¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 27, 2009
 
DEPUTADO CATÓLICO
QUER DECIDIR HORA
DE NOSSA MORTE



Já que o clima é natalino, adelante! Há uns dois ou três anos escrevi que jornalista não pode ser católico. Certas cândidas alminhas ficaram chocadas. Ora, há jornalistas que conhecem bastante o cristianismo, sabem o que é um dogma e têm ciência de todos os demais dogmas, conhecem o magistério da Igreja e a ele obedecem. São raros, mas existem. Este crente não pode ser jornalista. Católico sendo, terá de crer firmemente nos dogmas da virgindade de Maria, da ascensão de Maria aos Céus, na divindade do Cristo, na Santíssima Trindade, na transubstanciação da carne e outros menos prestigiosos. Obviamente, não podemos conferir credibilidade alguma a quem acredita em tais potocas.

Fui adiante. Manifestei minhas restrições a médicos católicos. Que são muitas, mas vou ater-me a uma ou duas. Claro que se eu precisar de um cirurgião, não vou me perguntar por sua fé, mas por sua competência. Mas em tratamentos continuados ou em casos extremos, o catolicismo vai interferir. Se eu optar por eutanásia - seja para mim, seja por vontade de pessoa próxima – o médico, se for católico, por coerência terá de se recusar à minha opção. Já aconteceu em minha família e o resultado foi desastroso, uma pessoa vivendo quatro anos como vegetal. Se não tiver a suprema ventura de morrer em acidente rápido, confesso que não quero esse tipo de médico perto de meu leito no hospital.

Avanço agora mais um pouco. Penso que deputado não pode ser católico. Y a las pruebas me remito.

O problema dos católicos é aquela intolerância de todo crente que julga seu deus ser o único. Foi o que chocou os romanos. Em um império onde todos os deuses eram bem-vindos, surge uma seita de fanáticos que nega todos os deuses e afirma que só o seu existe. Isto tem suas origens no judaísmo. Mas Jeová era o deus de Israel e exercia seu poder apenas sobre os seus. As interdições judias diziam respeito apenas aos judeus. Não queriam impô-las ao resto do mundo. Os deuses eram deuses de nações. Havia os deuses gregos, os romanos, os egípcios, os persas. O que os romanos não entendiam era aquele novo deus que surgia, que não pertencia a nação nenhuma e se pretendia deus de todas. A intolerância cristã era herança do judaísmo que, embora não se pretendesse religião universal, não admitia cisões. Moisés mandou degolar três mil dos seus só porque passaram a cultuar outro deus que não Jeová.

Esta discussão vai longe, tento resumir. Uma vez no poder, os cristãos impuseram sua religião como lei. O auge desta pretensão surge no século XII, quando a Igreja de Roma institui a Inquisição para perseguir os cátaros de Albi. Quem não aceitasse a ética ou dogmas católicos ia para a fogueira, não sem antes passar pela tortura. A Inquisição perdurou até 1834, na Espanha. O zelo da Igreja foi tamanho que chegou a queimar uma menina que mais tarde canonizou como santa.

Deputado não pode ser católico, dizia. Leio na Folha de São Paulo artigo do deputado federal Miguel Martini, membro da Renovação Carismática Católica, da bancada católica no Congresso. Afirma o deputado: “Legislar sobre a ortotanásia - que é o decorrer natural do processo de morte, sem intervenção de tratamento artificial que prolongue a vida vegetativa do paciente - pode abrir brechas para a aprovação da eutanásia no país. Por essa razão, somos contra uma lei a respeito desse tema”.

Martini cita o Código Canônico (nº 65): "Não se deve privar o paciente da consciência de si mesmo, sem motivo grave. Quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares e devem sobretudo poder preparar-se com plena consciência para o encontro definitivo com Deus".

Ora, se o deputado, católico sendo, é contra a eutanásia, isto é problema que concerne apenas a ele e aos demais católicos. Isso de encontrar-se com deus também só diz respeito a crentes. Que o deputado seja contra a prática de eutanásia entre os de sua grei, entendo perfeitamente. Mas que não pretenda estender as exigências de sua fé a todos os cidadãos do país. Daí minhas restrições aos médicos católicos. Sou dono de minha vida. Se por qualquer razão quiser terminar minha vida amanhã, acabo com ela e fim de papo. Ninguém tem nada a ver com isso. Bem entendido, não tenho intenção alguma de terminar meus dias amanhã. O bom deus dos ateus tem sido generoso comigo e pretendo extrair da existência até a última gota.

Mas do futuro nada sabemos. Pode ser que logo adiante, em função de alguma doença incapacitante, eu prefira terminar mais cedo meus dias. É direito meu, ora bolas! Aí ocorrem dois momentos. Há um primeiro, em que tenho autonomia suficiente para decidir partir. Absurdo ser impedido por uma lei, só porque um deputado católico não aceita a eutanásia. O segundo momento é o pior, aquele em que o paciente sequer tem condições de decidir se quer morrer ou não. Dependerá então da decisão de seus familiares. Considero um gesto de caridade deixar morrer quem só consegue vegetar.

Enquanto estiver lúcido, salvo acidente ou doença letal, a hora de minha morte sou eu quem decido. Não admito que lei alguma me proíba de partir, se é meu desejo partir. E por essas razões considero que católicos devem ser mantidos longe do Legislativo.

Não só católicos, mas todo fanático que se pretenda dono da verdade.