¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 17, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (I)


Todo comunista é um canalha, escrevi ontem. Ou desinformado. Tive bons amigos entre eles, apesar de nossas diferenças intelectuais. Um deles, foi amigo de adolescência, nasceu nos mesmos campos que eu e mantivemos uma relação de uns bons quarenta anos. Nadamos juntos no mesmo rio, nos dias de adolescência, fomos parceiros de grandes polêmicas lá pelos quinze anos de idade. Escrevíamos num jornalzinho estudantil, o Pirilampo. Certo dia, escrevemos um artigo onde defendíamos a tese de que, para fazer a reforma agrária, não era necessário mexer na Constituição, já que ela estava prevista na Carta Magna.

Nossa! Escândalo em Dom Pedrito. O Ponche Verde, o vibrante hebdomadário local – se me é permissível a expressão – nos tachou de comunistas. Exigimos direito de resposta, que nos foi concedido. Mas nosso artigo foi prudentemente cercado por outros três, um deles de autoria do Dr. Márcio Bazan, latinista emérito, daqueles que escrevia mais em latim do que em português. Um outro era de João Bosco Dihl, nosso professor de português. Exigimos tréplica. E a salpicamos com alguns data venias, mais uns quousque tandems e latinórios outros em nossa tréplica. Ninguém entendia na cidade aquela erudição de adolescentes. Só a entendeu o padre Chico, sacerdote alemão professor de matemática.

- Eu sei. Focês lerram as páchinas finais do Aurrélio.

Acertou na mosca. O Aurélio daqueles dias tinha várias citações latinas ao final do tomo. Já o professor de português levou uma paulada severa. Em seu artigo, ousou empregar um pronome oblíquo no início da frase. Até hoje não esqueço nossa resposta ao final do artigo:

- Admoestamos ao ínclito mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase.

Eram dias em que nossas mães queimaram nossas bibliotecas incipientes. Não por censura, mas por temor aos militares. Em verdade, não havia razão para tanto. Mas mãe é mãe. Não gostavam de nos ver reunidos discutindo filosofia. Íamos então para a praça General Osório, naqueles dias pré-televisivos, quando ainda se fazia o footing. Mas as noites de Dom Pedrito, quando fustigadas pelo minuano, são gélidas. O recurso era o bar do Santinho, onde continuávamos discutindo nossas concepções de homem e de mundo. Mas o Santinho fechava lá pelas dez. O último recurso era o bordel.

Visitávamos as moças para continuar discutindo filosofia. Por um lado, tínhamos medo de mulher, constituam um mistério que a gente ainda não conhecia. Por outro, mal tínhamos dinheiro para uma cervejinha. Lembro que uma delas era uma defensora efusiva da reforma agrária. Mas nós, como diria Sartre, éramos uma paixão inútil. Com o passar dos dias, colocaram uma atalaia na janela. Mal surgíamos na esquina, fechavam a casa. “Lá vêm os filósofos, dali não sai grana alguma”.

Mas divago. Tudo isto para falar de um de meus parceiros, comunista desde jovem. Fez guerrilha, pegou quatro anos de prisão militar. Eu, anticomunista desde minha adolescência, me orgulhava de cultivar sua convivência. Vivíamos nas antípodas. Mas havia algo maior, acima de qualquer ideologia, um sentimento muito caro a gaúchos – falo de gaúchos de verdade, não de gaúchos de asfalto – a amizade. Este sentimento estava acima de qualquer filosofia. Fizemos ginásio no mesmo colégio em Dom Pedrito, científico no mesmo colégio em Santa Maria, Filosofia na mesma faculdade em Porto Alegre. Quando fui para Paris, ele, com sua pena já cumprida, veio para São Paulo. Mantivemos longa correspondência entre Paris e São Paulo.

Depois, vim para cá. Um churrasco com chimarrão, pelo menos uma vez por mês. Constituía para mim sumo prazer conversar com ele. Tínhamos um linguajar comum de fronteira, conhecíamos aqueles personagens todos lá da Linha Divisória entre Uruguai e Brasil, era algo como voltar aos pagos e à infância. O que me aprazia em nossa relação era que o modo de pensar não nos separava. A amizade pairava sobre as ideologias.

Bueno, vai daí que o homem, depois de velho, decidiu fazer um doutorado na USP. Sempre critiquei os doutorandos carecas, mas dei um desconto para meu amigo. Aconteceu então o inesperado. Uma vez titulado, afastou-se completamente de mim. Virou PhDeus. Quarenta anos de boa amizade foram jogados ao lixo, em função de um papelucho de doutorado de um curso medíocre.

Paciência! Este foi um dos bons amigos marxistas que tive. Continuarei com outros.