¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, junho 11, 2008
 
DOIS VIGARISTAS


Em crônica passada, contei que quando minha companheira de viagem ia aos grandes museus, eu tirava folga como guia e ia aos botecos. Museus, hoje, me cansam. A pintura também. Já passei por quase todos os grandes museus da Europa, só no Prado tive trinta horas de aula. No Hermitage, após tê-lo percorrido por três horas, nem tinha ainda chegado ao setor dos pintores. Desisti. Quando penso em pintura, gosto de citar Fernando Pessoa e em seu ensaio intitulado Heróstrato. Se o leitor se sente um tanto inculto por não gostar de percorrer museus – escrevi há alguns anos - sugiro deter-se neste fragmento tipicamente pessoano:

"A pintura afundar-se-á. A fotografia privou-a de muito do seu atrativo. A futileza da estupidez privou-a de quase todo o resto. O que restou tem sido levado em despojo pelos colecionadores americanos. Um grande quadro significa uma coisa que um americano rico quer comprar porque outras pessoas gostariam de comprá-lo se pudessem. São assim os quadros postos em paralelo, não com poemas ou romances, mas com as primeiras edições de certos poemas ou romances. O museu torna-se uma coisa paralela, não à biblioteca, mas à biblioteca do bibliófilo. A apreciação da pintura torna-se não um paralelo à apreciação da literatura, mas à apreciação de edições. A crítica de arte cai gradativamente para as mãos dos negociantes de antigüidades".

Turista inteligente – penso - é o que conhece os museus por fora e os bares por dentro. Em matéria de museus, tenho gratas lembranças de um na Alemanha, o Berlin Museum. Visitei-o bem antes da queda do Muro, na Berlim Ocidental. Pagava-se alguns marcos de ingresso e aos domingos enfrentava-se fila. Não lembro bem o que guardava - creio que trens antigos - e suponho que tampouco o lembrem suas centenas de visitantes. Mas não esqueci, nem visitante algum terá esquecido, o simpático café que ficava ao final dos corredores, onde um garçom servia um vodca com figo e pimenta, este sim, inolvidável. Os alemães, pragmáticos, haviam entendido como atrair público a um museu.

Como disse na crônica passada, adoro os Museos del Jamón, na Espanha. É uma cadeia de cafés cujas paredes e teto são forrados de presuntos. São os únicos museus que freqüento hoje. Em nosso mercado de futilidades, a pintura é o que menos interessa. Há vários anos escrevi, para espanto de leitores ingênuos: "Quem intuiu isto com propriedade foi Salvador Dali, o genial vigarista catalão. No final da vida, ciente de que sua assinatura valia mais que qualquer quadro, assinou durante dias a fio milhares de telas em branco, a serem pintadas mais tarde por funcionários de seu ateliê. Ninguém pode alegar que são falsos Dalis, afinal levam o jamegão do autor. Com sua molecagem, Dali demoliu a crítica de pintura contemporânea. Os marchands detestam Dali".

O marchand belga Stan Lauryssens confirma esta trapaça e nos traz novas notícias sobre as vigarices do catalão. Em um livro de memórias, Dali y Yo, lançado ontem, afirma que 75% dos quadros de Salvador Dali são falsos, mas ressalta que uma parte destes era pintada por outros artistas e finalizada por ele, que dava "seu toque surrealista". Disse à imprensa que nos anos 70 "era mais fácil vender um falso Dali do que um quadro autêntico.(...) O mundo, há 25 anos, era uma sociedade que buscava o enriquecimento rápido e não era difícil encontrar gente que investisse em arte, embora fosse falsa, com a idéia de que em cinco anos venderia a obra e ganharia mais dinheiro".

Em sua opinião, no final dos anos 60 e princípios dos 70 o próprio Dali e sua companheira Gala favoreceram a circulação de obras falsas, porque precisavam de dinheiro para manter seu estilo de vida, que incluía seis meses ao ano nos hotéis mais caros de Nova York e Paris. "Pelo menos uma vez por mês, tomo uma taça com alguns para os quais vendia quadros falsos de Dali".

Bom, nessa trapaça jamais caí. Nem teria dinheiro para tanto. Em meu apartamento, já tive reproduções de Dali, que me custaram poucos dólares. Ora, direis, reprodução não é original. Ocorre que também os originais de Dali eram falsos. Melhor então as reproduções baratinhas.

Outro grande vigarista foi Picasso. Repetidamente tenho denunciado a vigarice de Guernica. E por que continuamente? Porque não passa mês sem que algum jornalista ou escritor mencione Guernica como uma homenagem às vítimas do bombardeio da cidade basca de Gernika, em 1937. Nada disto. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do vigarista malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi.

Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, até hoje multidões hipnotizadas pela propaganda vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. Busque o quadro na rede e examine-o. Você não vai encontrar um único elemento que lembre um bombardeio.

Como Dali fez uma opção pelos Estados Unidos e pelo capitalismo, suas falsificações são tidas hoje como um crime lesa-arte. Picasso era comunista e optou pela esquerdista Paris. Seu embuste é universalmente perdoado.