

6. O homem é dotado de nobreza e elevada dignidade; sua liberdade acarreta responsabilidade perante Deus.

Leio nos jornais que o arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, anunciou ontem que a Igreja vai entrar com uma ação para tentar evitar que a Prefeitura de Recife distribua a pílula do dia seguinte na cidade durante o Carnaval deste ano.

Para Dom José – continua a notícia - nem mesmo a violência sexual justifica o uso da pílula do dia seguinte. "A mulher que sofreu abuso sexual e engravidou é vítima de uma grande injustiça, mas não pode abortar. A Igreja condena o abuso sexual, mas não pode um crime justificar outro crime. É imoral. A Igreja não aceita isso. Nenhum ser humano tem o direito de suprimir a vida de um inocente. É pecado grave", disse o arcebispo, para quem o medicamento tem efeitos abortivos.

Bom, se é pecado, isto é problema dos crentes. Pecado só existe para quem crê em pecado. Mas o melhor vem agora. Segundo o purpurado, os padres das cem paróquias ligadas à arquidiocese em 19 municípios estão sendo orientados a defender essa posição em seus sermões. "Não temos força para impor alguma coisa ao governo. A gente pode pregar, tentar persuadir, dizer as nossas convicções e, sobretudo, que trata-se de uma lei de Deus".

Não estou vendo muita diferença entre a postura de Dom José e a do aiatolá Khomeini, que em 1979 impôs ao Irã uma constituição baseada na sharia, segundo a concepção dos xiitas imamitas. Ora, que tem a lei de Deus a ver com um Estado laico? Pretenderá Sua Eminência impor ao Brasil a sharia? Instaurar no país uma república teocrática? Essa história de Deus é para quem nele crê.

Quando reclamo desta mania dos católicos de pretender legislar para o universo todo, não falta quem me chame de intolerante. Se os católicos acham que aborto é crime, que não abortem, ora bolas. Os defensores do aborto falam em descriminalizar o aborto no país. Santa ingenuidade! O aborto está há muito descriminalizado.

O Ministério da Saúde considera que um milhão de abortos ilegais sejam feitos anualmente no Brasil, apesar da proibição no Código Penal e da forte oposição da Igreja. Ora, se um milhão de abortos são feitos anualmente em um país, é porque a prática já faz parte dos usos e costumes nacionais.

Os Testemunhas de Jeová, por exemplo, são contra as transfusões sanguíneas. É uma atitude insana que pode levá-los à morte. Mas pelo menos nunca pretenderam impor esta proibição à sociedade. Se preferem morrer por falta de transfusão, que tenham boa viagem.

Já propus, em crônicas passadas, que os católicos – e só os católicos – fossem punidos com todo o rigor da lei quando praticassem aborto. Não faltou quem se escandalizasse: “horror, leis especiais para determinados grupos”. Ora, o Brasil desde há muito tem leis especiais para determinados cidadãos. Índio pode matar, estuprar, fazer reféns... e tudo bem. Os sem-terra podem invadir fazendas, próprios da União, destruir laboratórios científicos e ainda têm a perspectiva de contar com aposentadoria por tais serviços. Negro vale por dois brancos nos vestibulares.

Por que não uma legislação especial para católicos? Se acham que aborto é crime, prisão firme para o católico que aborte. Que estes misóginos vulturinos deixem em paz as pessoas que querem apenas ter os mesmos direitos dos cidadãos dos países civilizados do Ocidente.

 
ASTRÓLOGO MORRE PELA BOCA



Escreveu ontem Olavo de Carvalho:

O sr. Janer Cristaldo jamais foi censurado no Mídia Sem Máscara. Foi expulso, a pedido de leitores judeus, por ser mais anti-semita do que poderia justificar mediante a exibição de um mero atestado de insanidade mental.

Escrevia o astrólogo em 06 janeiro 2006:

Louvando a franqueza e o vigor da minha resposta ao artigo anti-semita de Janer Cristaldo, nossos amigos do De Olho na Mídia protestam que ela não foi suficiente; que, não removido o artigo da página nem excluído o articulista do nosso quadro de colaboradores, "a nódoa ficou". Têm razão: ficou mesmo. Não tentei apagá-la; apenas admitir sua existência e chamá-la pelo nome. O Mídia Sem Máscara não é puro e inatacável como a Folha, o Globo e tantos outros monumentos de santidade jornalística. Enquanto essas publicações jamais pecam, jamais têm culpas morais, no máximo deslizes técnicos cometidos com intenções insuperavelmente éticas e elevadas, nós aqui assumimos a plena responsabilidade moral do que publicamos, e não nos sentimos isentos de culpa pelo que Janer Cristaldo escreveu.

Ao contrário, assumimos essa culpa - não por concordarmos com uma só palavra do que ele disse, mas porque, quando um homem não sente vergonha do mal que comete, não resta alternativa aos seus colegas e amigos senão senti-la em lugar dele. Por isso não procurei limpar a nódoa, mas mostrá-la aos olhos de todos. Achei que isso seria suficiente para alertar o colunista e demovê-lo da sua loucura. Não fiz isso para puni-lo, mas para avisá-lo de que entrou por um caminho errado e deve sair dele o mais que depressa.

Por isso mesmo não o excluí do quadro de nossos articulistas. Expulsá-lo seria carimbá-lo para sempre com um rótulo que, a meu ver, ele só merece a título provisório. Não posso exterminar a reputação de um colaborador quando espero ganhá-lo de volta para as boas causas. No fundo, não acredito na seriedade do anti-cristianismo nem do anti-judaísmo de Janer Cristaldo.


A cada vez que abre a boca, Aiatolavo se atola cada vez mais.

segunda-feira, janeiro 28, 2008
 
SOBRE ENTELÉQUIA E BORDÉIS



Tenho uma amiga em Porto Alegre que diz munir-se do Aurélio quando vai ler minhas crônicas. Ela exagera. Cá e lá, é verdade, puxo uma antiga palavra do baú, examino-a contra a luz, vejo se não está por demais gasta e a jogo no texto. Vivemos uma época muito pobre intelectualmente. Os jornais já não se preocupam em expandir o vocabulário de seus leitores. Pelo contrário, reduzem a diversidade vocabular para adaptar-se ao leitor. Em meus dias de Folha de São Paulo, tive grandes discussões com colegas de redação. Não por usar palavras eruditas. Mas palavras banais, desconhecidas por gente mais jovem.

Já contei a história. Como contei há sete anos, vou contar de novo. Escrevendo sobre uma escaramuça qualquer no planeta, fiz uma manchetinha mais ou menos assim:

OBUS MATA UM E FERE TRÊS

Mal viu o título na rede, um jovem editor, desses formados em escola de jornalismo, pegou meu pé:

- Obus? O que é isso, Janer?

Obus, expliquei pacientemente, é uma peça pequena de artilharia, um tipo de morteiro. Também chama-se obus a granada ou bala lançada por esse morteiro.

- Ah, mas o leitor não vai entender. Ninguém sabe o que é obus.

Então tá. Eu só queria ver como ele encontraria palavra mais concisa que obus para dizer tiro de morteiro. Surgiu a turma do deixa-disso, entre eles um editor que fizera serviço militar. Sim, é isso mesmo, é obus. "Mas vocês fizeram serviço militar, disse o jovem. O leitor, nem sempre". O que, pelo menos no que a mim dizia respeito, era falso. Nunca fiz serviço militar. Quando guri eu fazia, isto sim, palavras cruzadas. Projétil de morteiro, quatro letras? Obus.

Meses mais tarde, novo conflito com os meninos hostis ao vernáculo. Me caíra nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei: EM SINAL DE PREITO. Mal o texto chegou em sua tela, o editor, sempre alerta, gritou de sua baia:

- Preito, Janer? O que é isso?

Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:

- Preito é isto.
- Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.

De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a imensa maioria das palavras que eu ou você usamos. Lembrei-me do obus e fui tomado de súbita iluminação. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.

Semana passada, puxei uma palavra de minha adolescência lá em Dom Pedrito. Escrevi que Jeová e Alonso Quijana participavam da mesma enteléquia. Um bom amigo gaúcho, o Marcelo Tostes, homem sempre atento às boas e velhas palavras, gostou do achado e me manifestou seu apreço. Já outros leitores manifestaram seu espanto e querem saber do que se trata. Mais intrigados ficarão ao tentar entender o que esta palavra fazia em Dom Pedrito. Mais ainda: embora a palavra nada tenha a ver com assunto, sempre a associo a bordel.

Ora, naquela cidadezinha havia uma excelente biblioteca na Prefeitura. E na biblioteca havia aquela bela coleção da Editora Globo, a Biblioteca dos Séculos, da qual constava desde Aristóteles e Platão a Balzac e Montaigne. Foram livros que devorei, ainda jovem, como uma formiga faminta de folhas verdes. O conceito de enteléquia surge em Platão e é desenvolvido por Aristóteles. Durante muitas noites as profissionais da cidade bocejaram nos bordéis ouvindo nossas discussões sobre enteléquia. É que nossas mães não gostavam de nos ver lendo filosofia (eram os dias pós 64) e proibiam nossas reuniões em casa. Nos refugiávamos então nos raros bares da cidade. Ou melhor, no único, o bar do Santinho. Mas o Santinho fechava cedo e o minuano batia com força na praça General Osório. O remédio era abrigar-se nos bordéis.

Vamos à palavrinha. Platão dizia que a alma possui enteléquia ou movimento contínuo e se supõe que Aristóteles alterou o vocábulo platônico para diferenciar sua doutrina da de Platão. Mas o emprega com ambigüidade. Alguns autores a traduzem como “o fato de ter perfeição”. Outros usam a forma adjetiva como sinônimo de perfeito. Em De Anima, Aristóteles talvez defina melhor a palavra: se o corpo é a matéria, a alma é uma certa forma. “A alma é a primeira enteléquia do corpo físico orgânico, que possui a vida em potência” – diz o estagirita.

A palavra fez carreira no tempo e no espaço, e nenhuma mudança de língua ou geografia permanece impune. Segundo Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia, na época moderna a noção de enteléquia foi deixada de lado. Plotino, por exemplo, afirma que a alma não é como uma enteléquia, pois a alma não seria separável do corpo. Para Mora, a palavra assumiu inclusive um sentido pejorativo de algo “não-existente”, que ainda conserva na linguagem comum.

A discussão vai bem mais longe. Em todo caso, eu queria dizer que Jeová e o Quixote possuem a mesma natureza. Ou seja, são entes de imaginação.

 
COTAS ESTIMULAM ÓDIO RACIAL



Há mais de década defendo a idéia de que, com o desmoronamento do comunismo, os antigos apparatchiks se entrincheiraram na luta racial. Luta de classes morta, luta racial posta, escrevi lá pelo início deste século. Os velhos comunistas brasileiros, que já não conseguem empunhar as antigas e bolorentas bandeiras, estão tratando de importar para o Brasil o ódio racial dos Estados Unidos. Pretendem inclusive instituir a one drop rule ianque, pela qual só existe preto e branco. O mulato, prova evidente da miscigenação ocorrida no Brasil, passa a não existir. Neste ano em que se comemora o centenário da morte de Machado de Assis, não tenhamos dúvidas: os ativistas dos movimentos negros pretenderão enquadrá-lo como negro.

É óbvio que a política de cotas para os negros nos vestibulares só pode estimular o ódio racial. Qual estudante branco verá com bons olhos um negro que teve classificação inferior à sua e só entrou na universidade porque é negro? Estamos diante de uma política racista deslavada, que vem sendo louvada por uma expressão que não tem lógica nenhuma, a tal de discriminação positiva. Ora, discriminação é discriminação e ponto final.

Claro que, ao fazer tais afirmações, fui sumariamente pichado como racista. Assim, é com sumo prazer que vejo hoje, no Estadão, pelo menos duas manifestações em favor de minha tese. Em artigo para a página de editoriais, Antonio Paim, presidente do Conselho Acadêmico do Instituto de Humanidades, escreve:

“O que me parece mais grave no racismo de tais movimentos consiste em que as políticas que têm conseguido obter correspondem a equívoco funesto. A médio e longo prazos, trarão prejuízos definitivos tanto a instituições como a indivíduos. É óbvio que a obtenção de títulos acadêmicos, mediante ingresso na universidade por meio de cotas, disseminará indevidamente a pecha de incompetente a pessoas que, sendo bem dotadas, poderiam alcançá-los sem benesses. Quanto ao acesso à universidade dos que, por dificuldades econômicas, não tiveram condições de se preparar de forma a enfrentar a competição, a política adequada consiste em proporcionar-lhes bolsas que lhes permitam ingressar pela porta da frente”.

Mais adiante, em entrevista ao jornal, afirma o procurador da República Davy Lincoln Rocha que as “cotas estão estimulando o ódio racial”. É o que venho afirmando há mais de década. Foi este procurador quem conseguiu suspender, na Justiça Federal, o sistema de cotas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Diz Lincoln Rocha:

“Recebi a representação de alunos, analisei, vi que as cotas não estavam previstas em lei. Como a Constituição estabelece a igualdade de direitos, entendi que a universidade não pode reservar vagas para alguns e impedir o acesso de outros candidatos. Há 30% de estudantes que estão sendo retirados por proibição, mesmo tendo notas para ingressar na faculdade”.

O procurador vai mais longe: “Entrarei com uma ação civil pública pedindo a anulação de um concurso para juiz do TRF 4 que está em andamento e não prevê reserva de vagas para negros, egressos do ensino público e índios e um novo concurso que estabeleça cotas. O tribunal não pode ter uma política para fora e uma para dentro”.

Trata-se, é claro, de um chamado à lógica dirigido à magistratura. O pior que pode acontecer é que tenha sua ação julgada procedente. Conclui o procurador:

“A universidade não é lugar para quem quer, mas para quem tem intelecto para freqüentá-la. E a capacidade intelectual não está na raça ou na condição social. O negro e o pobre não são incapazes e não devem ser apequenados pelo paternalismo. O acesso pode ser por um sistema de bolsas que contemple quem tem aptidão e não tem recursos. Do jeito que estão, as reservas condenam cotistas ao vexame na faculdade e à discriminação no mercado. No futuro, poderemos ter pessoas evitando a contratação de serviços de médicos e engenheiros cotistas. (...) Essa questão das cotas está estimulando o ódio racial. Recebi e-mails com conteúdo muito ofensivo dos dois lados”.

domingo, janeiro 27, 2008
 
SOBRE CENSURA



“Janer insiste nesse tipo de texto bobo, para prejuízo daquilo que realmente queremos ler dele” – escreveu um leitor. O texto bobo ao qual se refere é artigo em que comento censura a um artigo meu no Mídia Sem Máscara. Vai adiante o leitor: “Depois da censura - que existiu e foi perfeitamente legítima, o site é empreeendimento privado e publica ou rejeita o que quiser de quem bem entender”

De fato. Qualquer jornal ou site pode publicar ou rejeitar o que quiser de quem bem entender. Isto se chama censura, que o leitor em questão considera perfeitamente legítima. A ditadura também considerava perfeitamente legítima a censura. Aliás, todas as ditaduras consideram a censura perfeitamente legítima.

No meu caso, a censura foi ridícula. Escrevi artigo em que dizia Cristo ter nascido em Nazaré e não em Belém, e o jornal o censurou. Pelo que me consta, a censura não era decorrente deste artigo, mas de outro anterior, onde eu comentava as peripécias do prepúcio de Cristo.

Em verdade, eu comentava o dogma da Ascensão de Cristo, que "ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu em Corpo e Alma." Os teólogos, especialistas em filigranas, tiveram de discutir um grave problema. Cristo era judeu. Como todo judeu, havia sido circuncidado. Ao subir aos céus, teria deixado o prepúcio na terra?

Embora não tenha sido decretado dogma algum em torno ao prepúcio de Cristo, o assunto foi muito discutido na Idade Média. Em 1351, argumentava-se que o sangue versado pelo Cristo durante a Paixão havia perdido toda divindade, havia se separado do Verbo e restado sobre a terra. Clemente VI ouviu com horror esta assertiva. Reunindo uma assembléia de teólogos, combateu esta doutrina e conseguiu que ela fosse condenada. Os inquisidores receberam em toda parte a ordem de abrir procedimentos contra aqueles que tivessem a audácia de sustentar esta heresia. Ocorre que os franciscanos discordavam do papa e diziam que o sangue de Cristo podia muito bem ter ficado na terra, pois o prepúcio extirpado por ocasião da circuncisão fora conservado na igreja de Latrão e era venerado como relíquia, sob os próprios olhos do papa e dos cardeais e mesmo as gotas de sangue e água que corriam sobre a cruz estavam expostas aos fiéis em Mantova, Bruges e em outros lugares. Mais de um século depois, em 1448, o franciscano Jean Bretonelle, professor de teologia na Universidade de Paris, submeteu a affaire à faculdade, declarando que esta questão provocava discussões em La Rochelle e em outros lugares. Uma comissão de teólogos foi nomeada e, após graves debates, tomaram uma solene decisão, declarando que não era contrário à fé crer que o sangue versado durante a Paixão tivesse ficado sobre a terra. Por analogia, o prepúcio também. Ou seja, se Cristo foi aos céus, o Sagrado Prepúcio ficou entre nós.

O relato da douta discussão parece não ter agradado ao astrólogo que edita o Mídia Sem Máscara e o artigo seguinte – aquele que situava o nascimento de Cristo em Nazaré – foi censurado. Justo pelo jornal que pretende denunciar a censura na grande mídia. 64 passou, para a infelicidade de muitos senhores que se pretendem liberais. Se antes havia quem protestasse contra a censura, hoje que não há censura há muitos que a pedem de volta.

E quem mais a pede de volta são, curiosamente, os católicos. Tornei-me ateu aos 16 ou 17 anos, ou seja, fui ateu quase minha vida toda e durante décadas isto não parece ter causado espécie a ninguém. Nestes últimos anos, meu ateísmo parece ter-se tornado um crime de lesa-humanidade. Ora, de lá para cá meu pensamento não mudou. O que parece ter mudado é um certo tipo de catolicismo, que se tornou mais fanático e fundamentalista. Pessoas que se julgam donas de uma verdade – a existência do tal de deus único – e consideram perfeitos idiotas quem quer que não a aceite.

Ora, nem Jeová se acreditava único, pelo menos nos primeiros livros da Bíblia, tanto que mandava destruir os altares dos demais deuses. Jeová era apenas o deus de uma pequena tribo. Mais tarde, dada a arrogância e poder de Israel, começa a se pretender único. Surgiu então um maluco que disse ser filho dele. Seu pensamento – se é que ele existiu – gerou problemas. Os deuses, até então, pertenciam a nações. Existiam os deuses gregos, os deuses persas, os deuses romanos e o deus de Israel. Cristo não era deus de nação nenhuma, fato que tinha uma implicação inusitada. Não sendo de nação alguma, era deus de todas as nações, e isto terá sido um dos fatores que o levou à morte. Se é que existiu, é bom lembrar.

Cristo não era cristão. Era judeu e freqüentava a sinagoga. Nos dias de Cristo não havia cristianismo. A doutrina é montada por Paulo, tanto que há quem prefira falar em paulismo em vez de cristianismo. Mas Paulo, o grande perseguidor de cristãos que acabou apostando no Cristo, não teve suficiente cacife histórico para criar uma religião que acabou dominando o Ocidente. Foi preciso Constantino, que tornou o cristianismo uma religião de Estado.

Até aí, o bê-à-bá do cristianismo, de conhecimento obrigatório de quem quer que professe a doutrina. De quem quer que tenha lido a Bíblia e conheça a história da Igreja. Ocorre que os católicos hodiernos, pelo jeito não cultivam o hábito de ler os textos sagrados e da história da Igreja não entendem pivicas. No fundo, em pouco diferem de torcedores do Corintians.

Assim, quando comento estas obviedades do cristianismo, provoco ondas de ódio nestes católicos contemporâneos, que sequer se deram ao trabalho de ler a Bíblia. Sou então acusado de ateu militante, este palavrão que os católicos criaram para insultar quem é simplesmente ateu. Ora, eu não milito por causa nenhuma, apenas manifesto meus pontos de vista. Não peço – nem jamais pedirei – a alguém que me siga.

Tem mais. Jamais discuti a existência do tal de deus. É discussão rumo ao inútil. Discuto, isto sim, as ações desse personagem cuja trajetória é descrita pela Bíblia. Para mim, Jeová e Alonso Quijana participam da mesma enteléquia.

Nós, ateus, dispensamos muletas. Estamos expostos à intempérie metafísica e a enfrentamos sem medo. Medo alimentam estes catolicões que se guiam pelo catecismo, sem jamais ter lido a sério o Livro. Daí, a necessidade imperiosa de censurar quem a conhece a fundo.

sábado, janeiro 26, 2008
 
GUSTLOFF, O GRANDE VILÃO



Este mundinho nosso tem de tudo e seu contrário. De um leitor, recebo esta entusiasta defesa do afundamento do transatlântico Gustloff – que custou mais de nove mil vidas – pelos russos:

Janer,

Vou ter que discordar de voce aqui.

O Gustloff foi um navio-hospital até o fim dos anos 30, quando foi convertido em cruzador-auxiliar pela Kriegsmarine.

Voce tem mais detalhes da historia aqui:

http://www.wilhelmgustloff.com/

http://www.zdf.de/ZDFde/inhalt/24/0,1872,1020824,00.html#

http://www.wlb-stuttgart.de/seekrieg/45-01.htm

Mas vamos dar uma canja, e vamos supor que ele realmente fosse um navio-hospital. Pra isso, ele não poderia usar o cinza-naval como usava, teria que usar branco e possuir as marcas da cruz vermelha ou do crescente vermelho, não possuir qualquer tipo de armamento (ele possuia armamento anti-aéreo), não carregar tropas militares (que existiam no Gustloff quando de seu afundamento) e também não poderia viajar em comboio, como viajava.

O capitão do submarino russo afundou corretamente o navio alemão. Naquelas condições, o Gustloff era um alvo militar válido.


Entendi. Afundar um navio com nove mil civis indefesos é um alvo militar válido. A inteligência russa, inocentinha, ignorava que o navio transportava nove mil refugiados de guerra. Imaginemos os americanos afundando o Gustloff. Seriam, obviamente, criminosos.

sexta-feira, janeiro 25, 2008
 
454


São Paulo afirma ter completado hoje 454 anos de idade. Claro que isto é piada. Ninguém sabe quando uma cidade começa a nascer. Mas vá lá. A cada suposto aniversário, os jornais locais fazem um cocoricó ufanista, entrevistando personalidades que são personalidades só porque a imprensa diz que são personalidades. Todos eles, é claro, dizem amar São Paulo.

A imprensa paulistana, em geral crítica às mazelas da cidade, neste dia oferece uma trégua. São Paulo se torna toda virtudes. Ora, não é bem assim. São Paulo é um dos maiores monstrengos urbanos do mundo. Caótica, desorganizada, feia, a cidade é extremamente desconfortável para os que a habitam. 55% de seus moradores, segundo o Estadão, sairiam da capital para viver em outra cidade. Mas não saem.

Eu também não. Ora, perguntareis, se acho a cidade caótica, desorganizada e feia, por que vivo aqui? Já disse porquê. A partir de certo momento, tomei uma atitude mental. Eu não vivo em São Paulo. Vivo em meu bairro, Higienópolis. Mais ou menos como se eu vivesse num espaço como Dom Pedrito. As demais extensões da cidade são para mim como viagens ao exterior. Se for para ir longe, vou a Cumbica.

Dom Pedrito, com algumas diferenças relevantes. Aqui perto de casa, em uma ruelazinha de uns duzentos metros, tenho um dez restaurantes de cinco ou seis distintas culinárias. Daqui a um século, Dom Pedrito não chegará lá. Defendo a tese de que determinadas cidades se situam em eixos de civilização. Outras não. Ai daquelas que ficam fora. A cidade pequena, poetava Kavafis, olha e passa.

Declara hoje, no Estadão, José de Souza Martins, professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP: “Uma parcela grande da população da cidade vive nesta situação de acoplamento, está aqui pelo trabalho. Esse morador não excursiona por São Paulo, só conhece seu próprio bairro. É preciso ter políticas públicas apropriadas para criar essa relação e melhorar a percepção dos moradores”.

Linguajar safado de profetas. Não se precisa política pública apropriada para criar relação nenhuma nem melhorar percepção alguma de moradores. O que se precisa é bom transporte. O sistema de transporte público é vergonhoso nesta cidade que se pretende a maior metrópole do continente e o transporte privado disto se ressente. Ir de um bairro a outro pode levar mais de hora. Se algum brasileiro tem memória, deve lembrar quando chamávamos os argentinos de macaquitos, porque estariam imitando imitando os ingleses ao instaurar o metrô. Hoje, em pleno século XXI, Buenos Aires dispõe de uma excelente rede de metrô e São Paulo de uma rede irrisória de transporte, que nem de longe atende as necessidades de uma metrópole. Tomar um ônibus em São Paulo exige boa dose de masoquismo.

Difícil amar São Paulo, como pretendem os jornais. Quanto a gostar do bairro, se o bairro é bom, é admissível. É meu caso. Decidi que moro em Higienópolis e não abro. Já o ufanismo da imprensa que, curiosamente, só se manifesta nesta data, me parece absolutamente ridículo.

 
APROPRIAÇÕES INDÉBITAS


De Denise Bottman, recebo:

sr. janer, passo-lhe uma exposição mais detalhada do assunto:

talvez o sr. tenha tomado conhecimento pela imprensa de um certo início de movimentação entre tradutores contra a apropriação indébita de traduções muito consagradas, feitas por grandes intelectuais brasileiros e portugueses, de grandes obras da literatura universal.

sucintamente, trata-se do seguinte:
um levantamento inicial mostra que mais ou menos 30 obras da grande literatura universal, que haviam sido publicadas na coleção da abril cultural, foram reeditadas pela editora nova cultural com a substituição dos nomes dos tradutores originais, aparecendo em lugar deles ou nomes de fantasia ou nomes de gente de carne e osso. essa quantidade de obras corresponde a mais de 65% dos títulos traduzidos da coleção "obras-primas" da ed. nova cultural, e portanto parece indicar que não se trata de casos isolados, e sim de uma prática deliberada e sistemática adotada pela referida editora.

o que parece se configurar, portanto, é que a editora de maior visibilidade no país (que muitas pessoas ainda associam à editora abril e à extinta abril cultural) tomou para si um patrimônio tradutório do país (pois nossa formação cultural, num país que depende tremendamente do acervo de obras traduzidas para o português, se constrói também e maciçamente sobre essa atividade - basta ver o caso de suas traduções de t.s.eliot, que tantas gerações influenciou e continua a influenciar no brasil!) e, por razões ignoradas, mas com certeza escusas e que não vêm agora ao caso, eliminou, suprimiu, enterrou e está contribuindo ativamente para o esquecimento da contribuição desses intelectuais da primeira metade do século passado à constituição de um acervo das grandes obras mundiais em tradução para o português. assim temos que oscar mendes, octavio mendes cajado, mario quintana, ligia junqueira, hernâni donato (este ainda entre nós), silvio meira, brenno silveira foram eliminados, suprimidos, tirados fora, aniquilados, exterminados, dos créditos de tradução.
pelo andar da carruagem, dentro em breve rachel de queiroz, carlos drummond, cecília meirelles, manoel bandeira também serão banidos dos créditos das traduções... mesmo que isso não ocorra, de qualquer forma o sumiço já perpetrado é mais do que suficiente para despertar uma imensa indignação entre quem preza a parca tradição cultural deste país, construída tão a duras penas.

o fato é tanto mais grave porque, aqui, não são práticas avulsas, motivadas por questões financeiras, de pequenas editoras desacreditadas, como a martin claret, e sim partem de uma empresa de grande porte com suposta credibilidade acumulada ao longo de décadas junto ao público leitor brasileiro.

assim, a meu ver, seria da máxima e mais premente importância que a nova cultural devolvesse o que é de direito a quem é de direito, ou seja, no mínimo publicasse uma espécie de errata pública nos principais meios de comunicação do país (nem seria o caso de tentar se justificar ou se penitenciar), apresentando os devidos créditos de tradução desses grandes clássicos e assim restituindo a verdade.

além de restituir a verdade, num gesto de decência básica e fundamental, uma atitude pública da nova cultural, no sentido acima exposto, certamente ajudaria a coibir a continuidade dessa prática inominável e permitiria que a história e memória da tradução literária neste país deixasse de ser tão brutalmente adulterada.

por isso dirigimo-nos ao sr., para pedir apoio a esse protesto. o sr. poderá ver outros elementos em nosso blog, http://assinado-tradutores.blogspot.com


atenciosamente,

denise bottmann


É uma preocupação válida, Denise. Seria no entanto interessante também pesquisarmos a fundo essa prática inominável para sabermos quais são as qualificações de Rachel de Queiroz em sueco, para traduzir Verner von Heidenstam, ou em russo para traduzir Dostoievski. Onde Drummond de Andrade estudou norueguês para traduzir Knut Hamsun? Desde quando Cecília Meirelles conhecia suficientemente bengali para traduzir Rabindranath Tagore? Onde Manoel Bandeira estudou persa para traduzir Omar Khayyam?

quinta-feira, janeiro 24, 2008
 
GUSTLOFF VOLTA À TONA



Aos 30 de janeiro de 1945, um submarino soviético lançou três torpedos contra o transatlântico Wilhelm Gustloff, que na ocasião estava aparelhado como navio-hospital e transportava 10.582 alemães, entre passageiros e tripulantes, que fugiam do avanço do Exército Vermelho. Mais de nove mil pessoas morreram no mar, quase seis vezes mais do que no naufrágio do Titanic. Se o Titanic afundou em razão de um acidente, o afundamento do Gustloff foi um massacre cometido a sangue frio.

Durante décadas, o episódio permaneceu sepultado sob um mar de silêncio. Fora um filme de 1959, do cineasta alemão Frank Wisbar - Nacht fiel über Gotenhafen – e uma menção no livro Im Krebsgang (Passo de Caranguejo), 2002, de Günter Grass, a tragédia permaneceu esquecida no século passado. Pelo jeito, foi preciso que o Muro de Berlim fosse derrubado e que a União Soviética desmoronasse, para que o assunto voltasse à tona.

Estreou ontem na Alemanha, com a presença da chanceler Angela Merkel, um filme produzido pela televisão pública alemã ZDF e dirigido por Joseph Vilsmeier – Gustloff – que evoca a tragédia. O filme será transmitido pela ZDF em 02 e 03 de março vindouro. As viúvas do Kremlin já estão pondo as barbas de molho. Para o deputado Dietmar Barsch, do Partido de Esquerda, o filme está eivado de clichês.

Falta agora filmar o afundamento do Altalena, a mando de Yitzhak Rabin, que resultou na morte de mais de cem judeus.

 
QUEM FINANCIA O ASTRÓLOGO?



Anselmo Heidrich está se propondo a um trabalho interessante, a desmitisficação de dois engodos da imprensa eletrônica nacional, o jornal Mídia sem Máscara e seu mentor, o sedizente filósofo e astrólogo Olavo de Carvalho. Sedizente filósofo porque se pretende como tal. Astrólogo por ofício, já que escreveu três ou quatro livros de astrologia, que curiosamente prefere nem mais citar em sua bibliografia. Aliás, o “filósofo” parece ter desistido de definir-se como astrólogo, pois em seus créditos já não acrescenta o antigo ofício. Quando a profissão é infamante, melhor declarar-se bailarina.

Ok! Filósofo não é profissão regulamentada, como muito menos a de astrólogo, psicanalista ou ornitologista. Assim, quem quiser anunciar-se como filósofo, astrólogo, psicanalista ou ornitologista, esteja a gosto. Nihil obstat!

Como leitor que um dia teve algum apreço por Olavo de Carvalho e ex-colaborador censurado do Mídia sem Máscara, presto meu depoimento. Gostei de seu livro O Imbecil Coletivo. Quando Olavo o autografou na livraria Cultura, em São Paulo, fui lá prestigiá-lo. O autógrafo veio eivado daquela simpatia impessoal que os autores dedicam a um leitor quando não querem comprometer-se. Li também o Imbecil Coletivo II, menos interessante que o primeiro, como todas as suítes de filmes. Acabei sabendo que meu livro sobre a Suécia, O Paraíso Sexual-Democrata, fora citado em O Jardim das Aflições. Até hoje não entendi porquê. Meu livro nada tem a ver com o que pretende ser um tratado de filosofia.

Tratado de filosofia, umas ovas. Olavo irritou-se com uma palestra de um certo José Américo Motta Pessanha sobre Epicuro, proferida no MASP, em maio de 1990, e escreveu um livro inteiro para contestar o autor. Na verdade, quem Olavo não suporta é Epicuro,o filósofo de Samos que se opôs às concepções fundamentais dos estóicos, platônicos e peripatéticos, aproximando-se dos cirenaicos, movido por uma dupla necessidade: a de eliminar o temor aos deuses e a de desprender-se do temor da morte. Segundo Ferrater Mora, “o primeiro se consegue declarando que os deuses são tão perfeitos que estão além do alcance do homem e de seu mundo; os deuses existem (pois, contrariamente à opinião tradicional, Epicuro não era ateu) mas são indiferentes aos destinos humanos. O segundo se consegue advertindo que enquanto se vive não se tem sensação da morte e quando se está morto não se tem sensação alguma. (...) A felicidade se consegue quando se conquista a ataraxia, não para insensibilizar-se por completo, mas para alcançar o estado de ausência de temor, de dor, de pena, e de preocupação”.

É claro que este tipo de filosofia não pode servir a um astrólogo que, manipulando a superstição, quer exercer poder sobre seus semelhantes. Quem não teme a morte não teme deuses nem astros. O divertido em tudo isso é que, Olavo, irritado com o Pessanha, escreveu um livro inteiro sobre sua palestra. Ora, invejo o Pessanha. Adoraria um ouvinte assim irritado. Se cada palestra minha tivesse gerado um livro, minha bibliografia hoje seria vasta. Caso típico de um tiro que saiu pela culatra.

O autor de O Jardim das Aflições revela-se mais com vocação para garçom do que para ensaísta. Elabora sofisticados coquetéis de idéias que nada têm a ver com pensamento. Mistura todo tempo filosofia e teologia e chega a proferir este despautério: “O sábio deve, por um lado, obediência às leis e costumes, caso não deseje ser excluído da comunidade humana; deve-a, por outro lado, ao Deus verdadeiro, do qual a comunidade só conhece analogias e símbolos distantes, cristalizados em ritos e mandamentos cujo sentido se perdeu”.

Que Deus verdadeiro? Teria lido o pretenso teólogo algum dia a Bíblia? Até Jeová acreditava em outros deuses, tanto que mandava destruir seus altares. Os jeovistas contemporâneos são mais jeovistas que Jeová, acham que deus é um só. Jeová não achava. Aliás, esse gambito do astrólogo é muito safado. Professa um cristianismo abstrato, manifesta sua fé no tal de Altíssimo, sem jamais dizer à qual confissão de fé pertence. Aparentemente, é a fé católica. Mas o astrólogo não pode afirmá-la, sob pena de incoerência. Ninguém pode ser católico tendo tido três mulheres. Muito menos ser astrólogo e católico ao mesmo tempo. Então, fica professando aquele cristianismo indefinido, que só convence quem adora ser convencido – para não ter de comprometer-se. Em suma, um arremedo de Nostradamus que vive de mascambilhas. Nós, ateus, podemos ter uma, dez ou vinte mulheres. Católico só pode ter uma só.

Católicos, hoje, têm se mostrado mais enrustidos que homossexuais dentro do armário. Se homossexualismo se tornou uma opção comportamental, a fé católica é mais difícil de sustentar. Essas empulhações de mãe virgem, de deus-três-em-um, de Cristo que ressuscitou, de vinho que vira sangue, de pão que vira carne, já não convencem nem mesmo os cristãos.

De escritor de textos lúcidos contra as esquerdas, Olavo de repente descambou para aiatolices. O Mídia sem Máscara seguiu o chefe. Quando escrevi sobre as práticas medievais da Opus Dei aqui em São Paulo, recebi advertência do editor Paulo Diniz. Que não era bem assim, etc e tal. Quando escrevi que Cristo nascera em Nazaré, mas não em Belém – questão que sequer constitui dogma – fui censurado. Hoje o Vaticano mostra um presépio na praça de São Pedro, onde Cristo nasce em Nazaré. Se o Vaticano mandar um artigo para o Mídia sobre o assunto, certamente será censurado. Quanto a algum artigo do Bento, talvez passe. Neste Natal passado, enquanto o Vaticano afirmava o nascimento do Cristo em Nazaré, o Bento falava em Belém. Pelo jeito, está faltando comunicação interna na Santa Sé.

É curioso observar que o Mídia – que, bem ou mal, acaba se professando católico ou algo por el estilo – não escreveu uma linha sobre a visita do papa a São Paulo. Pelo jeito, temos cisma à vista. Quem sabe o Olavo cria uma seita. Dá grana a granel – os pastores da Renascer ou da IURD que o digam – e assim Olavo não precisaria pedir esmola a seus discípulos para sustentar suas vilegiaturas na Virginia. Também é curioso observar que Olavo, defensor incondicional da cristandade, nunca disse sequer uma palavrinha contra as práticas hediondas do islamismo, como a ablação do clitóris e a infibulação da vagina.

Padre não briga com padre. Muito menos astrólogos com teólogos. O ofício é o mesmo. Como escreveu Anselmo, “o Mídia Sem Máscara hoje é um site que detém elementos claramente totalitários. E isto parte da chamada “filosofia de Olavo de Carvalho”. Mas, seu maior erro é se julgar “sem máscara” enquanto que, na verdade, apresenta dois rostos: um anticomunista e outro tão totalitário quanto o comunismo, o do fundamentalismo religioso em campanha contra o estado laico e a pluralidade de opiniões intrínseca à democracia. (...) E não diferencio isto de um lixo como Carta Capital ou Caros Amigos”.

Mantive longos debates com alguns meninos da comunidade Mídia sem Máscara, no Orkut. Todos se manifestavam católicos, mas pouco ou nada entendiam de teologia ou doutrina da Igreja. Em boa parte, defendiam a Inquisição. Mais ainda: mantinham uma postura de quem se atribuía direitos sobre a orientação do jornal. Muito estranho.

A pergunta que permanece é esta: quem financia o Mídia sem Máscara? Porque o jornal tem algum custo de edição. Seus redatores não recebem nada. Os editores recebem. Recentemente, a ministra petista Marina da Silva alinhou-se a Olavo de Carvalho na defesa do creacionismo. Quando tivermos esta resposta, saberemos a quem servem Olavo de Carvalho e seus acólitos.

Olavo estende o chapéu desde Virginia: “Estou pedindo a todos os meus leitores e amigos que me ajudem a fazer o que tenho de fazer. Doações pessoais ainda são permitidas e livres de impostos. Quem tiver sensibilidade e condições para isso, que faça uma contribuição por qualquer destes três meios, à sua escolha: “Para contribuições em dólares, por cartão de crédito, simplesmente clique o botão abaixo e siga as instruções (no formulário, em resposta ao item "payment for", escreva simplesmente "donation").

Ainda há poucos dias, o Mídia sem Máscara oferecia um curso de filosofia ministrado pelo astrólogo em Virginia, por módicos três mil e poucos dólares. Parece que o site tomou vergonha: o anúncio do curso não está mais lá.

Ora, alguém acredita que leitores financiarão um guru nos States? Guru brasileiro? Para isto é preciso manipular altos níveis de vigarice, oriundos de países que têm prestígio místico. Falo de Bento XVI, Osho, Dalai Lama, Deepak Chopra.

Não é empreitada para campineiro. Resta então a pergunta: quem financia o astrólogo?

quarta-feira, janeiro 23, 2008
 
EM RITMO DE GANSO



A estupidez pátria não dá trégua. Se um dia lemos uma notícia alvissareira, como a do juiz catarinense que vetou a prática racista de cotas para negros na Universidade de Santa Catarina, no mesmo dia os jornais nos oferecem um parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência, que garante cobertura previdenciária a invasores de terra que estejam trabalhando em área invadida, incluindo terras públicas. A medida foi aprovada pelo ministro Luiz Marinho. Os bandoleiros da guerrilha católica do MST podem agora usar o tempo de atividade rural para se aposentar.

Num país que aposentou regiamente os celerados comunistas que queriam transformar o Brasil em uma republiqueta soviética, nada mais coerente. Urge agora estender o benefício aos demais trabalhadores que tocam a economia do país: contrabandistas, bicheiros, apontadores do bicho, traficantes de drogas, soldados do tráfico e outros profissionais da economia informal. Esse povo trabalha duro, gente! Não podem ficar a descoberto do guarda-chuva previdenciário.

E assim marcha o Brasil. Em ritmo de ganso. Um passo, uma cagada.

 
CENSOR CENSURA AUTOCENSURA



Vá lá se saber o que se passa na cabeça dos jovens. Algumas horas após minha postagem infra, Diogo, o Chiuso, repôs seu artigo no site. Alguns desafetos se espantam porque levo adiante esta discussão com "um menino inseguro".

O problema não é o menino inseguro. O problema é a censura. Que a censura exista nos jornalões, se entende. Em um grande jornal, há muitos interesses em jogo, desde os econômicos aos políticos e ideológicos. A Internet inaugura a verdadeira idade da livre expressão: não há razões para censurar um blog, cuja produção não depende de publicidade nem de capital algum.

Por outro lado, censura é coisa de religiosos dogmáticos e ditadores. Que Fidel Castro, Hugo Chávez e Olavo de Carvalho exerçam censura é perfeitamente compreensível. O Mídia sem Máscara, por exemplo, aos poucos foi se tornando um reduto papa-hóstias. Não me parecia ser o caso de O Expressionista.

No entanto, era. Em recente resposta a um artigo de Anselmo Heidrich, no qual o articulista denuncia o fundamentalismo de Olavo de Carvalho e a defesa da Inquisição por um de seus discípulos, um leitor faz uma velada defesa do Santo Ofício: "Vocês querem discutir o passado, condenar a Igreja no mesmo momento em que querem considerar burrice ter uma religião. Ou tentar responsabilizar os católicos de hoje pela Inquisição. É a mesma coisa dos negros culparem os brancos de hoje pelo que houve no passado. Não tem sentido. Depois, cansa esse negócio de criticar a fé alheia. Vá procurar o que fazer".

Tem sentido, sim senhor. "A luta pela memória é a eterna luta do homem contra o poder" - escreveu Milan Kundera. Além do mais, no dia em que não se puder criticar a fé, seja qual fé for, teremos voltado aos dias sombrios da Idade Média, ao que parece vistos com terna nostalgia pelo leitor.

E essa agora! A novel teóloga Marina da Silva e Olavo de Carvalho empenhados no mesmo combate, a defesa do creacionismo. Estranhos canais subterrâneos unem a ministra petista e o astrólogo da direita.

 
CENSOR SE AUTOCENSURA



Diogo, o Chiuso, superou-se. Em sua fúria censória, deleteu artigo de sua própria lavra em O Expressionista, onde, entre outras gentilezas, me chamava de moleque birrento, velho babão e mocinha impúdica, assim mesmo, com acento. O menino que acusava os jornalistas brasileiros de desconhecerem o português sequer sabe acentuar. Em seu destempero verbal, Diogo, o Chiuso, equipara-se a Olavo de Carvalho, Hugo Chávez e Reinaldo Azevedo. Filhote de Olavo, Olavinho é.

O artigo já tinha 25 respostas e o Chiuso as deletou todas, demonstrando total desconsideração para com seus leitores. Entre as várias mensagens, algumas eram bastante desfavoráveis ao autor, que agora se revela como é: um dogmático que não aceita críticas. E que não consegue sustentar sequer por 48 horas um artigo de sua própria autoria.

Como dizia Nelson Rodrigues: "Envelheçam, jovens. Envelheçam antes que seja tarde".

terça-feira, janeiro 22, 2008
 
MAIS DOIS JUÍZES SENSATOS



Me escreve Érico Hack:


Caro Janer

Felizmente o Juiz Federal de SC não é pioneiro.

Antes dele (em 2004) o juiz federal Mauro Spalding (na época substituto da 7ª Vara Federal de Curitiba) já havia proibido as quotas no vestibular da UFPR: http://conjur.estadao.com.br//static/text/31667,1

Recentemente, também em Curitiba e contra a UFPR, a juíza federal substituta Giovanna Mayer deu sentença favorecendo estudante:
http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/educacao/conteudo.phtml?id=730311

Abraços

Érico

 
MILAGRE EM SANTA CATARINA:
UM JUIZ DOTADO DE BOM SENSO



Diz o artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

Seguem-se 77 itens e outros tantos subitens. No entanto, desde há anos, o caput do artigo vem sendo solenemente desrespeitado por unidades federais e estaduais, que usam um critério flagrantemente racista na seleção de seus vestibulandos: negros e índios contam mais pontos que brancos. Este recurso sórdido, importado dos Estados Unidos, não é só racista como também estimula a luta racial. Coloque-se na situação de um aluno branco e pobre, que fez das tripas coração para passar em um vestibular, passa no vestibular e no entanto é rejeitado pela universidade... porque não é preto. É óbvio que este jovem, se antes não tinha restrição alguma a negros, agora passará a ter.

Muita água rolou sob as pontes antes que um juiz corajoso prolatasse uma sentença sensata. Aconteceu em Santa Catarina, onde a Justiça Federal suspendeu o sistema de cotas raciais e sociais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Através de uma medida cautelar, o juiz federal substituto Gustavo Dias de Barcellos argumentou que qualquer medida que estabeleça critérios étnicos ou socioeconômicos para ingresso no ensino público superior deve depender de uma lei específica. Na sua interpretação, a direção da universidade não tem autonomia para decidir de quem serão as vagas. A sentença também determina que as vagas sejam ocupadas pelos estudantes que foram aprovados, por ordem de classificação.

Claro que a questão está longe de ser encerrada. A Reitoria da UFSC vai recorrer. Conhecendo os bois com que lavro, imagino que a sentença do juiz seja reformada. De qualquer forma, sempre é bom constatar que neste país nosso – que adora adotar os piores modelos do estrangeiro – alguém ainda conserva um sólido senso de justiça.

Já escrevi muitas páginas sobre a injustiça do sistema de cotas. O que os negros que o defendem ainda não entenderam é que estão caindo em uma armadilha futura. Na hora de disputar no mercado, quem vai querer um profissional que entrou na universidade pela porta dos fundos? Até há pouco, se tinha de recorrer aos serviços de um advogado, médico ou destino, a cor da pele não me interessava. Agora passa a interessar.

Nada de novo tenho a dizer sobre a questão. Reproduzo então artigo que escrevi há cinco anos. No Brasil, não teve muita repercussão. Traduzido nos Estados Unidos, onde racismo é regra, provocou um acirrado debate entre universitários negros. Um deles chegou a escrever-me uma resposta de 48 páginas.

 
ARMADILHA PARA NEGROS



Ainda há pouco, os movimentos negros brasileiros reivindicavam a eliminação do item cor nos documentos de identidade. Com a malsinada lei de cotas que hoje assola o ensino superior, os negros insistem em declarar a cor na inscrição no vestibular. Estes mesmos movimentos negros sempre consideraram que qualquer critério supostamente científico para determinar a cor de alguém é racista. Quem então é negro para efeitos legais? No caso da lei estadual no Rio e do projeto de lei federal, o critério é o da auto-declaração. Pardo ou negro é quem se considera pardo ou negro, mesmo que branco seja. Ora, neste país em que impera a chamada lei de Gérson, não poucos brancos se declararam negros no último vestibular da UERJ, a primeira universidade pública brasileira a estabelecer o sistema de cotas. Grita dos líderes negros: vamos determinar cientificamente quem é branco e quem é negro e processar os brancos que se declaram negros. Ou seja, as palavras de ordem da afrodescendentada são mais cambiantes que as nuvens. Mas mudam num só sentido, na direção de obter vantagens para os negros, não só dispensando méritos como também passando por cima dos eventuais méritos de quem se declara branco.

O atual presidente da República está longe de ser o primeiro apedeuta a assumir o poder neste país. Câmara e Senado estão repletos de analfabetos jurídicos, que nada entendem da confecção de leis nem sabem sequer distinguir lei maior de lei menor. Embalados por palavras de ordem estúpidas, em geral oriundas dos Estados Unidos, criam leis irresponsáveis, com a tranqüilidade de quem não precisa prestar contas a ninguém. É o caso da lei de cotas. Só agora, após o vestibular da UERJ e de uma enxurrada de ações judiciais, argutos analistas descobriram que a famigerada lei fere o artigo 5º da Constituição: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza."

Não bastasse esta tremenda mancada jurídica, que daqui para frente só servirá para entupir ainda mais os já entupidos tribunais - gerando grandes lucros aos advogados, os reais beneficiados pela lei de cotas - o presidente da República, mal assumiu o poder, sancionou lei que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino Fundamental e Médio. As aulas abordarão desde a história da África e dos africanos até a luta dos negros no Brasil. A medida é de um racismo evidente. E por que não a História de Portugal e a luta dos portugueses no Brasil? Ou a história da Itália e as lutas dos italianos? Ou a história do Japão e a luta dos japoneses? O Brasil é um cadinho de culturas e a contribuição africana a seu desenvolvimento está longe de ser a única ou a mais importante. O estudo da história afro-brasileira tem no entanto suas complicações.

Para os próceres do movimento negro, não basta historiar a cultura afro-brasileira. É preciso embelezá-la. É o que se deduz da proibição do livro Banzo, Tronco e Senzala, de Elzi Nascimento e Elzita Melo Quinta, na rede pública do Distrito Federal por ordem do governador Joaquim Roriz, em acatamento ao pedido do senador petista Paulo Paim. Um garoto teria ficado impressionado com as informações contidas no livro dizendo que os "negros perdiam a condição humana assim que eram aprisionados na África para se tornarem simples mercadoria à disposição dos brancos" e que aprisionar os negros não era difícil. "Principalmente, depois que os traficantes passaram a contar com o auxílio de negros traidores que prendiam elementos de sua própria raça em troca de fumo, cachaça, pólvora e armas."

"Qual é a auto-estima de uma criança negra quando recebe um livro que diz que, se seu povo um dia foi escravo, os culpados foram os negros, e não os europeus da época, mercadores de escravos?" - pergunta Paim. O deputado parece ignorar - ou propositadamente omite - o fato de que a escravidão não é invenção dos europeus. Ela já está na Bíblia e em momento algum é condenada pelos profetas ou patriarcas. Nem mesmo Paulo, reformador do Livro Antigo, a condena. Foi norma na Grécia antes de a Europa existir. Séculos antes de o primeiro navio negreiro europeu aportar no continente africano, ela lá já existia, sem a interferência do Ocidente. O presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, que o diga. Comentando as reivindicações dos movimentos negros, identificou-se como descendente de uma rica família de senhores de escravos e perguntou se alguém iria pedir-lhe indenização. Ainda bem que não o fez em jornais do Distrito Federal, ou seria censurado pelo governador Joaquim Roriz.

Que os chefes tribais negros facilitavam a tarefa dos negreiros, vendendo escravos de outras tribos, isto tampouco é ignorado. Vendiam e continuam vendendo até hoje, em pleno século XXI. Na Mauritânia, Sudão e Gana, no Benin, Burkina Fasso, Mali e Niger, a escravidão ainda persiste como nos tempos dos navios negreiros. Ano passado, a GNT mostrava brancos europeus comprando escravos no Sudão. Não que fossem negreiros. Eram representantes de Ongs européias, que compravam negros para libertá-los. O propósito pode ser nobre. Mas toda procura gera oferta e os dólares dos ongueiros só serviram para estimular o tráfico de escravos. Esta é a história da África. E se algum autor relega a escravidão para tempos passados, o livro está desatualizado.

A nova lei assinada pelo presidente da República acrescenta ao calendário escolar o dia da morte de Zumbi (20 de novembro) como o Dia Nacional da Consciência Negra. Esta ambição patrioteira de ter heróis, típica de países subdesenvolvidos, levou políticos negros a elegeram Zumbi como herói da raça. Ora, é sabido que os quilombos faziam escravos brancos. Como é que ficamos? Irão as autoridades censurar qualquer livro que ateste esta condição de escravagista de Zumbi?

Ao defender os sistemas de cotas na universidade, os negros caíram em uma tosca armadilha. Podem hoje ter facilidades na obtenção de um diploma. Mas quem, amanhã, irá contratar os serviços de profissional que entrou na universidade pela porta dos fundos? Ao exigir a inclusão da história africana nos currículos, caíram em armadilha mais sofisticada. A história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Democracia, direitos humanos, liberdade de imprensa, emancipação da mulher, são instituições desconhecidas no continente. Seis mil meninas têm o clitóris extirpado, diariamente, em vinte países do Oriente Médio e da África. Por barbeiros locais ou parteiras, com instrumentos não esterilizados.

A África, até hoje, está mais para Idi Amin Dada do que para Mozart. Mais para Bokassa que para Einstein. Estudar sua história, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma auto-estima.



SOBRE IDI AMIN DADA E MOZART


Em crônica passada, comentei o sistema de cotas para negros na universidade e o estudo obrigatório da História africana nas escolas brasileiras. O artigo rendeu uma saraivada de mensagens, em geral iradas, nas quais invariavelmente sou acusado de racista. “A doença do racismo é uma invenção européia” – escreve um dos leitores – “Você não pode infetar uma pessoa com a doença sem esperar ficar doente. Seu artigo mostra a doença que você ainda tem”. Tantas foram as objeções, que responder a todas é impossível. Atenho-me então a comentar os pontos mais recorrentes, como racismo, sistema de cotas, escravidão e história da África. Deixo de lado minha surpresa ao tomar conhecimento de que os hutus e tutsis que se cortam aos pedaços em Ruanda estão contaminados por uma invenção européia.

Comecemos por meu suposto racismo. Nasci no Rio Grande do Sul, Estado que, por sua forte colonização européia, tem a fama de ser o Estado mais racista do Brasil. Apesar de ser constituído por uma expressiva maioria branca, foi o primeiro Estado do país a eleger um governador negro, Alceu Collares. Ora, nem a Bahia, Estado majoritariamente negro, teve um governador negro. Collares não só foi governador, como também prefeito de Porto Alegre, capital também majoritariamente branca. Antes de ser prefeito da capital gaúcha, foi prefeito de Bagé, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, onde os brancos constituem maioria esmagadora.

Desde minha infância, de meus estudos primários aos universitários, convivi afavelmente com negros. Em meus anos de Porto Alegre, por noites a fio participei da mesa de Lupicínio Rodrigues, no bar da Adelaide, e por ele sempre nutri admiração. Lupicínio – que compôs os mais belas letras de samba do Brasil – era universalmente querido pelos gaúchos. Hoje, noto que tive entre os negros bons amigos. E por que hoje? Porque na época nem notava que eram negros. Com o acirramento recente da luta racial, passamos a conviver com pessoas que insistem em se definir como negras, quando nem cogitávamos de que o fossem.

Entre os mails recebidos, sou acusado de defender a tese de que no Brasil não existe racismo. De certa forma, a defendo. Algum racismo existe entre nós, ou humanos não seríamos. Mas jamais ao nível dos EUA ou países europeus. O negro, quando rico ou bem-sucedido, é estimado e mesmo invejado no Brasil. Milhões de brancos brasileiros se sentiriam sumamente honrados sendo fotografados junto a um Pelé. O rechaço existe em relação ao negro pobre ou miserável. Neste caso, o fator de distanciamento não é a negritude do negro, mas sua miséria. Exceto padres católicos e assistentes sociais, ninguém gosta de miséria. Nem negro gosta de negro pobre.

Nunca tivemos, no Brasil, leis proibindo a negros qualquer direito. As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça. No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos. No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa.

Brasileiros, desconhecemos este racismo institucionalizado. Negros e brancos casam-se com brancas e negras, bebem e comem nos mesmos restaurantes, estudam e confraternizam nos mesmos bancos escolares. Se há menos negros que brancos na universidade, isto se deve a fatores econômicos, mas jamais legais. O branco pobre – e eles são legião – tem a mesma dificuldade de acesso aos bancos universitários que o negro pobre. O negro rico – e eles também existem – tem a mesma facilidade de acesso que o branco rico. É inteligível o ódio que um negro americano possa sentir por um branco americano. Não há no entanto razão alguma para que este ódio seja exportado ao Brasil. Neste país, do ponto de vista legal, o negro nunca foi discriminado.

O Brasil costuma importar as piores práticas do Primeiro Mundo, costumo afirmar. No censo de 2.000, quase sete milhões de norte-americanos, pela primeira vez, foram autorizados a identificar-se como integrantes de mais de uma raça. As categorias inter-raciais mais comuns citadas foram branco e negro, branco e asiático, branco e indígena americano ou nativo do Alasca e branco e "alguma outra raça". Os Estados Unidos deixam de lado a one drop rule, pela qual um cidadão é considerado negro mesmo que tenha uma única gota de sangue negro em sua ascendência, e descobrem o mestiço.

Enquanto os Estados Unidos reconhecem a multi-racialidade, alguns movimentos negros no Brasil pretenderam que até os mulatos se declarassem negros no último censo. O propósito é óbvio, exercer pressão legislativa. A população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. O presidente José Inácio Lula da Silva, em sua já proverbial incultura, caiu nesta armadilha, ao afirmar que o Brasil é a segunda nação negra do mundo. Não é. Negro é minoria ínfima no Brasil. A menos que, como fizeram os EUA, se pretenda negar este espécime híbrido, o mulato.

Quando os americanos descobrem o mestiço, os ativistas negros brasileiros querem eliminá-lo do panorama nacional. Em uma imitação servil da imprensa ianque, os jornais tupiniquins passam a usar o termo afrodescendente para definir a população que o IBGE classifica como negra ou parda. Mas se um negro é obviamente afrodescendente, o pardo é tanto afro como eurodescendente. A adotar-se a nova nomenclatura, sou forçado a declarar-me eurodescendente. E não vejo nisso nenhum desdouro.

A palavra racismo, pouco freqüente na imprensa brasileira em décadas passadas, passou a inundar as páginas dos jornais a partir da queda do Muro de Berlim. Apparatchiks saudosos da Guerra Fria, vendo desmoralizadas suas bandeiras de luta de classes, proletariado versus burguesia, trabalho versus capital, trataram logo de encontrar uma nova dicotomia, para lançar irmãos contra irmãos. Existem negros e brancos no Brasil? Maravilha. Vamos então lançá-los em luta fratricida. Criaram-se leis absurdas que, a pretexto de combater o racismo, só servem para estimulá-lo. Hoje, no Brasil, se você insultar um negro, incorre em crime com prisão firme e sem direito à fiança. Mas se matar um negro, a lei é mais leniente. Se você for primário, pode responder ao processo em liberdade. Ou seja: se você, em um momento de ira, insultou um negro e quer escapar de uma prisão imediata, só lhe resta uma saída: mate-o. Segundo a lei absurda, assassinato é menos grave que ofensa verbal.

Vamos às cotas. Em virtude deste hábito nosso de importar do Primeiro Mundo seus piores achados, acabamos instituindo as cotas raciais na universidade. Mais uma dessas tantas leis que fabricam racismo. Como pode um jovem pobre e branco encarar sem animosidade um negro que lhe tomou a vaga na universidade, só porque é negro? Quando o juiz federal Bernard Friedman determinou o fim da política de ação afirmativa da faculdade de Direito da Universidade de Michigan, os americanos começaram a perceber que a política de cotas era uma péssima idéia. Em 1977, a estudante branca Barbara Grutter abriu processo depois de não ter sido aceita pela faculdade de Direito. Para Friedman, levar em consideração a raça dos estudantes como fator para decidir se os aceita ou não é inconstitucional. Segundo o juiz, a política de ação afirmativa da faculdade assemelha-se ao sistema de cotas, que determina que uma certa porcentagem de estudantes pertença a grupos minoritários. Ao ordenar que a faculdade deixe de praticar essa política, escreveu: “Aproximadamente 10% das vagas em cada turma são reservadas para membros de uma raça específica, e essas vagas são retiradas da competição”.

Ano passado, o programa 60 Minutes entrevistou um professor que mostrava a injustiça do sistema. De 51 estudantes brancos candidatos a um programa da faculdade, apenas um foi aceito. Entre dez candidatos negros, foram aceitos os dez. A universidade adota uma espécie de lei Jim Crow às avessas, aceitando qualquer candidato negro e recusando brancos. Quando os americanos descobrem que a política de afirmação positiva não constituiu uma idéia boa ou justa, autoridades brasileiras aderem a esta política infame. Já existe projeto, aprovado Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal, segundo o qual deverão ser escalados 25% de atores negros ou mulatos em peças de teatro, filmes e programas de televisão.

Só no teatro, o leitor já pode imaginar as peripécias de um diretor. Se pensa em encenar Ibsen ou Tchekhov, como inserir negros em contextos eslavos ou nórdicos? E se a peça tiver um só personagem? Pelo menos um quarto do monólogo terá de ser feito por um negro? Só mesmo no bestunto de um analfabeto poderia ocorrer esta pérola do politicamente correto. Quando os EUA passam a abandonar o sistema de cotas, deputados brasileiros querem adotá-lo até mesmo no universo do lazer.

Quando afirmei que negros capturavam negros na África, para vendê-los como escravos aos brancos europeus, não faltou interlocutor que alegasse que, se escravidão existia, é porque na Europa havia uma procura de escravos. Vários leitores jogaram sobre a Europa a pecha da escravidão. Tal atitude intelectual denota falta de leituras históricas. A escravidão é muito anterior à Europa. Ela já existe na Grécia socrática, quando Europa era apenas o nome de uma virgem raptada por Zeus, travestido em touro. Que mais não seja, a escravidão é vista como algo perfeitamente normal no livro que embasa o Ocidente.

Um leitor cita o Eclesiastes, quando Salomão fala de um homem que domina outro homem para arruiná-lo. Considera que esta declaração é universal, não se aplicando a uma raça, mas a todas as raças. E considera ser intelectualmente irresponsável invocar a Bíblia sem realçar este fato. O leitor esqueceu de ler o Êxodo:

“Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar. Se veio só, sozinho sairá; se era casado, com ele sairá a esposa. Se o seu senhor lhe der mulher, e esta der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do senhor, e ele sairá sozinho. Mas se o escravo disser: ‘eu amo a meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero ficar livre’, o seu senhor falo-á aproximar-se de Deus, e o fará encostar-se à porta e às ombreiras e lhe furará a orelha com uma sovela: e ele ficará seu escravo para sempre”. À semelhança de ativistas negros que não gostam de ouvir que chefes tribais africanos vendiam escravos aos brancos europeus, muitos católicos não gostam de ouvir que a Bíblia endossa a escravidão. Mas que se vai fazer? No Livro está escrito: “Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido. Mas, se sobreviver um ou dois, não será punido, porque é dinheiro seu”.

O Levítico legitima a aquisição de escravos estrangeiros: “Os servos e servas que tiverdes deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas. Também podeis adquiri-los dentre os filhos dos hóspedes que habitam entre vós, bem como das suas famílias que vivem conosco e que nasceram na vossa terra: serão vossa propriedade e deixá-los-eis como herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam como propriedade perpétua. Tê-los-eis como escravos; mas sobre os vossos irmãos, os filhos de Israel, pessoa alguma exercerá poder de domínio”.

Ou seja, não há originalidade alguma no fato de a Europa ter sido escravista. Estava apenas seguindo os ditames do livro que a embasa. A escravidão percorre o Livro de ponta a ponta, só não vê quem não quer ver. Portugal, país bom cristão, não deixaria de dar continuidade à tradição bíblica. Negros brasileiros exigem hoje indenizações milionárias da República, em nome da escravidão passada. Ocorre que o Brasil república não conheceu a instituição da escravatura. A Lei Áurea é de 1888 – coincidentemente da mesma época em que nos EUA vigiam as hediondas leis Jim Crow. A república foi proclamada em 1889. Se os negros querem indenização, a conta deve ser enviada a Portugal.

Existe hoje trabalho escravo no Brasil? Sim, existe. Mas nenhuma lei o legitima, pelo contrário. É crime e como tal é punido. Seria insensato de nossa parte negar a existência de nossas mazelas, em nome de um enjolivement da história pátria.

E aqui entramos no ponto que mais protestos provocou em meu artigo, a afirmação de que a história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Choveram e-mails citando feitos passados, antigas culturas e houve quem empunhasse o Egito como um dos expoentes da cultura negra. Não bastasse a tese furada de que Atenas era negra, vemos agora o Egito inserido no debate afro. De Dakar, um leitor me envia referências sobre Cheikh Anta Diop, estudioso senegalês que parte da idéia de que o antigo Egito faz parte da África negra.

Pode ser. Mas tal tese está longe de constituir unanimidade entre historiadores. Mesmo que assim fosse, de nada vale o argumento. Se um dia um hipotético Egito negro teve uma trajetória gloriosa, hoje não mais a tem. Essa trajetória foi em algum momento interrompida, e hoje o Egito vive a hora nada gloriosa do Islã. Que mais não seja, o antigo Egito era escravagista - os hebreus que o digam! - e isto tampouco depõe a favor da África.

Não faltou quem me acusasse de ser filho ingrato, afinal nossos ancestrais todos teriam surgido em solo africano. O argumento é contraproducente. Se todos de lá descendemos, foi preciso abandonar Mãe África para que o homem evoluísse. Que mais não seja, apegar-se a passados gloriosos de um país para alimentar auto-estima é doença de nacionalistas tacanhos. Pior ainda quando o apego é ao passado de uma etnia: estamos entrando na estreita fímbria que separa orgulho étnico de racismo. Antes de pertencermos a uma ou outra nação, a esta ou aquela etnia, pertencemos à raça humana.

Afirmei que estudar a história africana, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma auto-estima. Vejo que magoei muitos leitores. Inúmeros destes, munidos de um computador, enviaram suas mensagens por modem, em velocidade quase instantânea, via Internet. São pessoas alfabetizadas, o que neste nosso mundo já constitui privilégio. Em geral com curso superior, pelo que entendi. Usufruem das atuais facilidades de comunicação e da liberdade de expressão de pensamento nos países onde vivem. São nutridas por informação via satélite e podem acompanhar quase em tempo real os conflitos no planetinha, confortavelmente sentadas frente a um televisor. Certamente são usuárias de jatos e automóveis em seus deslocamentos, comem em bons restaurantes e foram formados em boas universidades. Ou seja, gozam do melhor do Ocidente.

Isto, caríssimos, não é herança africana. Que a África seja uma terna lembrança de um passado imemorial, vá lá. Hoje, não tem lição nenhuma a dar ao Ocidente. Quando na África existir eleições livres e democracia, noções de direitos humanos, imprensa e liberdade de imprensa, mulheres com os mesmos direitos que os homens, quando na África clitóris não mais sejam mutilados nem mulheres lapidadas, voltamos a conversar. A África trouxe contribuições à humanidade? Viva a África. O que não se pode, sob pena de falsificar a história, é ignorar suas mazelas presentes. Por enquanto, repito, a África está mais para Idi Amin Dada que para Mozart.

Quando alguém me fala da excelência de certas culturas primitivas, costumo lembrar de A Vida de Brian, dos Monty Python. Reunidos os conspiradores judeus, o líder pergunta: que nos trouxeram os romanos? Estradas, responde alguém. Certo. Mas além das estradas, que nos deram? Hospitais, responde outro. É! Mas que mais além das estradas e hospitais? Aquedutos, sugere um terceiro. E assim continua a discussão, até que sai um manifesto: apesar de nos terem trazido estradas, hospitais, aquedutos, escolas, esgotos, romanos go Rome!

Entendo o estudo da história como o estudo do acontecido. Não pode um historiador subtrair fatos só porque tais fatos são desonrosos à história de um povo. Durante todo um século – o passado – os comunistas construíram uma história fictícia para mostrar como paraíso o que em verdade era um inferno aqui na Terra mesmo. Não queiram os ativistas negros repetir esta infâmia. A do século passado ainda nos pesa e está longe de ser extirpada de nossa memória.



LUTA DE CLASSES MORTA, LUTA RACIAL POSTA



Em reposta a artigos que publiquei nesta revista (Brazzil), leio uma prolixa contestação de um acadêmico da Universidade de Michigan. Por apreço à síntese e ao leitor, tentarei ser breve. Não vou entrar na discussão de DNA ou fenótipos. Seria cair na armadilha da discussão sobre raça, conceito que até hoje não se conseguiu definir. Minha proposição inicial foi discutir racismo e leis que estimulam o racismo, o que é muito diferente. Se raça é algo impossível de determinar, racismo é algo muito palpável, e contamina tanto brancos como negros. Por um lado, a idéia de fenótipos é o caminho mais curto até sistemas como o nazista. Por outro, em nada me interessa que fenótipos portam as pessoas que me rodeiam. Tampouco vou responder, ponto a ponto, todas as objeções. Doze mil palavras é formato que não condiz com meu estilo. Vou me ater, nesta réplica, a alguns itens sobre este país em que nasci e vivo.

Mark Wells, militante da nova ideologia afrobrazilianista ianque, começa citando o doutor e sociológo Raimundo Nina Rodrigues: "the black race of Brazil... will always constitute one of the factors of our inferiority as a people”. Para começar, o tenho por etnológo e não sociólogo, mas isto é o de menos. Tal afirmação não corresponde ao que um brasileiro pensa sobre as populações negras no Brasil. Não tendo nunca os negros empunhado o poder político e administrativo da nação, jamais poderiam ter sido responsáveis por qualquer suposta inferioridade do país. Esta tese é de um racismo insólito, só concebível no bestunto de um acadêmico isolado em torre de marfim. O homem do povo, que vive e trabalha ombro a ombro com negros e mulatos, não pensa assim. Se inferioridade há, esta deve ser debitada aos brancos, que sempre tiveram o poder em mãos. Há quem afirme, isto sim, que nossas mazelas decorrem de termos sido colonizados por portugueses, e não por holandeses ou franceses. É possível. Mas história alternativa é disciplina espúria, que nada tem de rigor. Prefiro outra tese: nossas desgraças decorrem de termos sido colonizados por católicos. País protestante ou luterano, de modo geral, é sempre rico.

Cabe lembrar que Nina Rodrigues foi influenciado pelas idéias do conde de Gobineau, um dos precursores do racismo nazista, que esteve no Brasil entre 1869 e 1870. Este nobre francês aventou a exótica idéia de que a mistura de raças acabaria levando à pura e simples extinção da população brasileira. O médico baiano deixou-se deslumbrar pelo discurso da aristocracia gálica e considerou que toda e qualquer miscigenação resultaria inevitavelmente em desequilíbrio mental e degenerescência. Nina Rodrigues foi incumbido de analisar o crânio de Antônio Conselheiro. Considerou que, em se tratando de um mestiço, o morto era muito suspeito de ser degenerado. Você não pode, de forma alguma, Mr. Wells, interpretar a realidade brasileira a partir de considerações de um pensador racista influenciado por um precursor do nazismo. Seria como pedir a Hitler um parecer sobre a questão judia.

Mr. Wells afirma, citando pesquisa da Fapesp, que “the term pardo was developed as a way for the Brazilian government to hide the fact that it had such a high proportion of African descent people”. A afirmação é vaga. Qual governo? Em que época? Quais documentos baseiam tal afirmação? O autor da pesquisa citada não fornece nenhuma base documental à sua tese. É uma afirmação apoiada no vazio, o que depõe contra as qualificações acadêmicas exibidas pelo articulista. Pardo ou mulato quer dizer a mesma coisa e mulato é palavra antiga. Se você apanhar um Larousse, lá está: “Mulâtre, mulâtresse: homme ou femme de couleur, nés d'un d'un Noir et d'une Blanche”. A palavra vem do espanhol e data de 1544. Vamos ao dicionário de Maria Moliner: “se aplica al mestizo hijo de blanco y negro”. A distinção entre negro e mestiço não foi criada por governo brasileiro algum. Ela já existia há séculos em outras culturas.

Machado de Assis, o patrono da literatura brasileira, sempre foi considerado mulato. Estamos no século XIX. Os historiadores da literatura não o situam como negro, por uma simples razão: não era negro. É salutar que esta distinção seja feita, pois a fenômenos diferentes cabem denominações diferentes. Mesmo mulato, Machado conquistou a admiração da intelectualidade branca e universitária, como também um outro seu coetâneo, Lima Barreto. Estranho país racista este nosso, onde o vulto maior da Letras nacionais é um mulato.

Mr. Wells tem razão ao citar pesquisa do Censo mostrando que “the state of Bahia is approximately 25 percent white, 20 percent black and 55 percent mulato”. Folgo em saber que, pelo menos para efeito de argumentação, você aceita as definições do censo. Penintencio-me por ter afirmado “a definite black majority”. Seria mais preciso se dissesse “uma maioria de pretos e mulatos”. Mas isto não muda em nada o mérito da questão. O que afirmei é que o Estado da Bahia jamais fez um governador negro. Mesmo com o mais alto percentual de negros do país, com o mais alto contingente de negros e mulatos somados e com uma minoria de 25% de brancos. Ou seja, o eleitorado baiano é composto por três quartos de eleitores de cor. Porque só elege brancos? Para ativistas que tudo vêem sob a ótica do racismo, a resposta é constrangedora. Teriam pretos e mulatos preconceitos contra candidatos pretos e mulatos? Aliás, esta parece ser a característica fundamental dos negros que fizeram sucesso no futebol brasileiro. Tão logo se tornam ricos, escolhem loiras como suas mulheres.

Já no Rio Grande do Sul, Estado majoritariamente branco, tivemos o negro Alceu Collares eleito governador, em 1990. Você afirma: “It's also funny that you should mention Alceu Collares being elected governor. In 1993, in Vitória, state of Espírito Santo, a 19-year old black female college student named Ana Flávia Peçanha de Azeredo was assaulted and punched in the face by a 40-year old white woman and her 18-year old son over the use of an elevator in an apartment complex”. Ora, você não pode comparar um fait divers da crônica policial com a vontade de um eleitorado de nove milhões de habitantes (na época). Pesquisando melhor, é possível que você encontre mais casos semelhantes. Digamos que encontre dez, ou mesmo vinte. Não podem ser comparados à vontade de uma população de nove milhões, que tinha de escolher entre um candidato negro e dois outros brancos, e escolheu o negro. Collares, diga-se de passagem, tão logo tornou-se governador, teve a mesma atitude dos atletas negros. Trocou a fiel e negra Antônia que o acompanhara nos anos de vacas magras por uma loiríssima secretária.

“In Brazil, still today, maids must use the back service elevator while residents use public elevators”. Sua afirmação parece provir de quem conhece extensivamente o país todo, e não a de um pesquisador que esteve onze semanas na Bahia. Tivesse saído do gueto, veria por exemplo, que em todos os elevadores de São Paulo está afixada a transcrição de uma lei: "É vedado, sob pena de multa, qualquer discriminação em virtude de raça, sexo, cor, origem, condição social, porte ou presença de deficiência física e doença não contagiosa por contato social no acesso aos elevadores”. Você não encontrou este aviso na Bahia? Se não encontrou, é porque a Bahia, com seus 75 % de negros e mulatos, está ainda muito atrasada em matérias de leis contra a discriminação.

“With this in mind, let us also remember this when we walk the streets of Bahia (a 75 percent black state) and never see a black face on the cover of a magazine (except for Raça Brasil) or rarely see a black face on Brazilian television (except as criminals, maids, pagodeiros, futebol players). Com esta afirmação, você confirma minha antiga suspeita que a Bahia é um Estado onde o negro é racista em relação ao negro. Venha a São Paulo, onde a proporção negra é bem menor, e verá negros e negras como âncoras de televisão, animadores de programas, repórteres, redatores e colunistas em jornais. São Paulo, com seus mais de dez milhões de habitantes, é, ao lado do México, uma das maiores metrópoles latino-americanas. Ainda recentemente, teve como prefeito Celso Pitta, cidadão negro eleito em concorrência a candidatos brancos. Saiu do governo com a pecha de corrupto, mas isto é outra história. Mais recentemente, tivemos uma governadora negra no Rio, hoje ministra em Brasília *.

Você não pode afirmar, de forma alguma, que a televisão brasileira só mostra faces pretas quando se trata de “criminals, maids, pagodeiros, futebol players”. Ano passado, eu participava de uma festa em um condomínio de luxo (essas cidadelas fortificadas onde ricos – sejam brancos, sejam negros – se protegem da violência que toma conta do país) e, em dado momento, vi os participantes todos da festa, brancos e negros, se apertando para sair na foto junto a um negro. Como quase não assisto a televisão nacional, não imaginava de quem se tratasse. Soube mais tarde que era Nettinho, um dos mais famosos apresentadores do país.

Mas você ainda afirma: “It is truly a shame that in the year 2003 people continue to use Brazilian entertainers and athletes such as Pelé to try and down play the effects of racism in society. Many people use this same logic in the US. Just because you allow a black person to entertain you doesn't necessarily mean you would like for a person who looks like them to be your neighbor, marry your daughter or be president of your country”. Pode ser que assim seja nos Estados Unidos. Aqui, não. Os negros estão representados na Câmara de Deputados e no Senado, nas Câmaras de Vereadores e nos Ministérios, na magistratura, na universidade e na imprensa. Constituem minoria? É porque não contam sequer com o voto do grande contingente negro e mulato do país, pois neste país as eleições são livres e negros e mulatos votam. E até é bom que assim seja. A maior desgraça com que poderíamos ser brindados seria ter partidos baseados em raça. A idéia de que negro só vota em negro já roçou as mentes tupiniquins. Por enquanto, pelo menos, esta semente de nazismo foi esconjurada.

E os negros são nossos vizinhos e casam com nossas filhas, sim senhor! Ou não teríamos um população de quase 40% de mestiços. Há famílias que têm restrições a casamentos interraciais? E por que não? Alguma lei proíbe que uma família tenha preferências em relação a seus filhos? De qualquer forma, não vivemos em um país feudal, onde a vontade soberana do pater familias determina o destino dos filhos. Quanto a ser presidente da República, nada impede um negro de candidatar-se à suprema magistratura e tenho a firme convicção de que, mais dia menos dia, teremos um presidente negro. A este operário branco de extrema incultura que o país hoje elegeu, eu me sentiria muito melhor servido por um presidente negro que tivesse maiores luzes e experiência administrativa. A cor do presidente não me interessa. Interessa-me sua competência.

Você cita a participação de João Batista de Lacerda, em 1911, no I Congresso Universal das Raças, em Londres. Segundo o médico brasileiro, em um século de miscigenação, “black people would ultimately disappear from Brazilian society”. Sabemos que Lacerda ilustrou sua tese com o quadro A redenção de Can, de Modesto Brocos y Gomes, que pretendia registrar esse branqueamento mostrando como o cruzamento dos negros e seus mestiços com brancos diluía o sangue africano, gerando descendentes claros. Pela denominação do Congresso, você já pode deduzir que se vivia uma época em que o conceito de raça gozava de estatuto científico, o que hoje não mais se admite. No quadro de Brocos y Gomes, havia uma negra velha em gesto de preito, ao lado de uma mulata clara, mais um homem de traços ibéricos e uma criança, supostamente filha do casal, de pele clara, mostrando a progressão do negro ao branco. Ora, a obra de um pintor não pode ser fundamentação para quem pretende demonstrar uma tese na área de genética.

Citar Lacerda é o mesmo que citar o protonazista Nina Rodrigues. Se Gobineau – o guru de Nina Rodrigues – afirmava que a mistura de raças acabaria levando à pura e simples extinção da população brasileira, Lacerda é mais modesto: será extinta apenas a população negra. Não podemos hoje, em pleno século XXI, dar ouvidos a teorias desvairadas do século XIX, que aliás se revelaram em contramão da realidade. Ao afirmar que “Brazil's leaders chose to try and mix the African blood right out of the country” você está aceitando teorias conspiratórias que jamais existiram, exceto talvez na cabeça de algum racista – e estes sim existem. Mas nada, em sã consciência, autoriza alguém a afirmar que sejam os líderes brasileiros os responsáveis por esta teoria. Quem são esses líderes responsáveis por tão maquiavélica estratégia? Eu os desconheço. Quem defendeu quase histericamente a miscigenação, nos últimos anos, foi Darcy Ribeiro. Mas em defesa da negritude e não como instrumento de extinção do negro.

Em O Presidente Negro (1926), Monteiro Lobato, ciente das teses de Nina Rodrigues e Batista Lacerda, satiriza uma cientista americana, Miss Jane, que afirma ser o ódio a mais profunda das profilaxias. Impede que uma raça se desnature, descristalize a outra e conserva ambas em um estado de relativa pureza. “O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”. Não por acaso, o autor coloca na boca de uma norte-americana esta tese estapafúrdia. Brasileiros, dispensamos este ódio purificador.

Mr. Wells diz ter visto uma única vez uma mulher negra ser coroada Miss Brasil, Deise Nunes de Souza, em 1986. Ocorre que o Brasil não existe a partir de 1986. Em 1964, a carioca Vera Lúcia Couto dos Santos foi a primeira negra a ser eleita Miss Brasil. Verdade que foi bombardeada com telefonemas anônimos, alegando que uma preta não poderia ser Miss Brasil. Isso no Rio de Janeiro, Estado também de predominância negra e mulata. Mas foi eleita e eleita permaneceu. Cabe lembrar que Deise Nunes é gaúcha, pertence àquele mesmo Estado de maioria branca que elegeu Alceu Collares. E cabe ainda lembrar um episódio de flagrante racismo de parte da comunidade negra de Porto Alegre, ocorrido nos anos 80. Porto Alegre elegeu uma rainha do carnaval ... branca, para sua infelicidade. Os movimentos negros protestaram, alegando que o carnaval era uma festa negra e a rainha, portanto, tinha de ser negra. As pressões, que incluíram inclusive apedrejamento à casa da moça, foram tantas, que ela teve de renunciar ao cetro. Curiosamente, ninguém lembrou na época que o carnaval, em suas origens, nada tem a ver com negros ou África. É uma festa branca e romana.

“In several books about Brazil, it has been reported that Afro-Brazilians were barred from entering prestigious social clubs even when they had the money for the special membership fees”. A afirmativa merece algumas observações. Existiram clubes no Brasil, exclusivamente de negros ou brancos. Se nos clubes de brancos negro não entrava, a recíproca era verdadeira: no de negros, branco não entra. Desses clubes, o que hoje mais se destaca, é o bloco Ilê Aiyê, na Bahia, fundado em 1974, e que até hoje não admite brancos entre seus membros. Que mais não seja, clubes são entidades privadas, onde pessoas se reúnem com as pessoas que gostam de reunir-se. Se britânicos gostam de reunir-se entre britânicos, se homossexuais gostam de reunir-se entre homossexuais, não vamos condená-los por isso. Condenável seria, isto sim, barrar pessoas em lugares públicos por uma questão de cor.

A propósito, você afirma: “In the Frances Twine book, we find that black people were often times not allowed to walk on certain sides of the street!” Ora, Twine viveu apenas onze meses em uma pequena comunidade fluminense. (Melhor que onze semanas, é verdade, mesmo assim pouco concludente). Extrair conclusões genéricas a partir de tão curto período em uma comunidade isolada é confundir o universo com o círculo-de-dois-metros-de-diâmetro-em-torno-ao-próprio-nariz. Se por ventura em alguma época isso existiu naquela comunidade, não pode ser estendido ao Brasil, onde negros e brancos andam por onde bem entendem. Nada nem ninguém obriga, hoje, um negro a andar por este ou aquele lado da calçada. Não podemos julgar o Brasil contemporâneo a partir de hipotéticos fatos isolados de comunidades perdidas na geografia. Certos grupos, no Rio de Janeiro, costumam aplaudir o pôr-do-sol. Nem por isso vamos afirmar que no Brasil costuma-se aplaudir o pôr-do-sol. O que existe hoje são territórios inteiros onde nem negro nem branco pode entrar. São as reservas indígenas.

Os afrobrazilianistas têm produzido não poucos ensaios, onde o não-branco é automaticamente identificado com o negro. Na recente enxurrada de estudos acadêmicos sobre o Brasil, publicados nos Estados Unidos, talvez o historiador Jeffrey Lesser seja o único a ter uma visão abrangente e não racista da questão. Em Negotiating National Identity: Immigrants, Minorities and the Struggle for Ethnicity in Brazil, Lesser procura mostrar como outros grupos imigrantes não-brancos, em especial japoneses e árabes, participaram da construção de uma identidade brasileira. Segundo o viés racista dos afrobrazilianistas, o universo parece ter apenas duas cores, branco e preto.

Não procedem as afirmações de Mr. Wells de que ninguém tenha sido punido por racismo no Brasil. “How many white Brazilians do you know (and can prove) have been actually thrown in jail for racist practices? Most likely NONE! And as far as murder, I can relay several stories I have been told in which a black Brazilian was killed and absolutely NOTHING was done about it!” Você não pode citar um, ou três ou quatro casos como regra geral. Para começar, aqui em São Paulo (falo apenas da cidade de São Paulo), a cada fim-de-semana, são assassinadas entre 50 e 60 pessoas, entre brancos e negros, e assassino algum é punido. Há hoje, só no Estado de São Paulo, nada menos que 127 mil mandados de prisão a cumprir. Que não são cumpridos porque não há vagas nas penitenciárias. Ou seja, há 127 mil condenados – ou pelo menos indiciados – livres como passarinhos. Neste número não estão incluídos as dezenas de milhares de autores de crimes não elucidados. Impunidade não é característica de assassinos de negros, mas prática amplamente disseminada no Brasil.

Quanto a delitos raciais, uma rápida pesquisa nos jornais nos mostra casos interessantes. O Tribunal de Alçada de Minas Gerais, por exemplo, condenou uma senhora a indenizar seu vizinho em R$ 5.000,00, a titulo de danos morais. A referida senhora havia chamado seu vizinho, publicamente, de "macaco", "nego fedorento" e "urubu", ferindo a moral do ofendido. No Rio de Janeiro, o juiz da 7a. Vara Criminal condenou a dois anos de detenção, com sursis, uma empresária que teria se referido a uma candidata a emprego como "negrinha maltrapilha e sem modos”. O juiz da Infância e Adolescência de Florianópolis condenou menor que, em um jogo de futebol na escola, chamou o colega de "negro feio". O menor foi condenado a seis meses de liberdade assistida. São punições pesadas para uma ofensa verbal, que jamais seria punida se dirigida a um branco.

Enquanto isso, um cantor popular fez sucesso nacional no rádio e televisão com uma música intitulada Lôra Burra. Nenhum processo, nenhuma acusação de racismo, nenhuma condenação. Imagine, Mr. Wells, se alguém intitulasse alguma canção de Nega Burra. Seria imediatamente processado. Foi o que aconteceu com o cantor Tiririca, acusado de crime de racismo por causa da música Veja os Cabelos Dela, que contém os versos “Essa nega fede / Fede de lascar”. Sobre o assunto, escreveu Henrique Cunha Júnior, professor titular da Universidade do Ceará: “se não bastassem os insultos e outros vexames impostos, temos ainda um boçal cantando no rádio que a nega fede, e nenhum dizer social de justiça ou de dignidade humana que proíba e puna este racismo”. O detalhe caricatural em tudo isto é que a música era dedicada à própria mulher do cantor, que nela não via intenção alguma de insulto, mas sim uma referência bem humorada.

O que venho afirmando, desde meu primeiro artigo, é que diplomas legais estão criando lutas raciais no Brasil. A lei nº 7.716, de 1989, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, está sendo brandida a torto e a direito não para dirimir, mas para acirrar conflitos. Há cinco anos, numa prova de língua portuguesa no vestibular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ocorreu um caso caricatural deste novo tipo de racismo. As frases "ela é bonita, mas é negra" e "embora negra, ela é bonita" provocaram indignação de entidades ligadas aos direitos dos negros no Estado. O Instituto e Casa de Cultura Afro-Brasileira (Icab) ingressou com representação criminal junto ao Ministério Público Federal e registrou queixa na Secretaria da Segurança Pública, pedindo que fosse apurada denúncia de crime de racismo por parte da UFMS. O grupo Trabalhos e Estudo Zumbi (Tez) pediu a anulação da questão e uma retratação pública da UFMS. Para Aparício Xavier, presidente do Icab, a questão era uma aberração, feita para a época medieval. "Se eu estivesse fazendo a prova, a rasgaria e botaria fogo."

A partir de duas frases, o candidato deveria indicar as respostas corretas. Uma das respostas considerada certa afirmava que na frase "a" ("Ela é bonita, mas é negra") a cor da moça era argumento desfavorável à sua beleza. Outra resposta considerada correta, na frase "b" ("Embora negra, ela é bonita"), dizia que a cor da moça era uma restrição superável pela beleza. Para o presidente da Comissão Permanente de Vestibular, responsável pela elaboração da prova, Odonias Silva, a questão foi "uma escorregada infeliz". O presidente do Icab pediu ao chefe do Departamento de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Ivair Augusto dos Santos, que oficializasse a indignação dos negros junto ao Grupo Interministerial da Presidência da República pela Valorização da População Negra, criado pelo presidente Fernando Henrique. Tanto o Icab como o Grupo Tez pediram uma indenização por danos morais. A nenhum representante de entidades ou professor ou reitor ocorreu lembrar que, se alguém quisesse queimar e rasgar a provas em razão da frase, teria de começar rasgando e queimando a Bíblia. Pois lá está, na abertura de seu mais belo livro, o Cântico dos Cânticos: “Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão”. Vamos à Vulgata Latina, tradução da qual deriva a maior parte das traduções atuais. Lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta - feita a partir do original hebraico - onde está, em grego: Melaina eimi kai kale.

Durante o governo passado, a Associação Brasileira de Negros Progressistas ingressou com uma representação ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a abertura de processo contra o ministro da Saúde, José Serra, por racismo. Questionava-se a escolha de uma atriz negra para a campanha de prevenção à Aids no carnaval, na qual a moça pede que seu último parceiro faça o teste de HIV. Para a entidade, a mulher negra foi ofendida ao ser exposta no anúncio como prostituta. O Ministério da Saúde reage: a atriz foi escolhida entre trinta candidatas, grupo que incluía louras, morenas e negras. Só teria ocorrido racismo se a melhor candidata não pudesse estrelar a campanha pelo fato de ser negra.

Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Não fosse a modelo negra a escolhida no concurso, este poderia ser contestado por dar preferência a brancas. Curiosamente, não ocorreu aos sedizentes negros progressistas perguntar o que achava do assunto a principal interessada, a atriz Carla Leite. Que de modo algum se sentiu inferiorizada. "Pelo contrário, tenho orgulho de ter passado uma mensagem importante, por mais que haja polêmica", disse Carla. Ao que tudo indica, não existe prostituta negra no Brasil. O diretor de Comunicação da Associação Brasileira de Negros Progressistas, Aguinaldo Triumpho Avellar, alega que os negros deveriam ser consultados sobre o teor do comercial. Assim, cada atriz negra que quiser trabalhar, terá de pedir prévia licença aos negros progressistas para saber se pode ou não candidatar-se a determinado papel.

Ainda em Florianópolis, aquela mesma cidade onde um menor foi condenado por chamar um colega de negro feio, ocorreu caso que bem demonstra o absurdo das leis anti-racismo. Uma trintena de funcionários foi demitida de uma empresa para-estatal. Um deles era negro. Entrou com ação por racismo. Foi reintegrado ao cargo e recebeu gorda indenização. Os demais funcionários, pela desgraça de serem brancos, ficaram a ver navios. Mas o caso mais caricatural desta histeria ocorreu em Brasília. Onde um negro já foi para a cadeia por ter chamado outro negro... de negro.

Como os conflitos raciais no Brasil jamais foram tão intensos como nos Estados Unidos, os sedizentes negros progressistas tupiniquins estão fazendo o que podem para que possamos atingir os invejáveis níveis de ódio racial de um país de Primeiro Mundo. Para isto, contam com o valioso apoio desta nova geração de ativistas formados nas universidades americanas nas últimas décadas. Em vez dos apparatchiks soviéticos, temos agora uma fábrica acadêmica de racismo, os centros de black studies. Com arrogância típica de cidadãos do império, os afrobrazilianistas ianques pretendem entender melhor o Brasil do que os próprios brasileiros.

O país está deslizando em um declive perigoso, criando leis diferentes para diferentes pessoas. Índios já gozam de um estatuto especial. Podem matar à vontade, como Raoni. Ou estuprar com gosto, como Paiakan. Não podem ir para a cadeia, são índios. Negro pode entrar na universidade passando na frente de brancos com melhor habilitação no vestibular. Podem também insultar brancos, isto não é crime. Crime é insultar negro. Luta de classes morta, luta racial posta. Parafraseando os marxistas: o ódio é o fórceps da História.

* Também acabou saindo do governo com a pecha de corrupta, mas isto também é outra história.

(março 2003)