¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, setembro 22, 2009
 
AÇÚCAR COMO VENENO:
UMA HISTÓRIA ANTIGA
QUE PASSA POR NOVA



Todo jornal deveria ter, em sua redação, um jornalista antigo de plantão. Seria uma espécie de guardião da memória, cuja função seria alertar os jovens de que a América já foi descoberta. Pois não passa dia em um jornal sem que fatos antigos passem por notícia nova. Exemplo disto citei em crônica recente. Jornalista algum lembrou que o projeto de lei de um número de identidade pessoal único, agora aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), já havia sido aprovado em 1996.

A Veja desta semana apresenta como grande novidade o livro Sugar, a Bittersweet History, da historiadora canadense Elizabeth Abbott. Segundo a escritora, o açúcar redesenhou o mapa demográfico, econômico, ambiental, político, cultural e moral do mundo. “Em séculos de tragédia e glória, o açúcar transformou a alimentação do Ocidente, escravizou gerações de africanos nas Américas, foi combustível da Revolução Industrial, promoveu guerras e impérios, dizimou paraísos ecológicos, ergueu e pulverizou fortunas – e, nos trópicos, moldou a identidade brasileira. Movido pela sua energia calórica, o mundo segue girando rápido, tão rápido que estamos agora na soleira de outra mudança vertiginosa: o açúcar começa a ser considerado um vilão da saúde humana, um veneno tão prejudicial que merece ser tratado com o mesmo rigor empregado contra – suprema decadência! – o tabaco. Está mais perto o dia em que um pacote de açúcar trará a inscrição: O Ministério da Saúde adverte: este produto é prejudicial à saúde".

Já comentei o assunto em 1989, no século passado, quando caía o Muro de Berlim. Não que a descoberta fosse minha. Mas de Carson Ritchie, cujo ensaio Food in Civilization - How History Has Been Affected by Human Tastes alerta para os efeitos danosos do açúcar. O livro foi publicado em 1981. Ou seja, há quase três décadas.

Ritchie um dia convidou alguns amigos a um bom restaurante. Jantaram à la farta e tudo transcorreu muito bem, pelo menos até o momento da dolorosa. Ritchie puxou a carteira e nela não encontrou dinheiro suficiente. Teve de apelar aos amigos que convidara para jantar. Passado o episódio, considerou que a história da alimentação em algo se parece com esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que aquilo que desfrutamos custa bem mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa. Terá sido talvez esta gafe o que deu origem a seu livro.

"O açúcar para adoçar o chá e o café europeu - escreve Ritchie - foi cultivado às custas da escravidão negra. Os peles vermelhas foram expulsos sem piedade das pradarias onde caçavam para que o homem branco pudesse cultivar trigo e milho, e seus búfalos foram exterminados para dar lugar a grandes rebanhos vacuns. Os escritores norte-americanos responsabilizaram as grandes multinacionais fruticultoras pelo caos das economias centro-americanas, construindo ferrovias ilegais, sonegando impostos, manipulando os baixos salários da mão-de-obra não qualificada (já por si suficientemente baixos), expropriando as terras dos camponeses e exaurindo a fertilidade do solo. E tudo isso para que os norte-americanos tivessem bananas como sobremesa!"

Ao debruçar-se sobre os efeitos dos alimentos na História, Ritchie descobre que foram os conceitos errôneos de alimentação e não os corretos, os que demonstraram ter maior influência. "Crenças em que as especiarias aumentavam a virilidade, que o açúcar era essencial para a saúde, ou que para ser forte devia-se beber muita cerveja, condicionaram mais os destinos da humanidade que as autênticas e consolidadas leis da ciência da alimentação".

Mas como convencer minha Cristina de que seu vício não passa de um hidrato de carbono sem nenhum valor alimentício? Se os europeus, para açucarar suas tardes, destruíram homens e culturas, na África e nas ditas Índias Ocidentais, como queixar-me de minha faxineira?

Já vi universitários e professores universitários se lambuzando com sorvetes, que além de açúcar contém algo mais nocivo, o sal. (Isso até que não é tão grave: há universitários que acreditam em Deus). Pior ainda, já vi muitos destes senhores que, por uma questão de ofício possuem, ou deveriam possuir, noções de bem comer, dando sorvetes a seus filhos. Assim sendo, sempre tenho em casa um açucareiro cheio para saciar os instintos primários de Cristina e de eventuais formigas que já descobriram o mapa da mina. Sem falar que, quando o café é forte, tipo exportação, não me furto a ajuntar-lhe uma colherinha de veneno.

Pois este hidrato tão prestigiado, que no fundo só serve para produzir cáries, obesidade e doenças cardíacas, produziu mais estragos na trajetória do ser humano do que o próprio sal, que pelo menos tem a virtude de conservar as carnes, fator aparentemente banal mas decisivo na caminhada do Homo Sapiens, seja rumo ao combate, seja rumo a descobertas. E já fez levas de jovens do mundo todo partirem em revoadas rumo àquela ilha tanto amada por Paulo, Cardeal Arns, para cortar cana em prol da revolução.

Pois a cana-de-açúcar deve ser colhida rapidamente quando madura e Castro, preocupado em seguir as diretrizes de Moscou, mandou para Angola a juventude cubana, onde, em vez de ceifar cana, ceifaram vidas alheias e muitas vezes perderam as suas. Mas Estados Unidos, Europa, América Latina e mesmo o Brasil, pronto supriram a falta de mão-de-obra. Milhares de jovens, que jamais haviam visto de perto um canavial, bravamente acorreram, de machete em punho, em apoio à ditadura cubana.

O açúcar foi introduzido no mundo mediterrâneo por Dario, o rei dos persas, trazido da Índia após suas conquistas por lá. Difundiu-se pela Europa e passou ao Novo Mundo graças aos colonizadores espanhóis. Hernán Cortez introduziu a cana-de-açúcar no México. O Caribe proporcionava ao açúcar o clima mais adequado que seu próprio lugar de origem, a Índia, pois lá chovia muito mais. Acontece que os espanhóis jamais iriam trabalhar se encontrassem alguém que o fizesse por eles.

A tarefa foi delegada, se assim se pode dizer, aos índios caribes e arawaks, culturas que logo foram exterminadas. Tendo de buscar mão-de-obra em outra parte, os colonizadores das "Índias Ocidentais" deram uma piscadela de olhos aos portugueses. Estes, tendo observado que os índios, não se adaptando ao trabalho duro, morriam na colheita de açúcar, os deixaram de lado e foram buscar escravos na África.

"Já que espanhóis e portugueses haviam começado a desenvolver suas plantações de cana com a colaboração dos escravos negros, todos os demais pensaram que tinham de seguir seu exemplo. Se assim não faziam, expunham-se a produzir um açúcar mais caro, sem saída no mercado. Resulta irônico comprovar a que ponto haviam chegado os primeiros colonos franceses e ingleses no Caribe: homens idealistas, freqüentemente perseguidos por suas crenças religiosas, e muitas vezes indivíduos de princípios elevados que queriam viver de uma forma mais livre da qual lhes era permitido viver na Europa". Pois estes senhores, diz-nos Ritchie, tornaram-se escravocratas nas Índias Ocidentais. Para satisfazer o paladar europeu.

Outro subproduto da cana, o rum, serviu para incrementar o tráfico de escravos. Quando surgem as primeiras campanhas abolicionistas, seus líderes implantam o primeiro boicote ao comércio infame, adoçando o café com nata em vez de açúcar, e pedindo conhaque francês em lugar de rum. Para ajudá-los a propagar suas idéias, lady Henderson, comerciante em Londres, vende açucareiros com gravado em letras douradas: "Açúcar das Índias Orientais, não produzido por escravos".

Ritchie considera que se o açúcar fosse descoberto hoje seria classificado como droga. Droga que já produziu mais estragos em sua trajetória – acrescentemos – do que a maconha ou cocaína. Em suma, o livro de Elizabeth Abbott nada tem de novo. Apenas repete antigas denúncias sobre este veneno que as pessoas ingerem prazerosamente todos os dias.