¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 31, 2008
 
LE BATEAU IVRE

A bem da verdade, nem tudo é caro na Escandinávia. Na Suécia, por exemplo, há uma brecha para comprar, comer e beber barato. São os cruzeiros da Viking Line e Silja Line, que navegam pelo arquipélago, indo de Estocolmo a Helsinque ou até alguma ilha na Finlândia. Há também os barcos da Tallinnk, que vai até Estônia, Lituânia e Letônia. Navios colossais, concebidos para dois ou três mil passageiros, partem diariamente de seus portos, geralmente rumo ao nada. Viajar é preciso. Chegar não é preciso. Explico.

Nesses cruzeiros ou travessias, tudo a bordo é skattfri, palavrinha mágica para os suecos. Livre de impostos. Tanto o álcool – sobre o qual incide um skatt altíssimo – como a comida, cigarros e tudo que você pode comprar numa freeshop. Os barcos são centros de lazer e consumo ambulantes e fazem parte do modus vivendi dos estocolmenses. É importante que se vá do porto de um país a um porto qualquer de outro, nem que seja numa ilha deserta. Aí a viagem é internacional e, portanto, skattfri. Mal o navio desatraca, já se considera que as águas são internacionais e começa a farra.

O percurso mal chega a 24 hs. No caso dos barcos que vão de Helsinque a Estocolmo e vice-versa, são doze horas. Os passageiros, no entanto, se munem de malas enormes. Enormes e vazias. Voltarão repletas de álcool, cigarros e demais mercadorias.

Eu já havia feito esta viagem, em 71. Sempre gostei de ilhas. Havia barcos que iam até uma ilha finlandesa e resolvi conhecê-la. A bebida era barata, bebi. Ao chegarmos na ilha, o barco ancorou, desceu uma escadinha até o cais e desci. O porto estava deserto, não havia nem sombra de gente por perto. Olhei para trás. Ninguém descera do barco. Envergonhado, voltei. Naqueles cruzeiros, desembarcar é o que menos interessa. O prazer – e o lazer – reside no viajar.

Neste giro pela Escandinávia, de uma leitora muito querida, eu e Isadora ganhamos um refinado regalo, um cruzeiro num destes barcos pelo arquipélago, com a inelutável atracação em uma ilha finlandesa. Afinal, se o cruzeiro não for skattfri, não tem graça. Desta vez, o barco era bem mais imponente, o Cinderella - http://www.vikingline.fi/onboard/cinderella - com capacidade para 2.600 passageiros. Embarcamos pelas seis da tarde e às sete já enfrentávamos um Viking buffet, digno dos deuses do Valhala, com direito inclusive a caviar russo e iraniano. Vinho e cerveja – ó milagre! – à vontade. Mais salões de show e dança, sauna, boates e shoppings centers. Sem imposto. As malas, que entraram vazias no barco, voltam estufadas de muamba.

Em dado momento, desvio o olhar para um folder na mesa. Três garrafas de vinho italiano a 130 coroas suecas. Ou seja, 13 euros. Pouco mais que quatro euros a bottiglia. Miragem, pensei. Não era miragem. E o vinho era excelente. Entende-se então porque cruzeiros em dezenas de navios com capacidade para mais de duas mil pessoas devem ser reservados com boa antecedência.

Quando vivi na Suécia, as restrições às bebidas eram bem mais pesadas. Quase não havia bares em Estocolmo e os que existiam não serviam bebidas alcoólicas. Álcool, só em restaurantes, a partir do meio-dia e com comida. Se você ia almoçar às 11h30 e pedia um copo de vinho, nada feito. Só às 12h em ponto. A preços de tornar sóbrio qualquer cristão. Com esta quase lei seca, os suecos não sabiam beber. Quando voltei a Estocolmo, daquele percurso que fiz em 71, vi desembarcarem suecos caindo de bêbados, alguns ensangüentados.

Os tempos mudaram. Hoje Estocolmo tem 5.500 bares, para uma população de 1,7 milhão de habitantes. Falo da Stor-Stockholm, a Grande Estocolmo. A Innerstad, como dizem os Svensons, terá uns 800 mil habitantes. Há quinze anos, o número de bares era de 3.500. Não imagino quantos existiam quando vivi por lá, há 37 anos, mas o número devia ser consideravelmente menor. Beber tinha algo de pecaminoso. Hoje, a cidade está repleta de bares nas calçadas e nem por isso o mundo veio abaixo. Os Svensons parecem ter aprendido a beber nas últimas três décadas, pois não vi ninguém caindo pelo convés ou pelas pontes do Cinderella.

Desta vez, claro que não caí na besteira de desembarcar. À Déia, minha anfitriã, gratíssimo pelo magnífico presente.