¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, setembro 16, 2009
 
TRADUÇÃO TEM VALOR LITERÁRIO?


De Thiago Peixoto, recebo:

Gostaria de saber sua opinião sobre traduções de romances. Ouvi uma professora universitária dizer que é impossível compreender uma obra fora de sua língua original. Não concordei e citei como exemplo o fato de que quase ninguém leria Dostoievski em russo e nem por isso perderia a oportunidade de ler uma obra profunda. Ela disse que quem lê Dostoievski fora do russo é um leitor simplório.
Eu acredito que uma tradução deveria carregar todo o sentido da obra, mesmo que se percam alguns detalhes estéticos, pois isto não seria prejudicial ao leitor. Na sua opinião, uma tradução é algo sem valor literário?



Traduzir é impossível, Thiago. Mas é necessário. Ninguém fala todas as línguas do mundo. Mas é claro que se perde algo do texto original. O ideal é ler Dostoievski em russo. Mas nem todos o conseguem. Por outro lado, há livros intraduzíveis.

O Tratado Geral dos Chatos, de Guilherme de Figueiredo, é um deles. Contou-me Figueiredo que recebeu propostas de tradução, mas teve de recusá-las. Sugeriu aos editores que pegassem sua idéia central e construíssem um outro texto. O livro se apóia em uma série de trocadilhos e nas diversas acepções da palavra, que vão desde o chato, como o entendemos, até o Phtirius púbis, aquele piolhinho pubiano que nos chateia terrivelmente. Figueiredo propõe até mesmo um aparelho para medir o nível de chatice de um chato, que batizou de chateômetro de Figueiredo. Elabora inclusive as leis da chateação. Uma delas é brilhante: dois chatos entre si não se chateiam. Ora, estes jogos verbais são de impossível tradução.

Eu mesmo me deparei com esse problema. Pensei certa vez em traduzir um poema relativamente curto, o Fausto, do argentino Estanislao del Campo. É um dos grandes momentos da gauchesca, anterior ao Martín Fierro. O entrecho é singelo. Um gaúcho vê o Fausto, de Goethe, “en el tiatro de Colón”, em Buenos Aires. Pega seu pingo e, ao voltar a seus pagos, encontra um outro gaúcho na estrada. Conta então, a seu modo, o que viu no palco. Dá para traduzir? Claro que dá. Mas o poema perderá muito. Melhor construir uma outra história.

O Martín Fierro, por exemplo. Há muitas traduções da obra, mas sempre se distanciam do original. Tenho quatro traduções, em francês, inglês, italiano e português. A inglesa é um asco. Curiosamente, a que mais se aproxima do original é a italiana. Há duas traduções no Brasil, uma do Nogueira Leiria e outra do Walmir Ayala. O Leiria, homem conhecedor do campo, fez o que pode. A do Ayala, poetinha urbano, é bichesca. Fierro mais parece um gaúcho dançando chula de leque em punho.

Ainda há pouco, li o excelente O Cântico dos Cânticos – Um ensaio de interpretação através de suas traduções, de Geraldo Holanda Cavalcanti, presente da Primeira-Namorada. É um belo estudo das diferentes traduções do poema, um dos mais complexos e mais curtos livros da Bíblia, terá apenas umas dez páginas. Sem conhecer as inúmeras traduções do texto, a de Fray Luis de León pareceu-me melhor que as traduções bíblicas que já li. Não direi melhor que o texto original, já que deste não temos mais notícias. Tampouco eu teria condições de lê-lo. O frei traduz o poema em versos rimados, o que já é um grande feito intelectual.

Mas traduzir pode ser perigoso. Por ter traduzido este poema e mais alguns textos bíblicos, Fray Luis foi perseguido pela Inquisição. Teve sorte, foi condenado a apenas quatro anos de prisão. Na universidade de Salamanca, estive na sala onde dava aula, preservada ainda hoje como era no século XVI. Consta que, ao voltar à universidade, em 1576, continuou a aula que havia sido interrompida pelos inquisidores em 1572: “Como decíamos ayer...”

Pode ocorrer que a tradução seja até melhor que o original. Por exemplo, O Corvo, do Poe. Acho a tradução do Fernando Pessoa muito melhor que o texto do poeta americano. Pessoa encontrou uma solução de gênio para a rima Lenore e nothing more. (Há uma tradução do Machado de Assis que é um desastre. Ovelha não nasceu para mato). Muitos outros casos semelhantes existirão na história da literatura. As traduções são como as mulheres – diz-se entre tradutores -. Quanto mais belas, mais infiéis.

O leitor devia perguntar a essa professora se ela consegue ler a Bíblia no original. Raríssimas pessoas no mundo são capazes disso. Para começar, os originais não mais existem. Nem por isso vamos deixar de ler a Bíblia. A propósito, recomendo vivamente a leitura de O que Jesus disse? O que Jesus não disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, de Bart D. Ehrman. É um ensaio brilhante sobre as modificações dos textos bíblicos durante os séculos, seja por obra de copistas ou de tradutores. O autor tem uma trajetória curiosa. Estudou grego e hebraico para ter acesso aos originais. Descobriu então que de original nada mais existe da Bíblia. Foi atrás dos fragmentos de cópias de cópias de cópias e cotejou as traduções. Acabou perdendo a fé.

A professora que afirmou que quem lê Dostoievski fora do russo é um leitor simplório é uma esnobe que deve ter estudado russo. Se Dostoievski tivesse de ser lido apenas em russo, não teria os milhões de leitores que hoje tem no mundo. Por outro lado, quem quer que não conheça russo, estaria teoricamente impedido de lê-lo.