¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 20, 2008
 
AINDA O FILÓSOFO


Luc Ferry vê na sociedade contemporânea uma insatisfação permanente, medo e consumismo. Vamos por partes. “A condição do homem moderno é mais trágica do que nunca. O casamento por amor nos condiciona a amar mais e mais. A perda do ser amado tornou-se um luto. Isso só aumenta o descontentamento do mundo ocidental, no qual o homem se transformou num ser eternamente insatisfeito”.

Estarão as pessoas hoje casando por amor? Ora, amor é muito bonito na literatura, no cinema, nas telenovelas. Na vida real, as pessoas se examinam, se escolhem a partir de nível social, padrões culturais, patrimônios. Amor é bom, mas devagar... Hoje, diria, só casa exclusivamente por amor algum insciente. Há outros pesos a serem postos na balança. Pesamos as conveniências e nossa meiga alminha faz um esforço brutal para simular que o que nos move é aquilo che muove il sole e l' altre stelle. Que mais não seja, para sentirmo-nos diferenciados dos índios, animais e outros brutos. Quanto à perda do ser amado ser um luto, nada de novo. Vem dos tempos bíblicos. Não é que a perda tenha se tornado um luto. Sempre foi. Já no Livro vemos o apaixonado rei Davi rasgando suas vestes pela perda de seu amado Jonathan.

O homem contemporâneo tem medo. “Nós, ocidentais, temos medo de tudo. Da velocidade, do sexo, do álcool, do tabaco, da carne vermelha, de frango, da Europa, do efeito estufa, da globalização, das notas escolares das crianças, e por aí vai. Todo ano se acrescenta um novo medo aos anteriores”. Ora, sou ocidental e não nutro nenhum dos medos supra. Velocidade, não curto. Sou adepto da lentidão. Entre avião e navio, vou sempre preferir navio. Ocorre que nem sempre posso optar por navio. Sexo, por que temer? É bom e isto é razão suficiente para não ser temido. Álcool? É questão de saber beber. Conheço bêbados e sóbrios e não vi medo algum em nenhum deles. O sóbrio não tem porque temer, afinal não bebe. Quanto ao bêbado, muito menos. Tabaco? O que está em jogo não é medo, mas a própria vida. Mesmo assim, vejo todos os dias em torno a mim, pessoas chupando câncer sem medo algum de chupar câncer. Carne vermelha? Conspiração ianque. Adoro e não temo. Nem vegetariano tem medo de carne vermelha. Não come e fim de papo. Frango? Não gosto. Mas nunca me ocorreu temer frango. Por que alguém temeria carne de frango? Globalização? Existe desde os dias em que os navegadores saíram a singrar pelo anecúmeno. Notas escolares? Medo só serve para fugir a uma solução. Não é medo o que os pais sentem, mas preocupação.

Desde quando medo é sentimento novo? Muito mais medo terá sido o quinhão do homem das cavernas, que não entendia de onde vinham os raios e trovões. As religiões nascem do medo. E são milenares. Há hoje um medo da violência nas grandes cidades? Em nada difere do medo do camponês que um dia, para fugir da violência e da insegurança dos campos, foi buscar proteção dentro das muralhas de um burgo. Existe também o medo da morte. Enquanto houver morte haverá medo da morte. Isto é, desde sempre e para sempre. Aquela bravata de Paulo – “morte, onde está tua vitória?” – é apenas isso, bravata. Por mais fé que um crente tenha, na hora do Jesus-está-chamando até mesmo um papa busca medicina de ponta.

Quando ao homem ser hoje eternamente insatisfeito, não é bem o que vejo no Ocidente. Em minhas viagens, tenho encontrado gente feliz e satisfeita em todas as cidades e ruas. Claro que, para ser feliz, um mínimo de posses é necessário. A começar por ter onde morar. Saúde é outro item fundamental. E algum dinheiro é sempre necessário. Mas isto não é moeda rara. As capitais européias, por exemplo, parecem grandes restaurantes a céu aberto, onde pessoas sorriem com todos os dentes e celebram a bona-chira. Não é preciso ir tão longe. Há dezenas de milhares de restaurantes em São Paulo, todos sempre cheios e com filas de espera nos fins de semana. Não consigo ver insatisfação em meu dia-a-dia. Não, não estou reduzindo a plenitude ao comer bem, nada disso. Mas os rostos em meu entorno, de modo geral, exalam satisfação. Insatisfeitos, sempre os há. Mas a existência de insatisfeitos não quer dizer que o homem contemporâneo seja eternamente insatisfeito. É normal que uma pessoa pobre sinta-se insatisfeita. Mas pessoa pobre não é sinônimo de homem contemporâneo.

“O êxito pessoal é o que importa. Precisamos ter poder, dinheiro, um carro novo, uma mulher nova, os filhos mais bonitos, tudo para conseguir o reconhecimento alheio e nos sentir superiores aos outros”. No que diz respeito ao dinheiro, não tenho como discordar. Não há vida alegre sem o vil metal. Quanto a poder, isto é aspiração de políticos e administradores. O homem do dia-a-dia pouco está preocupado com o poder. Pede apenas que lhe deixem levar sua vida. Carro novo? Há quem goste, particularmente no Terceiro Mundo. Na Europa de Ferry, carro novo não está exatamente no rol das coisas que fazem um homem feliz. Aliás, nem mesmo o carro. Há cada vez mais gente vivendo sem carro na Europa. Mulher nova, filhos mais bonitos? Exagero do “filósofo”. Apesar do avanço do divórcio, milhões de pessoas se contentam com as mulheres e os filhos que têm. Buscar o reconhecimento alheio? Bom, isto é humano. Gostamos que nos valorizem. Sentir-se superior aos demais? Confesso que não vejo isto no mundo em que perambulo.

O discurso todo do “filósofo” aponta, desde o início, para uma denúncia do consumo, bem ao estilo dos católicos e marxistas. “Hoje, vivemos na era do hiperconsumo. O que nos dá a sensação de progredir, de ser felizes, pelo menos momentaneamente, é comprar, comprar e comprar. Claro que isso não basta. A lógica contemporânea aumenta a insatisfação e nos incute medos cotidianos e recorrentes”. Talvez eu tenha vindo de um planeta distante, mas comprar raras vezes me dá prazer. Sinto prazer, é claro, ao comprar um livro ou DVD que ando buscando. Sinto prazer em viajar. Sinto prazer em comer e beber. Mas sem comer e beber não vivemos. Já que se trata de uma contingência, que seja bem satisfeita. Mas é só. O ano inteiro, não compro quase nada. O que tenho em casa me basta. Não sinto prazer algum em comprar por comprar.

Enfim, não me pretendo metro universal para medir a realidade que me cerca. Reconheço que comprar é uma angústia insaciável para multidões. Mas essa angústia tem outra face. Gera emprego para milhões. O objeto mais supérfluo que você comprar está garantindo a subsistência de alguém em algum ponto do planeta. Tomemos o exemplo proposto por Ferry, o carro novo. Nada mais supérfluo que um carro novo. Ocorre que, ao adquirir este supérfluo, você gera milhares de horas de trabalho nos mais diversos setores.

Eu, que quase nada consumo, sou defensor incondicional do hiperconsumo. É o que faz a economia crescer. Gera angústias? Bom, basta controlar tais angústias. Quem me acompanha, sabe que nem carro tenho. Nunca senti necessidade. Não faz falta alguma a meu ego. Em suma, o discurso do “filósofo” é bem articulado e até parece inteligente. Parece. No fundo, é um amontoado de lugares-comuns pretensamente humanísticos, esses mesmos lugares-comuns que fazem a fortuna dos laires ribeiros e edires macedos da vida.