¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 30, 2008
 
ALGO DE PODRE NO REINO DOS SVEAS


Como todo ser humano, desde pequeno, tive minhas simpatias e antipatias. Há pessoas de quem gostamos e outras que não. É normal, faz parte da vida. Isso de amar o próximo é coisa de cristãos. Neste mandamento, tanto Nietzsche como Kierkegaard viram uma negação do sentimento de amizade. Se tenho de amar qualquer um, a amizade, que é uma eleição, deixa de existir. Conheço pessoas absolutamente insuportáveis e delas tomo distância. Perto de mim, só os seres que me aprazem. Se o tal de amor cristão não poupa ninguém, vou poupar pelo menos a mim mesmo.

São muito raras as pessoas que entram em minha casa. São apenas aquelas por quem tenho muita estima. Se a estima ainda não existe, primeiro a gente se encontra no bar. Depois, veremos. O bar é uma forma de convívio interessante, uma ante-sala que não causa constrangimentos. Chego lá quando quero e saio também quando quero. Foi Kafka, creio, que imaginou uma casa onde todo mundo podia entrar quando quisesse e sair também quando quisesse. Ora, essa casa existe. Pelo menos no Ocidente. Por essas razões, continuamente recuso convites para festas em sítios, esta maison secondaire dos paulistanos. Como não tenho carro, viro refém de meu anfitrião. Quando alguém me convida para seu sítio, faço uma contra-oferta: “Escuta, faz um CD-ROM e eu curto teu sítio chez moi”.

O politicamente correto, pelo jeito, está correndo solto no reino dos Sveas. Um menino de oito anos de idade, em Lund, no sul da Suécia, está sendo acusado por não ter convidado dois de seus colegas para sua festa de aniversário. O caso foi levado ao Parlamento. É o que nos conta o Sydsvenskan. Segundo a escola da criança, ele teria violado o direito dos colegas excluídos. A Suécia está inovando em matéria de Direito. Temos agora a figura do colega excluído, isto sem falar no sagrado e inviolável direito de cada um de ir a uma festa particular.

O pai do menino fez uma reclamação formal junto ao ombudsman parlamentar. Ele argumenta que as duas crianças não foram convidadas porque uma delas não havia convidado seu filho para a sua festa e a outra havia brigado com ele. O menino distribuiu os convites durante o horário das aulas e quando o professor percebeu que dois alunos haviam sido excluídos, os convites foram confiscados. Um veredicto sobre o assunto deve ser anunciado em setembro.

Que veredito? Pretende o Parlamento obrigar alguém a convidar para uma festa pessoas que este alguém não quer como convidados? Pretenderá o Estado outorgar-se o direito de determinar quem alguém deve convidar em seu aniversário? O simples fato de o ombudsman parlamentar aceitar tal pleito tende a transformar uma residência particular em bar, estabelecimento público. Parafraseando o bardo: há algo de podre no reino dos Sveas.

PS - Falar nisso, na quinta-feira estou partindo para aqueles nortes. Entre coisas, quero degustar o podre. Não esta podridão politicamente correta, mas uma outra, culinária, la cuisine pourrie, como dizem os franceses. Falo do surströmming, um arenque do Báltico servido podre, muito apreciado no norte da Suécia. Em meus dias naqueles pagos, tentei degustá-lo e vomitei. Falta de educação palatar, certamente. Na época, eu não encarava nem camembert. Muito menos andouilletes, um embutido de tripa com tripas dentro. Hoje, uma de minhas motivações para ir a Paris são as andouilletes. É o primeiro prato que busco. Minha companheira da última viagem, ao provar um tequinho, quase teve minha mesma reação ante o surströmming em Estocolmo.

Só viagens educam o palato. Em Skellefeteå, no norte do país, há em agosto um festival anual do surströmming. Aos jornalistas estrangeiros, recomenda-se usar máscaras de gás. Mas se milhares de pessoas curtem o tal de peixinho podre, mau não há de ser. Verei.

 
CONTEM OUTRA!


Leio no portal Terra que o Brasil tem hoje em torno de cinco milhões de armas consideradas ilegais e sem qualquer registro do governo. Esta é a estimativa oficial da Polícia Federal, órgão responsável pela Campanha do Desarmamento 2008, que tem como foco, além de receber as armas da população, registrar boa parte deste material bélico.

E ainda há quem pretenda coibir a ingestão de um copo de vinho ou cerveja para quem dirige. Ora, senhores, contem outra. Essa não tem graça.

domingo, junho 29, 2008
 
SEÑOR MOREIRA, FAVOR PRESENTARSE...



Uma leitora quer saber de onde saiu meu nome. Refere-se a Janer Cristaldo. Bueno, Cristaldo era sobrenome de meu avô paterno. Já o Janer, minha mãe encontrou naqueles almanaques distribuídos por farmácias, não sei se ainda alguém lembra deles. Traziam desde aforismos a fases da Lua, calendários e recomendações para a boa época de plantar este ou aquele cereal. Em meio a esses aforismos, havia um pensador, creio que francês, chamado Janer. Daí meu nome. Mais tarde, pesquisando, descobri que a coisa vem lá da Escandinávia, passou pela Alemanha, desceu pela França e chegou à Catalunha. Onde há uma escritora muito conhecida chamada Janer Pau. Também encontrei a palavrinha, várias vezes repetida, numa lista da Previdência dos Estados Unidos. Mas como sobrenome. Houve época em que meu nome esteve grafado em quase todos os banheiros do Brasil. É que o papel higiênico era produzido pela empresa sueca T. Janer.

Janer Cristaldo é apenas nome. Os sobrenomes são Ferreira Moreira. De repente, vai ver que sou judeu e nem estou sabendo disso. Em suma, me acostumei a ser tratado apenas pelo nome, o que me gera alguns problemas. Se estou em algum hotel no exterior e procuram pelo Cristaldo, não vão achar. Só existe o Moreira. Se não advirto antes meu interlocutor, não serei encontrado.

Aconteceu em Madri. Eu saía com minha Baixinha do Gijón, aquele café na Recoletos que sempre me impediu de chegar até a Biblioteca Nacional. Ao pôr o pé na faixa zebrada, encosta em mim um bom amigo, o Anibal Aicardi Abadie, cidadão da Banda Oriental del Uruguay e professor de História - na época - na Universidade Federal de Santa Catarina. Perfil cervantino, com uma eterna saharienne, ali estava a meu lado aquele distante amigo, com sua também eterna boina basca. Ora, havíamos interrompido um papo em Floripa. Empunhei Fray Luís de Leon:

- Como decíamos ayer...

Explico. Fray Luís (1527-1591) nasceu em Granada e se consagrou à Igreja, tendo ingressado no convento de Salamanca. Graduou-se em teologia em 1561, tendo se dedicado à cátedra das Sagradas Escrituras. Graças a seus conhecimentos das línguas orientais, traduziu ao espanhol o Cântico dos Cânticos. Melhor não traduzisse. A Inquisição proibia as traduções dos livros sagrados à língua vulgar. Foi condenado a cinco anos de prisão.

Teve sorte, escapou da fogueira. Fray Luís de Leon, em seu magistério, tinha o hábito de recapitular a cada aula o que fora explicado na anterior: "como decíamos ayer". Após cinco anos de cárcere, retomou sua cátedra. E seu bordão: "como decíamos ayer..." Na universidade de Salamanca, me sentei nos bancos toscos da sala de aula de Fray Luís, que são os mesmos há quinhentos anos. E assisti inclusive uma defesa de tese, em que o doutorando estava tão enfeitado quanto um toureiro com seu "traje de luces". Mas isto já é outro assunto. Em minha mente, eu só evocava o frade: "como decíamos ayer..."

Volto ao Gijón, na Recoletos, em Madri. Com o Abadie, continuei aquela conversa interrompida há vários anos na ilha. A Baixinha, que tinha olhado para a esquerda quando Abadie me abordou, perplexa. Não estava entendendo bem o que acontecia. Tive vários outros encontros desse tipo em minha vida, nas mais diferentes geografias, sem tê-los combinado. Elaborei inclusive o que chamo de Lei de Cristaldo: todos os encontros são possíveis, desde que as pessoas se desloquem. Parado, você não encontra ninguém.

Foi quando cometi um erro fatal. Como continuaria viajando pela Espanha, marquei encontro mais adiante com aquele personagem cervantino em meu hotel. Nada feito. Encontros marcados nem sempre dão certo. Ele procurou por Cristaldo. Ora, para o hotel eu era o Señor Moreira.

O pior viria depois. Eu esperava o embarque no aeroporto de Barajas, quando alguém no alto-falante chamou:
- Señor Moreira, favor presentarse a las oficinas de Iberia.
Comentei com a Baixinha:
- Estão chamando um português.
Alguns minutos depois, o aviso se repetiu:
- Señor Moreira, favor presentarse a las oficinas de Iberia.
- Esse luso vai perder o vôo - comentei.

Só na terceira vez, dei-me conta. Era eu.

sábado, junho 28, 2008
 
TIA EMPALA SOBRINHA



Índio tem carteirinha de 007, costumo afirmar. Com permissão para matar. Ainda há pouco comentei o caso da menina Isabella, cujo assassinato pelos pais provocou comoção nacional. Ora, a prática do infanticídio já foi detectada em pelo menos 13 etnias, como os ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Mas entre os sacerdotes que vociferam contra o aborto, você não encontra um só que denuncie estes assassinatos. E tudo isto sob os olhares complacentes da Funai, que considera que os brancos não devem interferir nas culturas indígenas.

Índio pode matar à vontade. Faz parte de suas tradições culturais. Os indígenas brasileiros se reservam o direito de matar filhos de mães solteiras, os recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o outro o mal e, assim, por não saber quem é quem, eliminam os dois.

Outras crêem que só os bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de índios que matam os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé.

Agora foi a vez de uma menina índia mato-grossense, Jaiya Xavante, 16 anos, morta por empalamento. A indiazinha, muda e paralítica, teve o estômago e o baço perfurados por um objeto pontiguado de 40 centímetros.

Ontem ainda, o capitão-de-mato Tarso Genro – aquele mesmo que devolveu dois atletas que buscavam asilo no Brasil à ditadura cubana – declarou que "lamentavelmente a violência contra indígenas não é novidade, talvez a novidade seja o grau de violência e de barbárie que envolve alguns delitos como o que ocorreu em Brasília”.

Ocorre que a violência contra indígenas parte dos próprios indígenas. Quem empalou a menina paralítica foi sua própria tia, Maria Imaculada Xavante. O crime teria sido motivado por ciúmes. O pai da Jaiya era casado com três irmãs, conforme costume tribal da etnia. E aqui surge um dado novo. Se você, que não é índio, tiver três mulheres, incorre em crime de, no mínimo, bigamia. Índio pode.

Para o padre Bartolomeo Giaccaria, indigenista salesiano que trabalha na aldeia xavante onde Jaiya morava e conhecia a família da vítima, não existe a hipótese de que o crime teria sido motivado por ciúmes. Segundo ele, o costume de um marido ter três ou quatro mulheres – sempre irmãs ou primas – é antigo e não há casos de ciúmes entre as esposas. Os padres de Roma, tão intransigentes quando se trata de fidelidade conjugal, não vêem maior inconveniente quando um bugre é sexualmente servido por três irmãs.

Maria Imaculada será punida? Ao que tudo indica, não. Só com um parecer de algum de algum antropólogo qualquer, que ateste que Maria Imaculada sabia ser crime empalar uma menina muda e paralítica. E para atestar isso, antropólogo é o que não falta.

sexta-feira, junho 27, 2008
 
O RECURSO A JOÃO DE PATMOS



É espantoso que um jornal sério como El País publique esta bobagem:

Por increíble que parezca, este año quizá sea posible llegar al Polo Norte en barco. Esta es una de las conclusiones a las que ha llegado un grupo de investigadores del Centro de Datos sobre Hielo y Nieve en Colorado, Estados Unidos.

Las posibilidades, según los científicos, de que el hielo que recubre el Polo Norte se derrita superan 50%, ya que la capa helada formada en el transcurso de muchos años ha desaparecido y ha sido sustituida por un envoltorio enorme de hielo más fino, creado este último año.

El aumento generalizado de las temperaturas a causa del calentamiento global está afectando también, y de forma grave, a las regiones polares del planeta. Los científicos temen ahora que la desaparición de una parte importante del hielo lleve a otra importante consecuencia: que el océano absorba más calor y temple aún más el clima local.


É fácil ser profeta do apocalipse. Anunciar o pior é sempre uma boa aposta. Sempre há chances de acertar. Mas este tipo de profeta costuma ser mais prudente. O apocalipse é sempre lá adiante. Os tais investigadores do Colorado serão desmentidos dentro de seis meses.

Até aí, tudo bem: apocalípticos, sempre os tereis entre vós. O que me espanta é um jornal como El País dar repercussão a tais besteiras. O tal de aquecimento global substituiu bandeiras como a revolução proletária, redenção dos deserdados da terra e outras que tais. As esquerdas, desmoralizadas com a queda do Muro e o desmoronamento da União Soviética, apelam a um antigo recurso, o de João de Patmos, que manifestava seu ressentimento em relação ao poder de Roma.

quinta-feira, junho 26, 2008
 
BASTA LER A BÍBLIA


Outro leitor me envia um artigo da BBC sobre religiões:

Um artigo de pesquisadores europeus, que será publicado na revista acadêmica Intelligence em setembro, defende a tese de que pessoas com QI mais alto são menos propensas a ter crenças religiosas. O texto é assinado por Richard Lynn, professor de psicologia da Universidade do Ulster, na Irlanda do Norte, em parceria com Helmuth Nyborg, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e John Harvey, sem afiliação universitária. Na pesquisa entre países, os pesquisadores analisaram média de QI com o de religiosidade em 137 países. Os dados foram coletados em levantamentos anteriores.

Os autores concluíram que em apenas 23 dos 137 países a porcentagem da população que não acredita em Deus passa dos 20% e que esses países são, na maioria, os que apresentam índices de QI altos.


Com a devida escusa aos ilustres pesquisadores, me permito discordar. QI é uma coisa. Conhecimento e aquisição de cultura são outras. Não será difícil encontrar altos QIs entre crentes. Mas não vamos encontrar muitos crentes entre pessoas que cultivem o bom hábito de ler. Ler inclusive a Bíblia.

Para uma pessoa intelectualmente honesta, não há fé que sobreviva a uma leitura da Bíblia. Ensaístas americanos estão fazendo uma defesa do ateísmo ao contrapor Darwin com os textos bíblicos. Não é por aí. Basta ler o Livro para ver que o cristianismo é inconsistente.

 
QUANDO LULA FALA LATIM


Me escreve um leitor:

Olá Janer,

No seu último artigo, “Apedeuta Defende Ilegalidade”, você transcreveu partes do discurso do Lula sobre a lei européia que restringe a imigração. Não sei se você leu o discurso do Lula em jornal impresso, ou na internet, ou se ouviu o presidente falando pela TV. Você transcreveu o trecho em que o apedeuta diz “É o medo de perder seu status quo...”. Eu e minha esposa estávamos assistindo a um telejornal que exibia o ignorante falando, e rimos muito quando ele disse “É o medo de perder os status quos" (sic)... Talvez nós dois tenhamos ouvido errado, mas eu juro que ouvimos assim. Um abraço,

Humberto Quaglio


Creio que não ouviram errado, Humberto. Para quem já falou em "enes problemas", nada de espantar. O bruto não domina sequer o português e quer falar latim.

quarta-feira, junho 25, 2008
 
APEDEUTA DEFENDE ILEGALIDADE



O Supremo Apedeuta é ágil em sofismar, não perde nenhuma ocasião de dizer besteiras. Disse ontem que a recente lei de restrição à imigração da União Européia é preconceituosa. "Qual é o grande problema que nós temos no mundo desenvolvido hoje? É o preconceito contra a imigração", disse o Supremo.

Ora, não há preconceito algum contra a imigração. A Europa precisa de imigrantes e tem perfeita consciência disto. O que a UE não quer é a imigração ilegal. Desde há muito havia uma imensa complacência em relação aos ditos sem-papéis, e particularmente da Igreja Católica. Em quase todos os países da Europa, os padres davam guarida a quem entrava ilegalmente no continente. O que a Santa Madre fazia era, na verdade, uma defesa da ilegalidade. O mesmo pretende Lula.

Para o Apedeuta, "o vento frio da xenofobia sopra outra vez". Ora, está soprando pela primeira vez, porque até agora os sem-papéis sempre foram tolerados. E não se trata de xenofobia. Lula, que não entende nem português, de etimologia não entende pivicas. Xenofobia, literalmente, seria medo ao estrangeiro. Não é este o sentimento da Europa. O que se pretende é apenas cumprir a lei.

"Qual é o grande problema que nós temos no mundo desenvolvido hoje? – pergunta a si mesmo o Supremo – É o preconceito contra a imigração. É o medo de perder seu status quo, é o medo de perder o emprego, é o medo de ter alguém ocupando seu espaço. E isso hoje é um problema extremamente sério em toda a Europa. Não é proibindo os pobres de ir para a Europa, é ajudando a desenvolver os países pobres."

A Europa, com seu baixo índice de natalidade, sempre precisará de imigrantes. Não está proibindo os pobres de chegarem lá. Se você migrar para os países europeus com um contrato de trabalho ou de acordo com a legislação vigente – seja pobre ou seja rico – não será barrado em nenhuma aduana nem expulso de nenhum país. Europeu algum tem medo de perder seu emprego ou seu espaço. Porque o trabalho destinado ao imigrante é o trabalho braçal, que europeu algum quer. Imigrante não compete com europeu. Compete apenas com outros pobres diabos que também migram.

Todos os países do mundo empregam mão de obra barata para o trabalho sujo. É normal. Um professor universitário, um economista, um físico ou engenheiro não vai aceitar fazer o trabalho sujo. Nem nós não aceitamos. Tanto que temos sempre uma faxineira para o trabalho sujo de nossa casa. Isto faz parte da vida. Quem pode mais chora menos. Por outro lado, é bom lembrar que aquele imigrante que faz o trabalho sujo na Europa, vive em melhores condições de vida e tem mais assistência do que se fizesse trabalho limpo em seu país de origem.

Nos anos 70, a Europa chamava os imigrantes. A Suécia exibia suas adoráveis louras nórdicas - oficialmente, em publicações da Sverige Huset - para atrair mão de obra. A Alemanha convidava os gastarbeiter. Uma coisa é ser convidado para um país, ou entrar nele cumprindo os requisitos legais. Outra coisa é entrar clandestinamente ou com papéis falsos no país. Se isso for permitido, que se acabe então com fronteiras e aduanas. Se todo mundo pode entrar, aduana pra quê?

É curioso observar que Lula não dirige sua acusação aos Estados Unidos, um dos países mais rígidos quanto à aceitação de imigrantes. Mesmo o Brasil tem suas regras para a entrada de imigrantes. Se não as observa é porque sempre foi uma casa-da-mãe-Joana. O Brasil está cheio de imigrantes ilegais de todo azimute, desde a Coréia até a Bolívia. O que inclusive depõe a favor do país. Se há gentes migrando para cá, é porque aqui é melhor que lá.

Mas a Europa percebeu que não pode nem tem razões para receber os pobres do mundo todo. Isso sem falar no problema árabe. Os muçulmanos, viciados por suas teocracias, quando chegam na Europa já querem impor suas práticas bárbaras. O pior é que as estão impondo. A atual reação européia a uma imigração sem controle – em hora tardia, é verdade – longe de ser um preconceito, é uma defesa do Ocidente e de seus valores.

terça-feira, junho 24, 2008
 
MELHOR NÃO TER CARRO



Leitores me perguntam sobre o que penso da proibição de beber qualquer gota de álcool antes de dirigir. Bom, eu vivi em um país em que era proibido beber nos bares, a Suécia dos anos 70. Beber, só em restaurantes, e com comida. E só das doze à meia-noite. Se você chegava a uma pizzaria às 11h30min e pedia um vinho, nada feito. O vinho só seria servido às 12h, e a preços de tornar sóbrio qualquer cristão. Em supermercados, a bebida de mais alto teor alcoólico permissível era a mellanöl, uma cervejinha com 2% de álcool. Mesmo assim, era proibida sua venda a menores de 18 anos.

Como se bebia então na Suécia? Nos restaurantes, como já disse. Quanto à compra de bebidas alcoólicas, estas eram feitas nos systembollag, lojas de monopólio estatal. Que abriam das oito da manhã, quando todo mundo estava no trabalho, até as seis da tarde, quando todo mundo ainda não havia saído do trabalho. Nessas lojas, de quinze em quinze minutos, um alarme sonoro indicava que o cliente – caso fosse suspeito de ser menor – tinha de mostrar documento de identidade. Também devia identificar-se quem era registrado como alcoólatra.

Isso sem falar nos impostos que incidiam sobre o álcool. Hoje não lembro o percentual, mas tornavam proibitivo qualquer porre. Uma das soluções encontradas pelos Svenssons para beber era viajar até a Finlândia ou Dinamarca. Mal o barco desatracava do cais, considerava-se que as águas eram internacionais. E podia-se beber skattefri, isto é, sem impostos. Ignorando estes jeitinhos, certa vez tomei um barco para uma ilha na Finlândia. Na ilha, o barco atracou e eu desci. Queria dar uma olhadela na ilha.

Olhei para trás: ninguém descera do barco. Só eu. Me senti ridículo até a medula. Não era para descer. Era só para beber. Sem falar que cada passageiro podia voltar a Estocolmo com duas garrafas de bebida alcoólica. Que, vendidas no câmbio negro, pagavam sobejamente a passagem. Algumas velhotas faziam disto um acréscimo a suas aposentadorias. Na Dinamarca, mais liberal, a chegada de tais barcos era tida como “a invasão dos bárbaros do norte”.

Hoje já se pode beber em bares na Suécia, e o mundo não veio abaixo por causa disto. Mas comprar bebidas, só em systembollag. Continua proibido beber na rua. Os bares fazem então um cercado nas calçadas. Se você está dentro do cercado, pode beber. Está no bar. Fora do cercado não pode. Estas restrições ao álcool são escandinavas e abrangem tanto a Noruega como a Finlândia. Suponho que também a Islândia. Na última vez que estive na Noruega, fui prover-me de algum vinho em um systembollag. Lá havia um cartaz:

CONSUMO SÓ PERMITIDO A MAIORES DE 25 ANOS

Exagero, direis. Também acho. Como também me parece exagero esta proibição de qualquer gota de álcool para dirigir. Não dirijo, nunca tive carro, mas suponho que um ou dois chopes não afetem a capacidade de dirigir. Mas o problema não é este. E sim a capacidade de fiscalização. São Paulo, por exemplo, tem dez milhões de habitantes – não falo da grande São Paulo – e 75 mil bares e restaurantes. Pelo que me dizem os jornais, a polícia dispõe de 80 bafômetros. Quer dizer, será mais uma das leis que não pegam. Tanto maconha como cocaína são hoje drogas proibidas. Ora, você as encontra em qualquer esquina. Os legisladores de Brasília vivem em um mundo irreal e consideram que se pode resolver por lei situações que nenhuma lei resolve.

Nunca tive carro, dizia. Quando em Florianópolis, senti necessidade de ter um. Eu morava na Lagoa e lecionava na Trindade. Dependia da carona de minha Baixinha. Certo dia, pensei aprender a dirigir. Sentei no volante, virei a chave de ignição e o carro deu um monte de pulos. Achei muito complicado e desisti. Além disso, eu adorava uma ou mais caipirinhas em fim de tarde. Ora, entre a cidade e a Lagoa há o morro das Sete Curvas. Optei pela caipirinhas e desisti da idéia de carro. Preferi morar no centro da cidade.

Essa é mais uma das leis que não pegam. Uma lei só pode se sustentar se houver como aplicá-la. No caso, não há. Aos leitores que me pedem uma opinião, la voilà: não dirija. Beber é melhor. Mesmo que você não beba, nada impede que o motorista que lhe vem pela frente esteja bêbado. Melhor mesmo é não ter carro.

Nunca tive e nunca senti falta. Semana que vem vou para paragens onde nenhum carro me leva. Vou para Tromsø, no extremo norte da Noruega, já no Círculo Polar Ártico. Se um carro não me leva até lá, não me interessa. Assim sendo, estou alheio a esta discussão de beber ou não beber antes de dirigir.

Mas não se preocupe quem gosta de um traguinho. Daqui a três meses não se fala mais no assunto.

Santé!

segunda-feira, junho 23, 2008
 
MOMENTOS EDIFICANTES DO LIVRO


Números, 31,14-18:

E indignou-se Moisés contra os oficiais do exército, chefes dos milhares e chefes das centenas, que vinham do serviço da guerra, e lhes disse: Deixastes viver todas as mulheres?

Eis que estas foram as que, por conselho de Balaão, fizeram que os filhos de Israel pecassem contra o Senhor no caso de Peor, pelo que houve a praga entre a congregação do Senhor.

Agora, pois, matai todos os meninos entre as crianças, e todas as mulheres que conheceram homem, deitando-se com ele.

Mas todas as meninas, que não conheceram homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós.

domingo, junho 22, 2008
 
DOS QUADRINHOS À TEOLOGIA,
ASSIM SURGEM AS RELIGIÕES




Há 75 milhões de anos, dezenas de planetas eram governados por um líder maligno, Xenu. Para sanar um problema de superpovoamento, Xenu teria segregado bilhões de seus habitantes na Terra. Eles foram mortos com bombas de hidrogênio, e seus espíritos - os thetans - passaram a vagar pelo planeta. Os thetans foram ainda submetidos a um processo que os tornou inaptos a tomar decisões. Cada habitante da Terra atual seria uma reencarnação desses espíritos.

Que tal? Parece história em quadrinhos. No entanto, são os fundamentos de uma nova crença em franca expansão, a cientologia. Este é o resumo da religião fornecido pelo Estado de São Paulo de hoje. A seita foi fundada por Lafayette Ron Hubbard (1911-1986), escritor de ficção científica. A cientologia é certamente a mais bem sucedida de suas ficções.

Toda a religião é ficção, é claro. Hubbard adaptou a sua à chamada era espacial. Enquanto os teólogos católicos recém começam a admitir a vida em outras galáxias, Hubbard situa seu gênesis em um conglomerado de planetas. Terá tido influências de paladinos célebres das histórias em quadrinhos: Flash Gordon, Superman, capitão Marvel. Numa época em que até marmanjos lêem histórias em quadrinhos e críticos literários as levam a sério, sua religião tinha tudo para prosperar. Entre seus crentes e financiadores, estão estrelas como Tom Cruise, John Travolta e Lisa Marie Presley. A religião foi criada nos anos 50 e já tem quase 10 milhões de fiéis. Tribunais da Alemanha, Áustria e Holanda definiram a cientologia como seita gananciosa, filosofia inescrupulosa, lavagem cerebral.

Até aí morreu o Neves. Qual religião não é uma uma seita gananciosa, uma filosofia inescrupulosa, uma lavagem cerebral? Se levarmos adiante a definição dos tribunais europeus, o Vaticano seria condenado por fraude. Nos EUA – relata o Estadão - os cursos para evoluir na Cientologia são ministrados até em um cruzeiro luxuoso, chamado de Freewinds, e podem chegar a custar US$ 400 mil. Isto é: se você investe tal montante na aquisição de uma doutrina, vai querer no mínimo o dobro de volta.

A nova seita foi montada a partir de fragmentos de budismo, hinduísmo e tradições cabalísticas. (E histórias em quadrinhos, é bom lembrar). Como são montadas, de um modo geral, todas as religiões. O judaísmo, por exemplo, surge a partir de crenças egípcias. O poderoso deus único, Jeová, é um xerox de faraó Akhenaton. Sem o Egito, não existe a Bíblia. Que por sua vez gerou o cristianismo, a nova seita que se apossou indevidamente do antigo Livro dos hebreus.

Não há religião hoje que não seja uma sopa de religiões antigas. Os tais de neopentescostais, que infestam as cadeias de televisão no mundo todo, são outros que se apossam do Livro a seu modo. O mesmo fizeram os espíritas. Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era médico, estudava teologia e criou a picaretagem da imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros.

Ainda por exemplo, o tal de Santo Daime, que comentei no ano passado. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo,a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se. Assumiu elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó.

No Brasil, o espiritismo fundiu-se à umbanda, em um estranho caldo que mistura uma doutrina criada por um francês, a partir de teorias de um médico austríaco, com crenças animistas da afrodescendentada. A origem desta fusão é curiosa e merece ser lembrada.

Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal.

“Foi um escândalo" – escreve Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a Escola Naval”.

O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo teria assim se revelado: "Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou".

O espiritismo então abrasileirou-se, para desalento de seus mentores europeus. A lambança é tal que já há centros orixás da umbanda, santos católicos e retratos de daimistas posicionados em lugares estratégicos do terreiro. E já existe inclusive o umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira.

O espiritismo, por sua vez, vingou no Brasil... e nas Filipinas. Terceiro Mundo é o ambiente ideal para o florescimento destas ficções criadas pelos gigolôs das angústias humanas. Cientes disso, os cientólogos – tidos hoje como criminosos em alguns países da Europa – estão se instalando no Brasil. Como São Paulo é o grande instrumento de percussão do país, escolheram São Paulo como sua sede. Começaram numa ruazinha discreta no Tatuapé, zona leste da cidade, por onde já teriam passado, desde os anos 90, 15 mil pessoas. Lucia Winther, a porta-voz da seita no país, quer agora montar uma sede luxuosa para a nova religião.

Se conheço os bois com que lavro, dentro em breve os cientólogos estarão concorrendo firme com o bispo Edir Macedo. Religião e tabagismo, costumo afirmar, só se expandem em países subdesenvolvidos.

sábado, junho 21, 2008
 
A BÍBLIA PODE



Leio na Folha de São Paulo que acadêmicos alemães estão pedindo a liberação de Mein Kampf. Em boa hora, senão atrasados. O livro de Hitler está proibido até 2015. Teoricamente, quem quiser estudar a filosofia do Führer, não tem como ler seu pensamento. Digo teoricamente, porque é fácil encontrá-lo na Internet, e em várias línguas. Diga-se de passagem, este livro foi publicado pela Editora Globo, de Porto Alegre, quando eram consultores editoriais Erico Verissimo e Maurício Rosenblat, judeu.

É difícil entender como uma democracia européia possa proibir a edição de um livro. Que, para início de conversa, é fundamental para entender a história da Alemanha. É como se a Alemanha quisesse proibir o estudo de seu passado.

O livrinho de Hitler começou mal sua carreira editorial. Não conseguiu vender os dez mil exemplares de sua edição inicial. Em 1933, quando Hitler subiu ao poder, virou best-seller. Prefeituras e administrações regionais eram obrigadas a financiar milhares de exemplares, para depois presenteá-los a jovens recém-casados. No que em pouco difere da política das editoras brasileiras. Machado e Guimarães Rosa, por exemplo, por imposição oficial, se tornaram leitura obrigatória de colegiais, vestibulandos e universitários.

Mein Kampf é um best-seller forçado, diz o historiador Bernd Soesemann, da Universidade Livre de Berlim. Ora, no Brasil, vivemos em pleno universo de best-sellers forçados e ninguém reclama.

Já a Bíblia, pode. Ninguém na Alemanha teria restrições à publicação deste livrinho. Que defende massacres que Hitler algum ousou imaginar. Jeová manda matar e arrasar todas as tribos que não lhe prestam devoção. Hitler, a rigor, ordenou matar apenas a tribo que ordenava matar e arrasar todas as demais tribos que cultuassem outros deuses que não Jeová.

sexta-feira, junho 20, 2008
 
SAUDADES DE CARTAS



Escrever cartas foi um hábito que sempre cultivei. Era a comunicação dos tempos antigos, se por antigos entendemos os dias de nossa adolescência. Nos dias de Estocolmo, troquei intensa correspondência com minha Baixinha. Eram dias de ditadura e havia um certo temor no ar. Numerávamos cada carta para saber se alguma havia sido censurada. No fundo, era paranóia pela qual fui contaminado pelo contato com exilados. Nem eu nem ela tínhamos nada a ver com guerrilhas ou ideologias.

As cartas eram esperadas com ansiedade. Levavam uma semana para chegar. Nada mais prazeroso que abrir a caixa de correspondência e ver um envelope com aquela caligrafia querida. Cada carta era lida e relida, e respondida com muito carinho.

Nos dias de Paris, quando escrevia para a Caldas Júnior, sempre deixava meu endereço ao pé da coluna, para auscultar a reação dos leitores. Recebi milhares de cartas e respondi a todas. Nos tempos das máquinas datilográficas. (Hoje, já não consigo escrever em uma dessas máquinas). Tive uma leitora que me escrevia até cinco cartas por dia. Bom, aí é demais, confesso. Em algum momento, já contei esta história. Ela pretendia gerar um novo deus. E o pai... seria eu! Fugi.

Guardo em meus baús centenas de cartas. São peças de museu, lembranças de um passado que não mais existe. Suponho que serão documentos curiosos daqui a alguns anos. Vivemos a época do e-mail. Nada contra. E-mails são rápidos, chegam mal foram expedidos, o que nos obriga a respostas também rápidas. Na época das cartas, nos sobrava algum tempo para pensar na resposta. A epistolografia, gênero cultivado por não poucos escritores do século passado, morreu. E até foi bom que morresse. Os pavões, cientes de sua posteridade, construíam máscaras em suas correspondências, para contemplação dos homens do futuro. O escritor, paralelamente à sua obra, construía uma outra, também fictícia.

O e-mail permite outros requintes. Pode-se mandar fotos, vídeos, música. Quando em Paris, eu não dispunha nem de telex. Minhas crônicas, eu as enviava pela Varig. Escrevia sete, fazia um pacote, ia até os Champs Elysées e as despachava. Podia viajar por onde quisesse, escrever de qualquer parte do mundo, mas dependia sempre de um envelope enviado pela Varig. Escrevia então com sete dias de antecipação, no mínimo. O que era um bom exercício. Tinha de pensar à frente.

Nada contra o e-mail, dizia. Mas que saudades das cartas. Hoje, só recebo correspondência de bancos, IPTU, contas de telefone ou de energia. É correspondência que detesto. Estou adquirindo alergia àquele monte de envelopes padronizados. Vou deixando que se amontoem e tiro um dia no mês para ler tudo.

Em meio a isso, de vez em quando, recebo uma cartinha de minha professora de francês no ginásio. É a última correspondente que me escreve no estilo antigo. Abençoados sejam os neoluditas, que ainda não chegaram à era informática.

Enfim, a correspondência por mail é sempre mais ágil e poderosa. Mas receber uma carta, daquelas antigas, manuscrita e com selos, sempre faz bem.

quinta-feira, junho 19, 2008
 
TARSO PODE


Há uma indignação generalizada no país, tanto da imprensa como de entidades e personalidades jurídicas, pelo fato de um oficial do Exército ter entregue três jovens de uma favela a um bando rival armado, que os trucidou.

A indignação é legítima. Pelo menos se procede a versão dos militares. Mas é curioso observar que quando o ministro da Justiça, Tarso Genro, devolveu dois boxeadores cubanos - que queriam asilo no Brasil - a uma ditadura armada, apenas tímidos protestos foram esboçados no país.

Foi decretada a prisão dos militares que enviaram os três favelados à morte. Tarso continua livre.

 
OS NOVOS ÁRABES



Existia na Suécia uma canção que dizia: Jag är så glad för jag är svensk. Traduzindo: sou tão feliz, porque eu sou sueco. Afonsocelsimo nórdico, é verdade. Mas, bem ou mal, um Svenson tem boas razões para ser feliz. Jamais encontraremos um sueco migrando para outros países para lavar pratos ou limpar quartos de hotel.

Ao ler o noticiário sobre as novas determinações na Europa sobre os imigrantes, me vem à mente, como disco rachado, o deslumbramento daquele conterrâneo nosso que se sentia feliz por ser brasileiro... na África: “I’m from Brazil!”. “Hi, I’m from Brazil!”.

A Comunidade Européia está tomando uma decisão que há muito deveria ter tomado. A partir de 2010, imigrantes considerados ilegais nos países da União Européia poderão permanecer presos, em centros especiais de detenção, por até um ano e meio, sem julgamento, até que sejam deportados. O Parlamento Europeu aprovou ontem a chamada Diretiva de Retorno, que determina regras comuns para lidar com imigrantes irregulares -que não têm permissão legal para entrada, permanência ou residência em países da UE.

As medidas da CE estão chocando o Brasil e demais países do Terceiro Mundo. Pelo jeito, estes países consideram que ilegalidade... é perfeitamente legal. De certa forma, europeu é o que não falta para defender esta ilegalidade. Na França, Itália, Alemanha, Dinamarca e Suécia sempre há quem tome as dores dos sem-papéis. Em Paris, a Igreja Católica sempre abrigou em suas igrejas os imigrantes ilegais. Assim sendo, até hoje soa como heresia, para uma certa esquerda européia, definir como crime a ilegalidade.

Com a nova diretiva – leio nos jornais –, todos os imigrantes ilegais no bloco passarão por procedimentos comuns. Uma vez identificados, receberão por escrito a decisão administrativa ou judicial para sua deportação. Terão prazo entre 7 e 30 dias para saírem voluntariamente. Após esse período, as autoridades emitirão ordem de remoção. Se considerarem que há risco de fuga, o imigrante pode ser preso mesmo sem autorização judicial. A lei prevê inclusive a deportação de crianças desacompanhadas.

A Associação Européia de Defesa dos Direitos Humanos já chiou e considerou inaceitável a possibilidade de detenção de homens, mulheres e crianças por até 18 meses simplesmente por terem permanência irregular. A entidade criticou severamente vários pontos da lei, como a detenção de crianças sob o pretexto de manter a unidade familiar e a deportação para países de trânsito, onde os imigrantes podem, inclusive, ser detidos como ilegais. Nada de novo sob o sol: tanto na Europa como aqui, os tais de defensores dos ditos direitos humanos sempre tomam o partido da ilegalidade.

Uma má notícia para o patriotão tupiniquim em vilegiatura pela África: segundo a Folha de São Paulo, o endurecimento das normas contra imigração ilegal na Europa pode atingir especialmente os brasileiros. Atualmente, os nascidos no país estão em quarto lugar na tentativa de entrar ilegalmente na UE, atrás de iraquianos, chineses e turcos. Só no ano passado, 9.410 brasileiros foram rechaçados nos aeroportos europeus. O Reino Unido foi o país que mais recusou admissão de brasileiros, seguido de Espanha, Portugal e França. Segundo noticiário da Globo News, 200 mil brasileiros podem ser mandados de volta da Europa. E a imprensa nacional se escandaliza quando alguns gatos pingados são devolvidos da Espanha.

Ainda ontem, a imprensa espanhola noticiava que, numa investigação chamada de "operação carioca", a polícia daquele país prendeu uma quadrilha de 16 brasileiros acusados de falsificar documentos europeus. O grupo atuava nas cidades de Madri e La Coruña, e já tinha lucrado em torno de 250 mil euros (cerca de R$ 625 mil) em cinco meses vendendo RGs e passaportes falsos a outros brasileiros. Com esta operação policial já são 12 as quadrilhas brasileiras de falsificadores desbaratadas na Espanha nos últimos 12 meses. Um balanço de 138 presos em 13 cidades. “Oh, eu sou tão feliz porque sou brasileiro!”

Um fenômeno novo está acontecendo na Europa. Devido a esta marginália que migra ilegalmente – e que ainda forma quadrilhas para favorecer a migração ilegal – o brasileiro está passando a ocupar o lugar dos árabes na antipatia dos europeus. Não era assim nos anos 70, em plena ditadura. Agora é assim, no governo do “nunca antes na história”. Enquanto o Supremo Apedeuta cacareja as glórias de seu mandato, a brasileirada vai delinqüir na Europa.

Fomos promovidos ao papel de novos árabes do velho continente.

quarta-feira, junho 18, 2008
 
ELES SABEM O QUE FAZEM


Leio no Estadão de ontem que a CNBB quer exportar o movimento dos sem-terra para a África. Um grupo de representantes da Conferência Episcopal Africana chega em julho para conhecer funcionamento da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, essa entidade que lidera, ao arrepio da lei, as invasões de terra no Brasil. Segundo o padre Nelito Dornelas, assessor da CNBB para o setor de Superação da Miséria e da Fome e um dos encarregados de organizar a visita, os africanos vêm aprender com os brasileiros.

A invasão de terras é uma antiga prática do Livro que embasa a Igreja. Já no Êxodo (13:5), lemos: “Quando o Senhor te houver introduzido na terra dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos heveus e dos jebuseus, que ele jurou a teus pais que te daria, terra que mana leite e mel, guardarás este culto neste mês”.

Ou seja, cananeus, heteus, amorreus, heveus e jebuseus que se lixem, porque a terra foi prometida aos judeus. Os africanos "querem implantar lá a metodologia desenvolvida pela CPT", disse o padre Nelito. "Também estão interessados em ter missionários brasileiros que ajudem os trabalhadores rurais a organizarem seus movimentos, como foi feito no Brasil. Como se sabe, o MST é filho da CPT."

Em sua franqueza, o sacerdote católico admite que a guerrilha do MST é filha da Igreja Católica. E quer exportar a guerrilha para a África. Está chovendo no molhado. Já em 2002, Robert Mugabe, o presidente do Zimbábue, avisara aos fazendeiros brancos de que seu governo iria removê-los de suas terras. E os removeu. Este é o bíblico sonho da CNBB, tirar terras de quem produz e entregá-las a quem não sabe como produzir. Foi o que Mugabe fez. É o que o padre Nelito adoraria fazer.

Costumo afirmar que tabagismo e cristianismo são, cada vez mais, atributos do Terceiro Mundo. Cada vez mais debilitada no Ocidente, a Igreja Católica deposita suas esperanças numa África inculta e analfabeta. Sacerdotes sabem o que fazem.

Sua seara é a dos incultos. Entre eles, têm grandes chances de sucesso.

segunda-feira, junho 16, 2008
 
“HI, I’M FROM BRAZIL!”


Comentei, na semana passada, o deslumbramento de um patriotão, que se dizia muito bem recebido no estrangeiro quando repetia:

“I’m from Brazil!”. “Hi, I’m from Brazil!”. “My name is Fabio, I come from Brazil!”
Nunca repeti tanto isso nos últimos meses. O sorriso do entrevistado se abre, o guarda na fronteira subitamente fica mais gentil. As nuvens desaparecem, o céu fica azul, o sol brilha, os passarinhos cantam... Figurativamente, claro.


Estava na África, bem entendido. Que tentasse então abusar de sua condição de brasileiro na Europa! – escrevi na ocasião. Seria outro o trote da mula.

Vamos aos fatos. Diante da invasão brasileira no Reino Unido, Londres já cogita em exigir visto de brasileiros. Se você hoje tem de varar madrugadas numa fila se quiser ir para os Estados Unidos ou México, em breve talvez sofra o mesmo quem quiser ir para a Inglaterra. Imagine-se então desembarcando em Heathrow e exclamando no controle de fronteiras: “Hi, I’m from Brazil!”. Seria um tanto contraproducente, eu diria.

A Espanha, por sua vez, vai começar a pagar para que brasileiros e outros imigrantes deixem o país. É o que contam os jornais de hoje. A partir do dia 1° de julho, os brasileiros que estejam desempregados na Espanha poderão pedir incentivos financeiros para retornar ao Brasil. No total, a medida tem como objetivo gerar o retorno de um milhão de imigrantes a seus países de origem, como forma de reduzir a tensão na busca por trabalho no país.

Somos tão benquistos na Espanha que a Espanha nos paga para voltarmos ao Brasil. E atenção: serão pagos os imigrantes que lá estão legalmente. Imagine então o tratamento reservado para os ilegais. Esta solução já foi utilizada na França, nos anos 70, por Giscard d’Estaing. Quem quisesse voltar a seu país, tinha passagem de volta e mais dez mil francos no bolso. Muitos voltaram, particularmente os portugueses. Com dez mil francos, na época, dava para instalar uma padaria na esquina e continuar tocando a vida. Mas Portugal sempre foi um país para onde se pode voltar.

Voltar para país árabe é mais complicado. Slimane Zeghidour, um bom amigo argelino, me confidenciava: “Podem me dar a França inteira. Não volto. Não posso levá-la no bolso”. Foi sensato, o Slimane. Em minha penúltima viagem, encontrei numa livraria parisiense um volumoso ensaio (446 páginas) de sua autoria, intitulado La Vie quotidienne à la Mecque – de Mahomet à nos jours (Hachette, 1989). Livro em tom de reportagem histórica, está despido de qualquer proselitismo. Dificilmente o teria publicado em seu país natal.

Mas volto aos patriotões tupiniquins. Enquanto o governo se jacta de PIBs magníficos, de uma economia em plena expansão, a Europa toma medidas para mandar de volta a seus PIBs magníficos os oriundos da famosa economia em plena expansão. “Deus passou por aqui e parece que resolveu ficar” – andou dizendo o Supremo Apedeuta.

Os brasileiros, mais pragmáticos, parecem preferir ficar na Europa.

domingo, junho 15, 2008
 
O HÍMEN COMPLACENTE DA VELHA EUROPA



Há horas defendo a tese de que a Europa está se rendendo ao Islã. Durante minha última viagem, o grande debate na França girava em torno de uma decisão judicial de um tribunal de Lille, que anulou o casamento de dois jovens muçulmanos franceses, em 2006, porque o noivo descobrira que a noiva não era virgem, como afirmava ser. Como nos bons tempos da Idade Média, o noivo, um engenheiro de 30 anos, abandonou o leito nupcial e anunciou aos convidados, que ainda festejavam, que a noiva tinha mentido sobre o seu passado. Na mesma noite, ela foi largada na porta da casa dos pais. O engenheiro procurou um advogado para anular o casamento. A noiva, uma estudante de enfermagem de 20 anos, confessou ter mentido sobre sua virgindade no tribunal e concordou com a anulação.

Em sua decisão, a corte não fez menção a questões religiosas. Apenas alegou violação de contrato, já que o engenheiro tinha se casado com a jovem depois "que ela se apresentou a ele como solteira e casta". É o que, no Direito das Coisas, se chama de vicío redibitório. Ou seja, o defeito cuja existência nenhuma circunstância pode revelar, senão mediante exames ou testes. É chamado de redibitório pela doutrina posto que confere ao contratante prejudicado o direito de redibir o contrato, devolvendo a coisa e recebendo do vendedor a quantia paga.

Acontece que matrimônio não pertence ao âmbito do Direito das Coisas, nem mulher é mercadoria que se possa devolver porque vem com defeito de fábrica. A decisão do tribunal de Lille recua o direito de um Estado republicano e laico do século XXI para bem mais além da Idade Média. Mais precisamente para a Roma Antiga, quando as ações redibitórias foram criadas pelos edis nos negócios de venda e compra de escravos realizados nas feiras sob sua jurisdição. A justiça francesa deu a uma cidadã francesa o mesmo tratamento que os antigos romanos davam a seus escravos.

Em meio a isso, prospera em plena Gália uma nova indústria, a da reconstituição de hímens. Por coisa de três mil dólares e 30 minutos de cirurgia, qualquer muçulmana que já cedeu às tentações do Ocidente pode recuperar sua virgindade. O importante é que, na noite de núpcias, haja sangue. Sem sangue, os brutos não se satisfazem e devolvem aos pais a mercadoria avariada.

Curiosa filosofia. Primeiro, as mulheres são castradas. Corta-se o clitóris e os grandes lábios da vagina. Que, por sua vez, é costurada. Mas o hímen tem de ficar intacto, para a glória dos machos maometanos.

Que bárbaros cultivem suas práticas bárbaras, entende-se. O que é difícil entender é um tribunal francês que as endosse. É de espantar também que um médico francês seja cúmplice de tais cirurgias absurdas. Mais um pouco, e os bougnoulles passarão a exigir que os planos de saúde cubram os custos de uma himenoplastia. Não estamos longe disso. Rachid Dati, a ministra francesa da Justiça – que é muçulmana – inicialmente apoiou a decisão do tribunal de Lille. Só voltou atrás quando foram feitos apelos ao Parlamento, pedindo sua renúncia.

A bem da verdade, a barbárie não é exclusivamente muçulmana. A Igreja de Roma também exige virgindade antes do casamento. Mas já conformou-se em conviver com Estados laicos e certamente jamais endossará a devolução de uma moça a seus pais, só porque a moça não era virgem. Mas a todo momento o Vaticano lança olhares cúmplices ao Islã. Recentemente, um cardeal pregava mais diálogo entre ambas as religiões.

Costumo afirmar que a mulher é o nó górdio entre o Ocidente e o Islã. Enquanto muçulmanos tratarem a mulher como um ser inferior, diálogo algum é possível. Sem falar que há pessoas presas no mundo árabe por terem se convertido ao catolicismo. No início deste mês, em Tiaret, Argélia, quatro argelinos foram condenados de seis a dois meses de prisão e a multas de 200 mil a 100 mil dinares (de 2.702 a 1.036 euros) por se declararem cristãos ante um juiz. Dois outros jovens, que desmentiram serem conversos, foram absolvidos.

Desde o fim do ano passado, dizem os jornais, multiplicaram-se os processos de argelinos evangélicos. Também foi condenado um sacerdote católico francês por rezar em um bosque com subsaarianos. Enquanto isto, na Europa – e particularmente na Itália – os párocos estão cedendo suas igrejas para que os muçulmanos ergam o traseiro para a lua e orem voltados para Meca.

Em um de seus mais celebrados romances, A Peste, Albert Camus situa o mal em Oran. O autor, propositadamente, não definia com precisão o que seria a peste. Pretendia, com esta indefinição, atacar todo e qualquer totalitarismo, fosse de esquerda ou de direita. Hoje, a peste contamina a Europa. Não é mais o nazismo ou comunismo. Não vem da esquerda nem da direita. Vem do alto. Fanáticos que só conhecem Estados teocráticos querem impor seus bárbaros costumes a Estados laicos. E estão conseguindo. A velha Europa tem hímen complacente e deixa-se violar prazerosamente.

Você tem algum fascínio pela cultura européia e ainda não conhece o velho continente? Viaje logo. Antes que seja tarde.

sábado, junho 14, 2008
 
O ABSURDO TREM


Um leitor atento definiu com precisão o absurdo trem criado por dona Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy Relaxa e Goza:


Janer

Este trem fantasma paranaense é mais uma demonstração que a tal indústria aqui no Brasil está muito longe da realidade. Este arremedo de Orient Express vai do nada a lugar nenhum, mostrando qualquer coisa para ninguém. Ou seja, está condenado a ser mais um mastodonte, um "trensauro", uma besteira, uma idiotice, um nonsense, um desvario. O pior é que ainda tem gente que bate palmas para as "iniciativas" da sinistra sra., esquecendo-se de sua lamentável atuação política, dos escândalos de sua catastrófica administração e sua atitude, sempre desdenhosa em relação a quem a questiona ou dela discorda. "Relaxa e goza" é uma das suas frases lapidares.

Uma pena. As eleições vêm aí, um outro ministro do turismo vai ser empossado e as mesmas moscas continuarão sobrevoando o mesmo monturo. Então, sobra a Europa, o Caribe, a América do Norte para a gente tungar a bateria, e até a Ásia, para quem gosta de esquisitices.

Abraço,

Raul Almeida


Pois é, Raul! Essa gentalha, que vai à Europa sempre em missões oficiais, que é sempre recebida em palácios e transportada em carros de luxo, passa pelo mundo sem ver nada. Os trens de luxo europeus – que são vários – além de serem de luxo percorrem uma geografia privilegiada, passando pelas cidades mais deslumbrantes do continente. Dispõem de cabines para dormir, restaurante e culinária sofisticada. Outros trens, que sequer podem pretender-se de luxo, dispõem de couchettes para viagens mais longas. Por viagens mais longas entenda-se o percurso de uma noite. O Martaxa Express, para uma viagem de dez dias, não oferece sequer um leito.

De fato, será um trem fantasma. Terá curta existência e será certamente subsidiado pelo Estado. Isto é, pelo contribuinte. É dirigido a turistas estrangeiros, já que o turista interno não terá grana – nem interesse – por essa travessia rumo
a lugar nenhum. Mas um europeu, americano ou japonês jamais será tão idiota a ponto de pagar uma fortuna por uma viagem sem graça alguma. Quanto a construir uma malha ferroviária – que já existiu, diga-se de passagem – para conforto dos brasileiros, disto ninguém cogita.

Viajando com minha filha pela Europa, dei-me conta que as novas gerações nem têm idéia do que seja um trem. “Nunca viajei de trem” – disse-me. Era óbvio, mas aquele óbvio me deixou perplexo. Minhas primeiras viagens foram todas de trem. De Dom Pedrito a Porto Alegre, com baldeação em Cacequi e Santa Maria. Santa Maria, além de cidade universitária, era o grande entroncamento ferroviário do Rio Grande do Sul. Em Cacequi, a estação era o local de lazer por excelência da cidade. As meninas faziam footing ao lado dos trens, para ver quem passava ou descia.

Hoje, nem sombra de ferrovias. Cá e lá, algum arremedo de trem para matar as saudades dos saudosistas. Ou essas excrescências de periferia das grandes cidades, que mais parecem sardinha em lata.

Ao optar pelas rodovias, o Brasil renunciou a um dos mais confortáveis sistemas de transporte do mundo. Optou também pelos fins de semana e feriadões sangrentos, com dezenas e mesmo centenas de mortes nas estradas, que de tão rotineiras já não comovem ninguém. Em meio a isso, o governo cria um trem para estrangeiros endinheirados.

Trem que vai morrer logo, pois quem tem dinheiro não é besta.

sexta-feira, junho 13, 2008
 
HURTIGRUTEN


A Hurtigruten – Expresso Costeiro, em norueguês – é uma linha marítima que dispõe de onze navios, que sobem de sul a norte o litoral do país. Você começa a navegação em Bergen, ao sul e, se quiser, vai até Kirkenes, no extremo norte da Noruega, já na fronteira com a Rússia. Há barcos antigos e novos. Desde o MS Nordstjernen, construído em 1956, até o moderníssimo MS Midnatsol, de 2003.

A viagem é flexível. Você pode embarcar onde quiser e descer onde quiser. Seja em Ålesund, Trondheim, Bodø, ou nos demais portos por onde os barcos passam. Você pode descer em uma cidade, ficar lá quantos dias quiser e pegar um outro navio para seguir viagem. Cada navio tem sua personalidade, é uma outra viagem. Abrigam desde 150 a 650 passageiros. Você pode também, mediante um pagamento extra, pegar um ônibus em uma cidade – para ver os fjordes do alto ou as geleiras – e voltar ao navio na cidade seguinte.

Fiz este percurso em 2000, com minha Baixinha. Além de parar em cidades, os navios penetram em fjordes e atracam em pequenas aldeias de 100 ou 200 almas. É curioso ver um navio atracando em uma aldeia perdida, com cinco ou mais vezes seu número de habitantes. Nesta altura, para o leitor neófito, é bom que se explique o que é um fjorde. À primeira vista, parecem rios. São no entanto braços de mar que entram montanha adentro. Podem ser extremamente estreitos, coisa de 200 metros de largura. Quanto à profundidade, pode atingir 1.500 metros. Ou seja, transatlânticos de qualquer porte podem navegá-los. Devido a esta característica, na Segunda Guerra serviram de esconderijo para submarinos alemães.

O percurso do litoral é divino, particularmente no verão. Aquele sol que jamais se esconde não o deixa dormir. Você até pode dormir, nada impede. Mas o fascínio daquelas noites brancas não o incitam a ir para a cama. O fjorde mais deslumbrante pelo qual entrei foi o Trollfjorden, já no Círculo Polar Ártico. É pequeno, não tem mais de dois quilômetros de extensão. Nisto reside sua beleza. Está envolto por montanhas verdes e ao mesmo tempo nevadas, e cascatas caindo do alto. Eu estava lendo em um dos salões, quando chegou minha Baixinha, desesperada: “Sobe, sobe, não imaginas o que está acontecendo lá fora”. Era meia-noite, em pleno verão boreal. Subi. Franceses atrapalhados não sabiam para onde focar suas câmeras. Temperatura em torno de zero grau. Foi-nos servida uma sopa quente de mariscos que aqueceu até as entranhas.

Foi certamente a viagem mais linda de minha vida. Mais linda ainda que a viagem ao Assekrem, no Saara argelino. O que me agrada nestas navegações é que você está em meio à natureza, mas abrigado pelo conforto de um barco. Em meio ao mar, a centos e poucos metros da montanha, do verde e da neve, mas em um salão confortável e aquecido, sem areia por perto e servido por garçons. É minha dobradinha ideal: civilização e natureza, sem os desconfortos desta última.

Divino, não é verdade? Só tem um problema. Se tudo o que Midas tocava virava ouro, tudo o que o Brasil toca vira merda. A Viagens Abreu – certamente a mais antipática agência de turismo de massa que conheço, junto com a CVC – monopolizou a representação da Hurtigruten no Brasil. E só vende um pacote: de Bergen a Kirkenes, sempre no mesmo navio, sem opção alguma de estadas nos portos ou troca de navios. Transformou a linha costeira em cruzeiro. Assim, se você quiser descer ou parar em Ålesund, Trondheim, Bodø ou Tromsø, nada feito. Enfim, até que pode. Mas terá de pagar o percurso até Kirkenes.

Ora, neste julho, eu quero ir até Tromsø. Cidade universitária nos confins do planeta, de uns 60 mil habitantes, é tida como a Paris do Ártico. A tal de Viagens Abreu, que açambarcou as viagens da Hurtigruten, não me oferece esta possibilidade. Mais ainda: vende o pacote com refeições a bordo. O que, além de ser caro, lhe rouba a aventura de degustar a culinária dos restaurantes de cada porto.

Solução? Em Paris, na primeira agência de turismo que entrei, fechei um percurso entre Bergen e Tromsø. Pela metade do preço que me propunha a abominável Abreu. Ou seja, dezenove anos após a queda do Muro, dezessete anos após o desmoronamento da União Soviética, ainda há no Brasil quem aposte nos monopólios do socialismo.

Resumindo: se você quiser fazer uma travessia a seu gosto pela Hurtigruten, melhor ir a Paris. Para conferir:

http://www.hurtigruteninpictures.com/

http://en.wikipedia.org/wiki/Hurtigruten

quinta-feira, junho 12, 2008
 
AFONSOS CELSOS REAGEM


De um azedo leitor, recebo:

Apesar de teu artigo ser um lixo, sempre desvalorizando a cultura e empreitos nacionais (e vangloriando os estrangeiros), e ainda criticando colegas de profissão, obrigado pela dica do Hurtigruten.

Gostou, é? De nada. Mas se você prefere o nacional, esqueça os empreitos nórdicos. Embarque no Martaxa Express, e pague, por uma pessoa, em um trem sem cabines nem leitos, mais do que pagam duas navegando com luxo e conforto em meio a uma paisagem irreal iluminada pelo sol da meia-noite.

Seguidamente, sou acusado de desvalorizar o nacional. Há patriotões que não aceitam a mínima crítica ao Brasil. Várias vezes, em mesas de bar, ouvi esta pergunta: por que então estás no Brasil? Ora, estou aqui porque tenho passaporte nacional, bem ou mal é meu país e acho suportável nele viver. Afinal, isto aqui pode ser bagunçado, mas não é nenhuma Cuba ou Uganda. O Brasil está semeado de ilhas onde se pode viver bem. Vivo numa delas. Então, dá para ir levando.

Mas estou aqui também porque não tenho condições de enfrentar o preço do metro quadrado em Paris ou Madri. Se as tivesse, adeus Pindorama. Pelo metro quadrado em São Paulo, um dos mais caros do país, pago um décimo do que pagaria em Paris. Então, o mais inteligente é ficar por aqui mesmo e visitar Paris de vez em quando. Quanto a criticar o Brasil, é direito que me reservo. Não vivemos em ditadura. A expressão é livre. Então, não vejo porque calar.

Em 72, era diferente. Eu voltava da Suécia e fui convidado para uma entrevista numa televisão gaúcha. Como o programa avançava e demoravam a chamar-me para o estúdio, perguntei o que estava acontecendo. Me apontaram com o dedo dois senhores. “Eles são da Polícia Federal e vetaram tua participação no programa”.

Fui falar com eles. Que história é essa? Não sou comunista, não fui expulso do país, saí porque quis, vou falar sobre uma viagem a um país distante. Que, aliás, nem é comunista. Por que o veto? Concordaram então com a entrevista. Com uma condição: eu não podia fazer comparação alguma da Suécia com o Brasil. Topei. De fato, não fiz comparação alguma. Quem as fez, foram os espectadores.

Ao longo de minha vida e de meu ofício, seguidamente tropeço com esses censores. Semprei critiquei, por exemplo, a política de preços praticada pela antiga Varig. Minhas viagens à Europa, sempre as fiz pela LAP, Aerolíneas Argentinas e até mesmo pela Pluna uruguaia. As passagens saíam por quase metade do preço cobrado pela Varig. No ano 2.000, minha Baixinha queria ir para a Terra do Fogo, aqui ao lado. Investiguei os preços nacionais. Saía mais de 1.500 dólares por pessoa. A Baixinha queria gelo, montanhas nevadas, frio. Bom, pensei, isto existe também no norte do planetinha. Pensei nos fjordes noruegueses, outro sonho dela. Pesquisei passagens. Encontrei uma, pela Swiss Air, São Paulo-Oslo-Estocolmo-São Paulo... por 669 dólares. Mais que o dobro de distância e menos que a metade do preço. Com direito a um sábado aprazível em Zurich. Ora, então é pela Swiss Air que eu vou. E foi assim que descobri a Hurtigruten. Não sem antes passar uma tarde magnífica, tomando cerveja junto ao Limmat, em um café sugestivamente chamado Panta Rei.

Um ano antes da falência da Varig, escrevi uma crônica intitulada “Morte à Varig”. Meu desejo era que afundasse mesmo, para dar lugar a empresas que democratizassem as viagens. Na Europa, hoje, você pode voar de Londres a Paris por dez euros. 27 reais. Compare este preço com o que se paga na ponte aérea Rio/São Paulo. Isto é, mesmo morta a Varig, ainda não se estabeleceu no país uma verdadeira concorrência. Minha crônica foi amaldiçoada pelos afonsocelsos da vida. E como falei da Varig, o afonsocelsimo que mais chiou era oriundo do Rio Grande do Sul. Claro que muitos tinham motivos para lamentar a morte da empresa. Eram aqueles que, por cargo ou ofício, nunca pagavam passagens. (E estes eram legião). Ou pessoas que tinham suas passagens sempre pagas pelos maridos ou pais. Assim, qualquer empresa é divina.

Como o ufanista que me escreve parece já hesitar em utilizar os empreitos tupiniquins, mais adiante falarei mais sobre a Hurtigruten.

quarta-feira, junho 11, 2008
 
DOIS VIGARISTAS


Em crônica passada, contei que quando minha companheira de viagem ia aos grandes museus, eu tirava folga como guia e ia aos botecos. Museus, hoje, me cansam. A pintura também. Já passei por quase todos os grandes museus da Europa, só no Prado tive trinta horas de aula. No Hermitage, após tê-lo percorrido por três horas, nem tinha ainda chegado ao setor dos pintores. Desisti. Quando penso em pintura, gosto de citar Fernando Pessoa e em seu ensaio intitulado Heróstrato. Se o leitor se sente um tanto inculto por não gostar de percorrer museus – escrevi há alguns anos - sugiro deter-se neste fragmento tipicamente pessoano:

"A pintura afundar-se-á. A fotografia privou-a de muito do seu atrativo. A futileza da estupidez privou-a de quase todo o resto. O que restou tem sido levado em despojo pelos colecionadores americanos. Um grande quadro significa uma coisa que um americano rico quer comprar porque outras pessoas gostariam de comprá-lo se pudessem. São assim os quadros postos em paralelo, não com poemas ou romances, mas com as primeiras edições de certos poemas ou romances. O museu torna-se uma coisa paralela, não à biblioteca, mas à biblioteca do bibliófilo. A apreciação da pintura torna-se não um paralelo à apreciação da literatura, mas à apreciação de edições. A crítica de arte cai gradativamente para as mãos dos negociantes de antigüidades".

Turista inteligente – penso - é o que conhece os museus por fora e os bares por dentro. Em matéria de museus, tenho gratas lembranças de um na Alemanha, o Berlin Museum. Visitei-o bem antes da queda do Muro, na Berlim Ocidental. Pagava-se alguns marcos de ingresso e aos domingos enfrentava-se fila. Não lembro bem o que guardava - creio que trens antigos - e suponho que tampouco o lembrem suas centenas de visitantes. Mas não esqueci, nem visitante algum terá esquecido, o simpático café que ficava ao final dos corredores, onde um garçom servia um vodca com figo e pimenta, este sim, inolvidável. Os alemães, pragmáticos, haviam entendido como atrair público a um museu.

Como disse na crônica passada, adoro os Museos del Jamón, na Espanha. É uma cadeia de cafés cujas paredes e teto são forrados de presuntos. São os únicos museus que freqüento hoje. Em nosso mercado de futilidades, a pintura é o que menos interessa. Há vários anos escrevi, para espanto de leitores ingênuos: "Quem intuiu isto com propriedade foi Salvador Dali, o genial vigarista catalão. No final da vida, ciente de que sua assinatura valia mais que qualquer quadro, assinou durante dias a fio milhares de telas em branco, a serem pintadas mais tarde por funcionários de seu ateliê. Ninguém pode alegar que são falsos Dalis, afinal levam o jamegão do autor. Com sua molecagem, Dali demoliu a crítica de pintura contemporânea. Os marchands detestam Dali".

O marchand belga Stan Lauryssens confirma esta trapaça e nos traz novas notícias sobre as vigarices do catalão. Em um livro de memórias, Dali y Yo, lançado ontem, afirma que 75% dos quadros de Salvador Dali são falsos, mas ressalta que uma parte destes era pintada por outros artistas e finalizada por ele, que dava "seu toque surrealista". Disse à imprensa que nos anos 70 "era mais fácil vender um falso Dali do que um quadro autêntico.(...) O mundo, há 25 anos, era uma sociedade que buscava o enriquecimento rápido e não era difícil encontrar gente que investisse em arte, embora fosse falsa, com a idéia de que em cinco anos venderia a obra e ganharia mais dinheiro".

Em sua opinião, no final dos anos 60 e princípios dos 70 o próprio Dali e sua companheira Gala favoreceram a circulação de obras falsas, porque precisavam de dinheiro para manter seu estilo de vida, que incluía seis meses ao ano nos hotéis mais caros de Nova York e Paris. "Pelo menos uma vez por mês, tomo uma taça com alguns para os quais vendia quadros falsos de Dali".

Bom, nessa trapaça jamais caí. Nem teria dinheiro para tanto. Em meu apartamento, já tive reproduções de Dali, que me custaram poucos dólares. Ora, direis, reprodução não é original. Ocorre que também os originais de Dali eram falsos. Melhor então as reproduções baratinhas.

Outro grande vigarista foi Picasso. Repetidamente tenho denunciado a vigarice de Guernica. E por que continuamente? Porque não passa mês sem que algum jornalista ou escritor mencione Guernica como uma homenagem às vítimas do bombardeio da cidade basca de Gernika, em 1937. Nada disto. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do vigarista malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi.

Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, até hoje multidões hipnotizadas pela propaganda vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. Busque o quadro na rede e examine-o. Você não vai encontrar um único elemento que lembre um bombardeio.

Como Dali fez uma opção pelos Estados Unidos e pelo capitalismo, suas falsificações são tidas hoje como um crime lesa-arte. Picasso era comunista e optou pela esquerdista Paris. Seu embuste é universalmente perdoado.

terça-feira, junho 10, 2008
 
GREAT BRAZIL SACANAGEM


Os piores suplementos dos grandes jornais brasileiros são, sem dúvida alguma, os de turismo. Os repórteres viajam a convite de agências e empresas de turismo e sentem-se na obrigação de louvar a viagem, por estúpida que seja. É o que, em jornalismo, chamamos jabaculê. É curioso ver jornalistas denunciando o jabaculê em várias áreas da imprensa. Exceto nos suplementos de turismo. E de cinema. As páginas de cinema vendem ao leitor filmes medíocres, só porque os redatores foram convidados a Hollywood por produtoras. Os ditos ombudsmänner não dizem uma palavrinha sobre isto.

Mas volto aos suplementos turísticos. Julia Contier, do Estadão, moça que viajou a convite do tal de Great Brazil Express, picaretagem criada por dona Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy Relaxa e Goza, anuncia o pacote na edição de hoje do jornal.

O champanhe começa a ser servido às 9 horas aos turistas instalados em vistosas poltronas de couro estofadas com penas de ganso. Volta e meia, os comissários de bordo oferecem comidinhas para enganar a fome. Pela janela - emoldurada com cortinas de seda -, corre a paisagem do interior do Paraná. A rotina será mais ou menos essa nos próximos 500 quilômetros da viagem entre Ponta Grossa e Cascavel a bordo do Great Brazil Express, primeiro trem turístico de luxo do País.

O país não dispõe de uma rede ferroviária decente para seus cidadãos e oferece a estrangeiros um trem de luxo. O pacote de dez dias entre o Rio e Foz do Iguaçu custa R$ 7.763,25 por pessoa, em acomodação dupla (preço válido até o fim deste mês). O valor sobre para R$ 8.181,25 entre julho e agosto. Respectivamente, na cotação de hoje, 2.865 e 3.019 euros. Por pessoa. Total por casal: 5.730 e 6.038 euros. Mais ainda: não há cabines para pernoite no trem nem vagão restaurante. A repórter coloca nas nuvens esta roubalheira.

Mês que vem, sob a luminosidade irreal do pleno sol da meia-noite, estarei navegando pela costa da Noruega, de Bergen a Tromsø, já no Círculo Polar Ártico. Pela Hurtigruten. Não é empresa de cruzeiros, mas uma linha costeira, transporte usual dos noruegueses. Nada de luxo. Apenas conforto. Viajo com uma menina linda, jovem, inteligente e ambiciosa. O percurso é de cinco dias. Navegaremos por fjordes mágicos, entre eles o Trollfjorden, de apenas dois quilômetros, mas de uma beleza estonteante. Faremos escalas em vários portos, Ålesund, Trondheim, Bodø e finalmente Tromsø, cidades charmosas e cheias de cores, com restauração sofisticada.

Navegaremos por uma geografia louca. Atravessaremos as ilhas Lofoten, de perfis deslumbrantes, particularmente quando iluminadas pelo sol da meia-noite. Viajaremos em cabine dupla, confortável, com camas e banho. Meu navio, o Vesterålen, é um tanto antigo – data de 1983, mas foi reformado em 1995 – e tem uma magnífica sala panorâmica e um excelente restaurante. Não tem poltronas de couro estofadas com penas de ganso. Mas viajo mil vezes pela Hurtigruten, mesmo pagando, e jamais viajarei pelo Great Brazil Sacanagem, mesmo que fosse de graça.

Preço? 1.606 euros. Pelos dois. Estamos viajando em plena estação alta e por um dos países mais caros da Europa. Islândia à parte, a Noruega é o país mais caro do continente. Digamos que viajássemos dez dias. O preço seria ainda menor que o pago - por uma só pessoa - pelo desconforto de um trem sem cabines para pernoite nem restaurante, nem camas, nem banhos, pelo interior sem graça do Paraná. Trem de um país pobre, de salário mínimo de duzentos e poucos dólares.

É triste ver jornalistas recebendo jabaculê para louvar picaretagens. Ainda mais em um jornal como o Estadão, que se pretende ético e independente. Para quem quiser viajar barato e com conforto, meu alerta: afaste-se das páginas de turismo da imprensa brasileira. Só servem para propiciar viagens a jornalistas venais.

segunda-feira, junho 09, 2008
 
EM UM PANO DE FUNDO DE NADA,
QUALQUER COISA SE DESTACA



Um bobalhão, daqueles do tipo Afonso Celso, escreveu em um dos blogs do UOL:

Como é bom ser turista brasileiro

“I’m from Brazil!”. “Hi, I’m from Brazil!”. “My name is Fabio, I come from Brazil!”

Nunca repeti tanto isso nos últimos meses. O sorriso do entrevistado se abre, o guarda na fronteira subitamente fica mais gentil. As nuvens desaparecem, o céu fica azul, o sol brilha, os passarinhos cantam... Figurativamente, claro.


Depende de onde se está. Tenho viajado continuamente por toda a Europa e nunca vi alguém mostrar as canjicas ao saber que sou brasileiro. Na Espanha, suponho que devido às últimas escaramuças diplomáticas, a recepção na aduana é seca, muitas vezes sem mesmo um bom dia. Nos Estados Unidos, a hostilidade começa aqui mesmo, na aquisição do visto. Na África e Oriente Médio, vi alguns guardas mostrando os dentes, mas por alusão a Pelê, Garincha (assim mesmo com um erre só). Os tempos eram outros, é claro. Mas a simpatia era pelo futebol, não pelo país. Mas vamos adiante no texto de nosso patriotão:

Sou um crítico da política externa historicamente tíbia do nosso glorioso Itamaraty, que tem medo até de chamar genocídio de genocídio (veja nossa posição vexaminosa para o Sudão, por exemplo).

Mas tenho de confessar que me beneficio indiretamente dela. Em qualquer canto da África, o Brasil é visto como:

a-) um país amigável e inofensivo;
b-) um país de gente boa, bem-humorada e feliz
c-) um país grande, rico e poderoso (alguns até acham que de Primeiro Mundo, e se assustam quando eu digo que não), mas que mesmo assim se coloca do mesmo lado que seus irmãos mais fracos e menores contra os inimigos comuns: EUA e europeus.


Agora dá pra entender melhor sua afirmação. Ele estava na África. Naqueles países que tiveram como líderes Idi Amin Dada, Mobutu Sese Seko, Robert Mugabe, Lula deve passar por intelectual. Aliás, nesta recente viagem, notei que o nome do Supremo Apedeuta está em alta na Europa. Mas... quando confrontado com Castro, Hugo Chávez ou Evo Morales. Já dizia Pessoa: “em um pano de fundo de nada, qualquer coisa se destaca”.

O patriotão que assina o artigo coloca como virtude opor-se aos inimigos comuns, os EUA e os europeus. É exatamente nisto que reside a miséria tupiniquim: opor-se ao que de melhor produziu a humanidade. Quem me acompanha sabe que não tenho muito apreço pelos Estados Unidos. Mas temos de convir que em duzentos anos eles construíram uma nação que nós não construiremos nem em um milênio. O tal de Fábio, apesar de ter 32 anos, como diz em blog, parece permanecer ainda imerso no terceiromundismo dos anos 70, quando mal havia nascido.

Minha experiência é diferente da do deslumbrado supra. Lembro que, certa vez, vi um brasileiro atrapalhado com o idioma na aduana do Charles de Gaulle. Me ofereci para auxiliá-lo. Ele queria que eu explicasse ao guarda fronteiriço que, apesar de ser brasileiro, tinha passaporte italiano. Traduzi. “Ils sont les pires” – me disse o funcionário. Ou seja: eles são os piores. Isso para não falar nos que eram simplesmente maus.

As maltas de brasileiros reenviados ao país de La Guardia, Heathrow, Barajas demonstram o contrário do que afirma o patriotão. Ser brasileiro pode dar status na África. Mas não na Europa ou Estados Unidos ou Canadá. Volto ao Pessoa: “em um pano de fundo de nada, qualquer coisa se destaca”.

Ao longo desta viagem, eu, sempre que vou me apresentar numa situação mais delicada, solto que sou brasileiro no máximo na terceira frase (geralmente na primeira). Dependendo da circunstância, digo que sou três coisas: jornalista, estudante (tô meio velho para isso, mas ainda cola) ou turista. No Zimbábue, falei também que eu era observador da eleição (!) e diplomata (!!). Mas sempre, em qualquer caso, reforçando que sou brasileiro. (...) Por isso, se há um conselho que eu posso dar a quem for fazer uma viagem como essa (ou por qualquer outra parte do mundo, aliás), é: abuse de sua condição de brasileiro. Ok, você vai ter que pagar um pedágio, falar de futebol, vai ter que responder se conhece o Kaká e aquela chatice toda. Mas vale a pena. O viajante brasileiro é sempre abençoado por Deus e bonito por natureza.

Que tente então abusar de sua condição de brasileiro na Europa! Será outro o trote da mula. Dizem que as viagens ilustram. Mas há quem dê vinte voltas ao mundo e não aprenda nada. Se me perguntam por minha nacionalidade, claro que assumo a de meu passaporte. Nem poderia ser diferente. Mas sem orgulho algum.

Até que me entendo bem com meu país. Mas não vejo motivo algum, por onde quer que olhe, para orgulhar-me de ter nascido nestas plagas. Esse suposto dever de ter de orgulhar-se de um país só por ter nascido nele é muito típico de brasileiro. Não tendo feitos históricos ou culturais dos quais orgulhar-se, muito menos heróis que mereçam este nome, o brasileiro se pendura no carnaval, futebol, beleza das mulatas, Amazônia e Baía da Guanabara. E numa mítica brasilidade, que ninguém sabe bem em que consiste.

Mas com estes penduricalhos não se constrói um país decente.

domingo, junho 08, 2008
 
SOBRE PREÇOS E SAUDADES



A bem da verdade, se você for comer em restaurantes famosos de Madri, como o Sobrino de Botín ou na cave do El Oriente, você vai despender, vinho incluído, 70 ou 80 euros. Algo entre 190 e 220 reais. Para duas pessoas, bem entendido. O que é relativamente barato se comparado com o Brasil. Você come pratos sofisticados em restaurantes centenários e paga menos da metade do que pagaria no Fasano ou Massimo, só para falar de São Paulo. O determinante final do preço é o vinho. Você pode pedir um bom Rioja por 20 ou 30 euros, ou um não-sei-lá-o-quê de 1450 euros. Ou seja, mais caro que uma passagem de ida-e-volta São Paulo/Paris. Eu, é claro, sempre opto pelos Riojas.

Mas pode-se comer muito bem sem ser nestes restaurantes seculares. Por exemplo, os Museos del Jamón, os únicos museus que freqüento na Espanha. São grandes cafés, onde se come tapas e sanduíches variados, com o teto e as paredes forradas de presunto. Há alguns anos, li uma notícia sobre um cidadão que morrera soterrado por presuntos. Só pode ser na Espanha, pensei. Era.

Desta vez, parei na calle Victoria, perto da Puerta del Sol, ao lado do talvez mais charmoso Museo del Jamón de Madri. De manhã cedo, minha companheira rumava ao Prado, Reina Sofia ou ao Thyssen-Bornemisza. Eu cochilava um pouco mais e rumava ao Museo del Jamón. Em geral, estes cafés têm também restaurante, com um menu que muda todos os dias. Consta de dois pratos. Como primeiro, um farta porção de paella, ou de massas, ou presunto com melão, ou um gaspacho, ou algo por el estilo. O segundo prato é geralmente de carnes, boi, cordeiro, ave ou peixes. Consta do menu uma sobremesa e mais uma botellita de bom vinho, engarrafada especialmente para o Museo.

Preço? Dez euros. Ou seja, uns 27 reais. Encontrei-o também na Casa Gades, em Chuecas, que era gerida por Antonio Gades, o bailaor de flamenco. Mas não só lá. Estes menus de meio-dia são bastante comuns em Madri. Agora, leitor, me conta: onde se consegue comer decentemente no Brasil, com vinho e sobremesa, por 27 reais?

Na volta a São Paulo, almocei com minha companheira em um restaurante muito agradável, que gostei muito de freqüentar. Digo gostei, assim no passado, porque não penso voltar lá. Caipirinhas a 14 reais, vinhos a partir dos sessenta. Comemos um prato trivial e pagamos... 170 reais.

Em Paris, freqüentei restaurantes não exatamente baratos para um brasileiro, mas perfeitamente palatáveis para um europeu. Aux Charpentiers, Procope, Julien. De qualquer forma, acho que nunca paguei mais de 80 euros por duas pessoas, vinho incluído. Mas também comi e bebi muito bem em restaurantes cujo menu estava por volta dos mesmos dez euros de Madri, como o simpático Tire-bouchon, na Mouffetard. Ou La Petite Perigourdine, ao lado de meu hotel na rue des Écoles, onde se paga apenas dez euros por uma generosa tranche de foie gras. Algo em torno de 200 gramas. Aqui em São Paulo, no shopping de minha rua, 100 gramas custam... 172 reais.

Mal cheguei e já sinto saudades de minhas cidades diletas. Se você quiser comer bem e barato, atravesse o Atlântico. Antes que seja tarde.

sábado, junho 07, 2008
 
PASTORAL EXTRATERRESTRE



A notícia é antiga, mas não resisto a um comentário. Mês passado, mancheteou o El País:

EL VATICANO SALUDA AL HERMANO EXTRATERRESTRE

Segundo a reportagem, é lícito crer em Deus e nos extraterrestres. Pode-se admitir a existência de outros mundos e outras vidas, inclusive mais evoluídas que a nossa, sem por isso perder a fé na criação, na encarnação e na redenção. Quem afirma isto é o astrônomo do Vaticano, o sacerdote argentino José Gabriel Funes, de borgiano sobrenome. Quem não lembra de Funes, el memorioso?

Segundo este outro Funes, astronomia e fé não se chocam, senão que a astronomia serve para “restituir aos homens a justa dimensão de criaturas pequenas e frágeis frente ao cenário incomensurável de bilhões de galáxias. (...) A meu juízo, esta possibilidade existe. Os astrônomos consideram que o universo está formado por centenas de bilhçoes de galáxias, cada uma formada por bilhões de estrelas. Muitas delas, ou quase todas, poderiam conter planetas. Como se poderia excluir que a vida tenha se desenvolvido também em outros lados?”

Depois da humilhação de Galileu, é um passo e tanto para o Vaticano. Impertérrito, padre Funes continua: “Assim como existe uma multiplicidade de criaturas na Terra, poderiam existir outros seres, também inteligentes, criados por Deus. Isto não contrasta com nossa fé, porque não podemos colocar limites à liberdade criadora de Deus”.

O sacerdote argentino suscita instigantes questões teológicas. Adorarão os extras o bíblico Jeová? Acreditarão no Pai, no Filho e no Paráclito? Terão eleito um vice-deus, como fizeram seus irmãos terráqueos? Jeová admite mais de um vice? Terão tido um paraíso do qual foi expulso o primeiro homem? Houve, nalguma galáxia, um pecado original? Pois sem pecado original, o Redentor não tem sentido. E Abraão e Moisés, como é que ficam?

O astrônomo vaticano não hesita: os extraterrestres “também, de alguma forma, teriam a possibilidade de gozar da misericórdia de Deus”. Talvez padre Funes não tenha percebido, mas está abrindo um novo campo na teologia. Jeová crucificou seu filho por aquelas bandas? Ou bastou tê-lo crucificado na Terra? A jurisdição de Bento XVI se estende a galáxias distantes? Ou os extras elegeram outro papa por lá? Existem apóstolos? Pois sem apóstolos as religiões não vão adiante. Será que os extras bebem o sangue e comem a carne de seus semelhantes? Terão adotado a hematofagia e o canibalismo como seus longínquos irmãos católicos?

São perguntas que se impõem. Assim como hoje existe uma pastoral dos sem-terra, talvez tenhamos para breve uma pastoral dos extraterrestres.

sexta-feira, junho 06, 2008
 
QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ



O Supremo Apedeuta da nação parece ter descoberto o peso do voto gay. Em discurso de improviso ontem à noite na 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Lula posou para fotos segurando uma bandeira do movimento gay e com um boné do grupo na cabeça. Ele comparou o ato ao dia em que colocou um boné do movimento sem-terra: "Nunca apanhei tanto".

- Ninguém pergunta a opção sexual de vocês quando vão pagar Imposto de Renda - disse -. Por que então discriminam na hora em que vocês decidem o que fazer com o corpo de vocês?

Lula ainda se disse orgulhoso pelo momento de "reparação" vivido no Brasil e se colocou ao lado do público, ao dizer que conhece o preconceito de suas próprias "entranhas". "Talvez seja a doença mais perversa e impregnada na cabeça do ser humano", classificou.

Se conhece. Deve ter vivo na memória o dia em que chamou os pelotenses de veados.

quinta-feira, junho 05, 2008
 
DA VIAGEM



Que dizer? Foi ótima. Como gosto de frio, em geral viajo no inverno europeu. Há anos não viajava na primavera. Temperatura divina, entre 10 e 17 graus. Paris sempre Paris. Com uma novidade nos últimos dois anos: está se parecendo a Amsterdã. Milhares de pessoas usando bicicletas. O atual prefeito instalou um novo sistema de transporte no ano passado, o velib. Há em torno de 750 parkings de bicicletas em toda Paris. Elas ficam grudadas magneticamente a um pequeno poste. Você pode comprar a preço módico um tiquete de um dia, de uma semana ou de um ano. Você chega no ponto de bicicletas, situados em geral a 300 metros um do outro, apanha uma delas e a deixa em qualquer outro ponto. O sistema pegou como coqueluche, o que só pode ocorrer em país onde automóvel não mais significa status. Serve para desengarrafar o trânsito e é benéfico à saúde cardíaca e vascular. País inteligente toma decisões inteligentes. Enquanto isso, São Paulo tem engarrafamentos de mais de 200 quilômetros.

Para quem conhece a Holanda, nada de novo. Desde há muito, os holandeses usam a bicicleta como meio preferencial de transporte. Os canais e pontes da cidade estão repletos de bicicletas. Ao lado da estação central de trens - instalada sobre onze mil estacas de madeira sobre o mar - há um bicicletário imponente, são três ou quatro andares destinados ao parking de bicicletas. Adoro ver aquelas velhotas de setenta ou mais anos, bicicletando como jovenzinhas de vinte.

Descoberta de minha última viagem a Amsterdã: olhando melhor as bicicletas sobre as pontes, vi muitas enferrujadas, de rodas tortas, sem pneus. Ou seja, muitas são dispostas sobre os canais para fazer paisagem.

Barcelona, puro encanto. Subi a Montjuich, permaneci horas tomando vinho e contemplando a cidade e o porto do alto. A Barceloneta, deslumbrante, com seus passeios, praia e marinas. Cheiro intenso de dinheiro por onde quer que se passe. Uma arquitetura modernosa faz contraste com vielas antigas, apartamentos cheios de roupas em varais que vão de um lado a outro da rua. Todo mundo a pé ou de bicicleta. Carros não imperam naquele pedaço.

Madri, sempre bela e excitante. À meia-noite, multidões percorrendo as ruas, todos a pé, rumo a não sei onde. Tampouco o carro impera por lá. Revisitei os botecos onde um dia fui feliz, e todos permanecem como sempre foram. Desde séculos. O Sobrino de Botín, onde degustei cochinillos e lechales, foi fundado em 1725. O Gijón, café que sempre interrompeu minhas tentativas de ir até a Biblioteca Nacional, data de 1888. Adoro essas casas que resistem aos séculos.

E nisto reside meu drama. Na hora de viajar, não consigo desviar destes rumos. Deve fazer mais de dez anos que essas cidades me puxam, imperiosamente. Enfim, mês que vem acho que escapo deste feitiço. Prometi à minha filha o sol da meia-noite. E isto só se encontra mais ao norte.

quarta-feira, junho 04, 2008
 
EM LOUVOR DO RESVERATROL



Há alguns anos, quando viajaria para a França, recomendou-me um médico de Florianópolis: cuidado com o vinho. Seja moderado. E muito cuidado com os queijos e foie gras. Ora, considero que prescrições médicas devem ser levadas a sério. Era no mês de meu aniversário. Amigos me receberam com muito vinho, champanhe, queijos e foie gras. Eu, beliscando como um tico-tico. Bebendo pouco e comendo menos ainda.

Vai daí que, ao tomar o avião de volta, comprei um Nouvel Observateur. A reportagem de capa era sobre o “paradoxe du Périgord”, algo que até hoje perturba a medicina politicamente correta. Por este paradoxo entende-se o estranho fenômeno de o Périgord ser uma região de alto consumo de patês, queijos e vinhos e, no entanto, seus habitantes gozarem de excelente saúde cardíaca e vascular. Um médico declarava, na reportagem, que inclusive um pouco de boudin no leite das crianças era muito saudável. Boudin é a versão francesa da nossa morcilha. Mais suave e um de meus pratos prediletos. Me senti roubado.

Ao voltar a Santa Catarina, busquei meu médico. De Nouvel em punho. Doutor, o senhor ouviu falar disto, o paradoxo do Périgord? Não, não havia ouvido falar. Então leia esta reportagem. Não leio em francês, disse-me. Tudo bem – respondi – eu traduzo. E traduzi.

Ele fez marcha à ré. Bom... meia garrafa de vinho por dia é sempre bom para o coração. Ou duas doses de uísque. Entende-se que o boudin seja saudável às crianças, contém ferro. Mas nós, médicos, não podemos admitir isto. Seria estimular o alcoolismo.

Não acho. Sempre discordei do conceito médico de alcoolismo. Com o tempo, descobri que médicos formados nos Estados Unidos são sempre mais intolerantes em relação ao álcool que os formados na Europa. Coisa de puritanos. Na Espanha, França, Itália ou Portugal, o vinho faz parte de qualquer refeição. Antes do final do século passado, uma médica me proibiu qualquer gota de álcool. Consulente disciplinado, passei dois anos sem beber. Minha vida se tornou um inferno. Meus amigos bebiam e eu só tomava cerveja sem álcool. Em alguns bares, fui apelidado de Kronenbier. Meus amigos entravam em uma outra fase e eu restava sóbrio. Horror. Troquei de médica. De início, já fui claro: Doutora, eu estou trocando de médica porque a anterior me proibiu o álcool. Estou buscando uma que o libere.

Ela topou e eu voltei ao mundo dos vivos. Leio no noticiário on line de hoje, que o vinho tinto pode ser muito mais potente do que se imaginava no prolongamento da vida humana, disseram pesquisadores em um novo estudo que provavelmente dará ímpeto ao campo em rápido crescimento de drogas para longevidade. O estudo se baseia em doses dadas a camundongos de resveratrol, um ingrediente de alguns vinhos tintos. Alguns cientistas já estão tomando resveratrol em forma de cápsula, mas outros acreditam que é cedo demais para tomar a droga, especialmente usando vinho como sua fonte, até que haja melhores dados sobre sua segurança e eficácia.

Sempre invejei os camundongos. Quase todas as experiências médicas dão certo com eles. Sem ser camundongo, me submeti a altas doses de resveratrol nesta viagem. Sempre nacional, é claro. Resveratrol nacional só não tomo no Brasil.

A pesquisa em questão faz parte de uma nova onda de interesse em drogas que possam aumentar a longevidade. Segundo a notícia, cientistas sérios há muito ridicularizavam a idéia de elixires capazes de prolongar a vida, mas agora foi aberta uma porta para drogas que exploram um mecanismo de sobrevivência biológica ancestral, o que transfere os recursos do corpo da fertilidade para a manutenção de tecidos. A manutenção melhorada dos tecidos parece prolongar a vida ao reduzir as doenças degenerativas do envelhecimento.

Cá entre nós: envelhecimento não tem volta. Mas se pudermos afastá-lo um pouco, sempre é melhor. Foi o que fiz nestes dias. Mergulhei em Riojas e Dueros, Cahors, Corvos e Beaujolais. Segundo amigos e amigas, voltei mais jovem. Recomendo resveratrol.