¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, dezembro 28, 2009
 
A DECADÊNCIA DOS CRUZEIROS:
NAVEGANDO COM NOSSA SENHORA



Já fiz cinco travessias do Atlântico em navio. Em outros tempos, quando não se falava em cruzeiros. A primeira vez foi em 71, em minha primeira viagem rumo ao anecúmeno. Não tinha prazo algum para chegar na Europa e achava muito sem graça voar apertado numa lata de sardinha. Sem falar que, na época, conforme a condição em que você viajava, a passagem era muito mais barata que uma passagem de avião. Considerando-se ainda que você desfrutava do conforto de um hotel, durante 14 ou 15 dias, com vinho e refeições embutidas no preço. Mais aquelas aventuras da terra de ninguém que é um navio, cidade temporária com umas duas mil pessoas longe de seus lares. Mais o “quente arfar das vibrações marinhas...” A viagem era sempre uma festa cheia de encontros inesperados.

Fiz quatro travessias no Eugenio C e uma no Augustus, hoje desarmados. Eram mais travessias que cruzeiro. Explico. Os navios transportavam pessoas que viajavam, jovens que iam estudar na Europa, imigrantes que voltavam a seus países, gente que tinha de deslocar-se de um continente a outro e podia dar-se ao luxo de navegar durante duas semanas. Havia quem utilizasse a travessia como turismo, mas estes eram raros. O clima no navio não era exatamente de cruzeiro. Em um cruzeiro, normalmente a pessoa sai de um porto e a ele volta. Numa travessia, há pessoas que viajam para não mais voltar. Há uma certa angústia pairando no ar, que torna os viajores mais receptivos ao contato com novas gentes. É viagem com tensões que não existem em um cruzeiro.

Uma vez no navio, a única coisa que você não quer é chegar. A bordo, a rotina é paradisíaca. Café da manhã, piscina, almoço, siesta, piscina, passeio pelo convés, janta e shows noturnos para quem quiser. Naquela época pré-internética, as únicas notícias que se recebia a bordo consistiam em algumas linhas impressas em um boletim de duas ou três páginas. Havia uma seleção do pessoal de bordo: só notícias boas. Nada sobre guerras, massacres, tragédias, quedas da Bolsa. Se o mundo tivesse acabado durante a travessia, você só tomaria conhecimento da catástrofe quando aportasse.

Chegar era sinônimo de problemas, com transporte, hotel, orientação, câmbio. Na época, cada país europeu tinha moeda diferente. Se isto soa como absurdo ao viajante contemporâneo, naqueles dias a primeira providência a se tomar em um porto ou aeroporto era trocar moeda. A moeda padrão era o dólar. Você tinha de trocá-los a cada país e cada troca significava alguma perda. Hoje, você se mune de euros ou travellers – que aliás já são obsoletos – ou de cartões de crédito. Mas não era disto que pretendia falar.

Viajar em primeira classe custava os olhos da cara. Mas você podia viajar em segunda. Se pretendesse um camarote individual, a viagem também sairia cara. A dois, já melhorava. Com quatro leitos, melhor ainda. Quanto mais alta a ponte, mais caro. Cabine externa custava mais, é claro. Mas em cabine você entra para dormir, não para contemplar o mar. Regra daqueles dias: descer da primeira classe para a segunda você podia. Da segunda para a primeira era proibido. Há muito não faço essas travessias, suponho que essa interdição besta não mais exista. Seja como for, tanto um estudante pobre como um milionário podiam viajar no mesmo barco.

Nunca gostei de bailes e shows, nunca entrei nos salões à noite. Procurava-os durante o dia para ler. Num deles encontrei uma sabra muito querida - ora ela estava alguns metros acima de mim, ora o contrário – de quem até hoje tenho saudades. Lembro também com carinho de uma amiga francesa, que não entendia as dimensões do Brasil. Entramos na costa brasileira perto de Recife e o navio demorava a chegar ao Rio. Ce pays ne finit jamais – se espantava a francesinha. Desceríamos em Buenos Aires e ainda tínhamos muita água sob a quilha.

Sempre procurei os desgarrados da viagem para conversar no convés durante a madrugada e fiz grandes amizades nessas travessias. Em função de um desses amigos, o poeta canarino Chano Sosa, acabei conhecendo as ilhas Canárias. Havia lugar para todo mundo, tanto para quem gostava das brincadeiras bobas de salão como para quem desejava encontrar interlocutores inteligentes. Um navio é muito grande.

Atualmente são bem maiores. Na época, eram raros na costa brasileira. Hoje, nos oferecem viagens quase todas as semanas. Aumentou também a clientela, agora estão ao alcance até da classe D. Com a invasão da brasileirada, as travessias já não são travessias. São cruzeiros. Reúnem basicamente turistas. Gente que vai e volta ao mesmo porto. Este tipo de viagem para mim perdeu a graça. Primeiro, porque não me sinto viajando quando ouço em torno a mim minha própria língua. Segundo, porque tais cruzeiros são destinados ao turismo em massa, isto é, atraem a mais medíocre espécie de viajante. Terceiro, porque adaptaram os cruzeiros ao gosto tupiniquim. No dia em que soube que Roberto Carlos cantava todas as noites em um desses barcos, prometi a mim mesmo: esse tipo de viagem nunca mais faço.

Pior ainda: leio na Folha de São Paulo de ontem que católicos estão organizando o 1º Cruzeiro Católico - Navegando com Nossa Senhora, com missa e show com um tal de padre Fábio de Melo. Parece que canta. Deve ser mais indigesto que o tal de Roberto Carlos. A intenção é cruzar os mares de Santos (SP) e Búzios (RJ), com parada no Rio de Janeiro, para "evangelizar por meio do turismo". Por até R$ 2.404, peregrinos embarcam, em fevereiro, para uma viagem de quatro dias no navio Grand Celebration, com capacidade para 1.800 pessoas e 600 tripulantes.

O 1º Cruzeiro Católico terá serviços como cabeleireiro, massagem, jogos, coquetel, internet e shows com o tal de padre, fenômeno da música católica. Bebidas alcoólicas estarão à venda, mas a base da programação será bem comportada, com direito a sessões de oração com a atriz Myrian Rios (não tenho idéia de quem seja), missas, cantos e confissões. E haja confessores. Porque os ares marinhos incitam ao pecado.

Aquela profissão de pobreza, até há pouco corrente entre os católicos, foi pras cucuias. “A viagem busca o lazer, mas com algo a mais. Nada impede que alguém vá a Jerusalém na primeira classe. O que vale é a fé", explica Otacílio de Melo Junior, sócio da CNS Viagens Religiosas e Peregrinações, que organiza o evento com apoio da Arquidiocese de Campinas. "É uma peregrinação. O projeto passou pelo crivo da igreja para a viagem não se banalizar. Vamos levar a fé a outros horizontes. E a igreja será o navio." Com o número de católicos mermando – e o dízimo também – melhor investir em outras áreas do mercado da fé.

É a decadência dos cruzeiros. Você não embarca em um barco. Embarca em um templo. Claro que logo adiante teremos o 1º Cruzeiro Evangélico, quem sabe o 1º Cruzeiro Neopentescostal. Navegando em nome do Senhor!

Desde há muito não freqüento navios que fazem a costa brasileira. Desde que os patrícios, com seus hábitos de classe média, vulgarizaram os cruzeiros. Quando estou com vontade de mar, vou pra Noruega, Alaska, Terra do Fogo, Mediterrâneo. Tudo, em qualquer paralelo ou meridiano, menos qualquer barco que passe aqui por perto.