¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 22, 2010
 
DEUSA SHIVA E O
GUIDE MICHELIN



Escreve-me Paulo Augustus, a respeito do “correspondente” plagiário de Veja em Paris:

Janer,

pano rápido: ontem cruzei com um conhecido de longa data, jornalista político do Estadão. Falei-lhe do caso. Ele disse que sobretudo em tempos pré-internet e mercado fechado, era muito comum enviados especiais plagiarem textos de publicações estrangeiras. Principalmente resenha de livros, discos e filmes.

Embora não seja a editoria dele, não se mostrou muito interessado no assunto, em termos jornalísticos. Perguntei-lhe se os grandes jornais não publicariam esse tipo de matéria. Ele respondeu que caberia mais à própria revista e ao Observatório da Imprensa.

Bem, só para cumprir tabela, enviei e-mail alertando o caso para o senhor Luiz Egypto e outra editora do Observatório da Imprensa, mas já sem muita convicção.

Saudações,

Paulo



Pois, meu caro Paulo, naquela época pré-Internet o plágio corria solto. Se ainda é corrente nestes dias de Google e outros mecanismos de busca, imagine-se o que não seria quando jornais estrangeiros não chegavam no Brasil. Ou chegavam apenas poucos números em algumas capitais. Qualquer “correspondente” podia tranqüilamente traduzir Le Monde, Times, El País, e leitor algum ficava sabendo da cópia. Pelo contrário, o “correspondente” era tido como jornalista ágil.

Em meus dias de Suécia, por acaso, descobri plágios cometidos... em Porto Alegre. Havia na Caldas Júnior um medíocre jornalista, mais conhecido como Deusa Shiva: tinha tantos braços que escrevia sobre todas as áreas do conhecimento. Certa vez, viajou para a Alemanha. Semana seguinte, leio no Correio do Povo eruditos artigos de sua lavra sobre história e arquitetura alemãs. Ora, que eu soubesse, eram duas áreas das quais Deusa Shiva não entendia patavina. Fiquei com uma pulga atrás da orelha, mas não tinha prova alguma de seu plágio. Deusa Shiva ganhou prestígio com sua pluma, foi vereador e vice-governador. O que só prova que sucesso é uma soma de equívocos.

Estocolmo, 1971. Na época, não poucos brasileiros buscavam a capital sueca para ganhar alguns trocados como diskare, isto é, lavadores de pratos. Eram trocados nada desprezíveis. Se trabalhasse dois turnos durante os meses de verão, um diskare podia deitar-se nas cordas pelo resto do ano em Ibiza ou Mallorca. Encontrei naqueles dias um gaúcho que vivia na Alemanha e aproveitava o verão sueco para forrar o poncho. Ao saber que eu vinha de Porto Alegre, perguntou-me: conheces aquele maluco com o nome cheio de eles e agás, que é jornalista da Caldas?

Conhecia. Qual é a dúvida? Pois é. Eu o hospedei em minha casa. Ele passava o dia todo traduzindo o Guide Michelin. Bingo! Estava esclarecida a erudição de Deusa Shiva.

Era fácil, na época, ser correspondente. A rigor, bastava conhecer uma língua estrangeira, de preferência a língua do país que o “correspondente” cobria. O que não parece ser o caso do "correspondente" de Veja em Paris, que só plagia do inglês. A prática era tão corriqueira, que o “correspondente” sequer imaginava estar roubando trabalho alheio. Ser correspondente era traduzir.

O que gera um segundo problema, e dos mais graves. A visão que o “correspondente” transmitia a seus leitores não era uma ótica nossa, brasileira. Mas francesa, inglesa ou americana. Víamos o mundo a partir de um olhar estrangeiro. Daí nossa dependência cultural de modismos de além-mar.

Durante quatro anos, fui uma espécie de correspondente da Caldas Júnior em Paris. Digo espécie de correspondente porque não tinha compromisso algum de fazer cobertura sobre o que ocorria na França. Tinha uma coluna diária e fazia minha própria pauta. Podia escrever sobre Paris, ilhas gregas ou Canárias, minhas namoradas, o que me desse na veneta. Nunca me ocorreu traduzir algum jornalista. Por uma razão das mais simples: eu queria transmitir minha visão de mundo, e não a visão alheia.

O Observatório da Imprensa certamente não publicará nada, Paulo Augustus. A máfia se protege. Os jornais – e a Folha de São Paulo é o melhor exemplo disto – corrigem vírgulas e nomes mal grafados. Nenhum jornal brasileiro admite grandes mancadas. A direção de Veja está ciente dos plágios de Antonio Ribeiro. Mas sequer se digna responder aos leitores que o denunciam. Mantém o plagiário em sua redação.

Depois os jornais se queixam de que estão perdendo leitores. É normal que percam. O leitor está começando a buscar informação no universo blogueiro, onde jornalistas escrevem sem compromisso algum com quem quer que seja.