¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 25, 2008
 
O ETERNO BESTEIROL
DE NATAL SE REPETE



Em uma basílica de São Pedro lotada de fiéis, e com a imagem de Jesus a seu lado, Bento XVI lembrou ontem o nascimento de Cristo e disse que em cada criança há uma "reverberação do menino de Belém". Há horas venho afirmando que há décadas não vejo papa mais inculto que este. Seria de supor-se que o líder máximo da cristandade, o Vice-Deus, o bispo de Roma, soubesse que Cristo não nasceu em Belém. Mas em Nazaré. Ernest Renan o demonstrou definitivamente. Em meu ensaio Como ler jornais, esclareço o fato:

Verdade que Mateus escreve: “Tendo, pois, nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes ....” E acrescenta: “Ouvindo, porém, que Arquelau reinava na Judéia em lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá; mas avisado em sonho por divina revelação, retirou-se para as regiões da Galiléia, e foi habitar numa cidade chamada Nazaré; para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas: Ele será chamado nazareno”. Pois dissera Miquéias: “Mas tu, Belém Efrata, posto que pequena para estar entre os milhares de Judá, de ti é que me sairá aquele que há de reinar em Israel”. No fundo, Mateus trazia no sangue esta tendência do jornalismo contemporâneo, de adaptar os fatos à visão que se tem do mundo. Quis adaptar o nascimento a antigas profecias. A realidade que se lixasse.

Escreve Renan, em A Vida de Jesus: "Cristo nasceu em Nazaré, pequena cidade da Galiléia, desconhecida até então. Toda sua vida foi designado pelo nome de Nazareno e só por um esforço que não se compreende é que se poderia, segundo a lenda, dá-lo como nascido em Belém. Veremos adiante o motivo dessa suposição, e como ela era conseqüência necessária do papel messiânico que se deu a Jesus".

Segundo Renan, Nazaré não é citada nem no Antigo Testamento, nem por Josefo, nem no Talmude. Enquanto Nazaré da Galiléia era um vilarejo anônimo, Belém da Judéia portava o prestígio de antigas profecias. Que nascesse em Belém, portanto. Mas por mais pontas que tenha a estrela de prata dos franciscanos, simbolizando o nascimento do Cristo na gruta existente na Igreja da Natividade, em Belém, nazarenos nascem em Nazaré.

Lucas também adere à lenda do nascimento em Belém: “Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Este primeiro recenseamento foi feito quando Cirino era governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Subiu também José, da Galiléia, da cidade de Nazaré, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam ali, chegou o tempo em que ela havia de dar à luz, e teve a seu filho primogênito; envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

Os evangelistas, ao situarem o nascimento de Cristo no reinado de Herodes e evocarem o recenseamento de Cirino, desmontam a própria tese. Diz Renan:

"O recenseamento feito por Cirino, do qual se fez depender a lenda que ajunta a jornada a Belém, é posterior, pelo menos dez anos, ao ano em que, segundo Lucas e Mateus, nascera Jesus. Com efeito, os dois Evangelhos põem o nascimento de Jesus no reinado de Herodes (Mateus,II, 1,19,22; Lucas, I, 5). Ora, o recenseamento de Cirino foi feito só depois da deposição de Arquelau, isto é, dez anos depois da morte de Herodes, no ano 37 da era de Ácio. A inscrição pela qual se pretendia outrora estabelecer que Cirino fizera dois recenseamentos é reconhecida como falsa. O recenseamento em todo caso não teria sido aplicado senão às partes reduzidas à província romana, e não às tetrarquias. Os textos pelos quais se pretende provar que algumas das operações de estatística e registro público, ordenadas por Augusto, chegaram até o reinado de Herodes, ou não têm o alcance que se lhes quer dar, ou são de autores cristãos que colheram esse dado no Evangelho de Lucas".


Este mito do nascimento em Belém está sendo hoje repetido em todos os jornais do mundo. A Folha de São Paulo o anuncia todos os anos. Neste ano, coube a Carlos Heitor Cony, ex-seminarista, imortal da Academia Brasileira de Letras e detentor de uma gorda bolsa-ditadura, insistir na bobagem. Em um artigo de apenas 1400 toques, comete duas asneiras. A primeira é a do nascimento em Belém:

A iconografia cristã tem dois momentos fundamentais: a criança recém-nascida na estalagem de Belém, tendo a aquecê-la o hálito de um burro e de uma vaca; e o corpo nu e maltratado de um homem coberto de chagas e opróbrio.

Mais adiante, erro ainda mais grave:

Houve também a estrela que guiaria os Reis Magos para a oferta do ouro, do incenso e da mirra: "Vimos sua estrela no Oriente e viemos com presentes adorá-lo".

Ora, você pode revirar a Bíblia de ponta a ponta, palavra a palavra, vírgula a vírgula e jamais encontrará qualquer rei mago. Há quatorze referências a magos no Antigo Testamento e apenas quatro no Novo. Não se fala em reis magos em nenhuma delas. A que Cony cita está em Mateus, 2:

1 Tendo, pois, nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos (o grifo é meu) que perguntavam: 2 Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Pois do Oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo.

A verdade é que o próprio Bento, em um seis de janeiro passado, andou falando urbi et orbi dos reis magos. Ou seja, quando o sumo sacerdote da cristandade – aquele que deveria zelar pela interpretação dos livros sagrados – comete erros tão crassos, não causa espanto que um jornalista inculto também os cometa.