¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, setembro 18, 2009
 
CONGRESSO AMNÉSICO APROVA
LEI QUE JÁ FORA APROVADA



Quando vivi na Escandinávia – e já lá vão quase quarenta anos - para o Estado sueco eu era o cidadão nº 4707029917. As seis primeiras cifras indicam a data de nascimento. O número pertence a um homem, pois as três cifras seguintes são ímpares. Para uma mulher, teríamos, por exemplo, 864. A última cifra é dada por um computador e estabelece a univocidade do número pessoal. Para conferir-se se o número está correto, dobra-se alternadamente suas cifras, começando pela primeira, o que dá 08 7 00 7 00 2 18 9 02 7.

Somadas estas cifras uma a uma, temos 60, o que indica estar correto o número, pois a soma é divisível por 10. Relatei estes fatos em meu primeiro livro, O Paraíso Sexual Democrata, publicado em 1973. Até aí, tudo muito prático. Ocorre que o cidadão é interrogado sobre seu número pessoal, em quase todas as circunstâncias de sua vida. Ao se matricular na universidade, comprar a crédito, solicitar auxílios sociais, internar-se em hospital, pagar multas de trânsito, casar ou divorciar-se, está alimentando um banco de dados. Não existem limitações para o tipo de dados que podem ser registrados num computador, sejam verdadeiros ou falsos.

A Suécia, na época, era um dos países mais informatizados do mundo e o problema começava a causar inquietações. O alerta foi dado por Harry Björk, na antologia Kontrol av Individen (Controle do Indivíduo), publicada em Lund, 72. "A limitação prática dos dias atuais - dizia o autor na época - é que as informações devem ser expressas em letras e cifras". Hoje, nem esta limitação existe.

Björk sugeria um exemplo no qual dados inocentes, uma vez combinados, produziriam novos efeitos: a compra de um casaco de pele para senhora, nº 42. Ora, A é casado com a senhora A, que veste 38. "Os que dispõem destes dados combinados, dando apenas asas à fantasia e talvez se informando um pouco sobre a vida da família, têm elementos para tudo, entre a difamação, calúnia e chantagem". Se considerarmos que nos bancos de dados das associações estudantis suecas constavam desde os certificados obtidos até eventuais contribuições para movimentos guerrilheiros no Exterior, temos uma pálida idéia do que o Estado sabia a respeito do cidadão. Na época, lei nenhuma regulava o comércio de informações.

Número pessoal mais informática mais bancos de dados, além de prevenir e permitir a punição de não poucas falcatruas, tornam mais clara a administração pública. Mas invadem inexoravelmente a vida de cada um. É comum citar-se George Orwell e 1984 quando pairam ameaças à privacidade do cidadão. Isso porque tiveram pouca fortuna em língua portuguesa livros anteriores, como o magnífico Kalocain, de Karin Boye (que tive a honra de traduzir do sueco e talvez possa ser encontrado em algum sebo) e o menos conhecido Nós, de Evguéni Zamiatine. Na distopia do autor russo, as paredes dos edifícios são de vidro, pois afinal cada cidadão nada tem - ou não deve ter - a esconder do Estado.

No livro da autora sueca, mediante a injeção da droga kalocain, todo cidadão confessa alegremente qualquer pensamento ou ação contra o Estado. O desejo kantiano de transparência, por parte dos ideólogos destas sociedades, torna-se hoje cada vez mais factível graças ao computador. Não por acaso, um dos movimentos que contribuiu para a derrocada do comunismo chamava-se glasnost. Em russo, transparência.

Cá no Brasil, onde ninguém tem interesse algum em transparência, haja memória para carregarmos vida afora os números que nos identificam. Eu resolvi o problema de maneira simples. Só sei de cor meu CPF e meu código postal. Não penso sobrecarregar meu modesto HD com dados inúteis. Os outros números ficam na memória RAM. Mal desconecto o cérebro – e sempre o desligo quando vou dormir - eles se volatilizam.

Leio nos jornais que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou, quarta-feira passada, parecer do senador Almeida Lima (PMDB-SE) favorável a projeto do deputado Celso Russomano (PP-SP) que altera a Lei 9.454/97 para definir que, à medida que forem sendo adquiridos, o Cadastro de Pessoa Física (CPF), a Carteira de Trabalho e Previdência Social, a Carteira Nacional de Habilitação, o passaporte e quaisquer outros documentos necessários ao cidadão terão o mesmo número do Registro de Identidade Civil.

O oportuníssimo projeto aprovado na CCJ segue agora para o Plenário. É possível que haja resistência à nova lei. O Congresso desde há muito trabalha no sentido de proteger interesses escusos e um número pessoal é um breve contra a criminalidade. Com distintos números identificativos, nada impede que alguém cometa fraudes em diferentes Estados sem ser identificado como o mesmo criminoso. Com o número pessoal, isto se torna mais complicado. Até aí, palmas ao projeto do deputado Russomano.

Só há um porém. O Senado Federal aprovou, em 1996, lei de autoria do senador Pedro Simon, que instituía um número único para cada cidadão brasileiro, composto de letras e algarismos. Com a nova regra, seriam extintos todos os atuais cartórios de registro civil. Tudo seria centralizado num único cartório, responsável pelo Cadastro Nacional de Registro Civil. Em abril de 97, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou o projeto. Esta lei, que de certa forma regulamenta o imperativo categórico kantiano, devia entrar em vigor cinco anos depois, ou seja, em 2002. No Brasil, as leis pegam... ou não pegam. Pelo jeito, esta não pegou.

Em um Congresso cujos parlamentares renovam seus mandatos por décadas, bem que poderia existir pelo menos alguma alma com um mínimo de memória capaz de lembrar que, há pouco mais de dez anos, a lei que agora está sendo discutida já havia sido aprovada.