¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 29, 2009
 
JEAN ASSMANN: MONOTEÍSMO E VIOLÊNCIA


A violência é inerente às religiões monoteístas? Esta pergunta é equacionada pelo egiptólogo alemão Jean Assmann, autor de Violence et monothéisme, entrevistado pela revista francesa Le Point. Traduzo alguns excertos de suas declarações:

- Meus livros precedentes, e principalmente Moisés, o Egípcio, foram percebidos erradamente como um ataque contra o monoteísmo e o judaísmo, não tanto pelos judeus, mas principalmente pelos cristãos, e sobretudo pelos alemães, sempre sensíveis ao problema do anti-semitismo. Pensei então que seria importante aprofundar o problema da violência nas religiões oriundas do mundo bíblico. Esta violência, com efeito, é específica. Enquanto a violência ritual, por exemplo, que se exprime pelo sacrifício, permite ao homem entrar em comunicação com os deuses e operar uma reconciliação, a violência que se exprime na Bíblia, a partir do momento em que Moisés recebe as tábuas da lei, se faz em nome de Deus: após o episódio do bezerro de ouro, três mil hebreus são assassinados para saciar sua vingança.

- Durante muito tempo se considerou que a religião era o principal ponto de apoio a partir do qual um homem podia estabelecer uma comunicação com outro. Isto é verdadeiro para as religiões da antigüidade, que eram estruturadas de maneira completamente diferente do que hoje se entende por religião. As religiões egípcias, gregas ou mesopotâmicas repousavam sobre uma relação entre o homem e o mundo dos deuses, que era o cosmos. O homem se comunicava com as divindades graças aos cultos. Pouco importava então se o vizinho adorava Mitra ou Horus: desde que alguém cresse nos deuses, podia-se confiar nele. Este reconhecimento mútuo dos deuses do Outro permitia o estabelecimento de contratos internacionais, que tornavam possível a comunicação entre os povos.

- O monoteísmo rompeu esta comunicação mútua porque ter um deus único é considerar os adeptos de outras religiões como os inimigos de Deus. A religião torna-se então o mais importante gerador de oposições, entre judeus e gentios, cristãos e pagãos, muçulmanos e não crentes...

- O que se chamou de “revolução amarniana”, a partir do nome de Amarna, a capital que Akhenaton fez construir em pleno deserto, foi sem dúvida uma revolução monoteísta, todos os deuses foram proibidos e seus nomes apagados. Mas sua importância foi muito relativa, já que após a morte de Akhenaton os egípcios voltaram a seus deuses ancestrais.

- Além do mais, seu deus não era revelado nem transcendente e não tinha poder político. Só Faraó representava o Estado. Ora, progressivamente a religião dos hebreus vai evoluir de um deus exclusivo, que nega os outros deuses que lhe fazem concorrência, a um deus único, que é o Poder e a Justiça. É uma première na história da humanidade: não é mais o rei deificado que detém o poder, como no Egito ou na Mesopotâmia, mas uma divindade que enuncia a Lei e se arroga a violência inerente ao poder político.

- O direito e a justiça vão se impor face aos ritos sacrificiais. Mas como podem eles ter efeito? Graças à violência jurídica, indefectivelmente ligada ao conceito de lei. Aquele que exerce esta violência em nome de Deus faz prova de “zelo”, isto é, ele cumpre a lei. Mata-se em nome da vontade de Deus. Os fundamentalistas de hoje, sejam judeus, cristãos ou muçulmanos, não pensam de outra forma.

- Não é por acaso que o Deus da Bíblia faz uma aliança com seu povo, aliás excludente de toda outra associação e comunicação humana. Numerosos judeus foram deportados para a Babilônia e os redatores da Bíblia retomaram um esquema que eles conheciam, aquele do rei assírio fazendo aliança com seus súditos.

- A noção de união entre o poder e o povo, entre o céu e a terra, pode assim encontrar suas raízes no casamento secreto entre o rei assírio e a deusa Ishtar, ritual que lhe permitia afirmar seu poder. Na Bíblia, Deus é o Pai, mas também o rei e o esposo de Israel, o povo eleito, que é a virgem casada. O cristianismo, de sua parte, vai se inspirar mais no Egito, onde Amon, o deus-sol, tomba amoroso de uma rainha que ele fecunda e à qual ele dá o novo rei. Jesus será também o filho de Deus e oriundo de uma linhagem real, através de José, pai de Davi.

- Em sua origem, o discurso crístico é não violento e separado do político. “Daí a César o que é de César”. Mas desde que o cristianismo tornou-se a religião de Estado do império romano, a política e a violência dele tomaram conta. Talvez porque, justamente, a intolerância está na raiz do princípio do deus único e revelado.

- As religiões monoteístas devem se desconectar do político. Uma religião que assume a violência resta ligada à política e falta à sua função no mundo: liberar os homens da onipotência do cosmos, do Estado, da sociedade e de todo sistema com pretensões totalitárias.