¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, fevereiro 18, 2010
 
FÖRFATTARINA ME
LEVA AO SAARA



Ainda sobre contar histórias. Nasci ouvindo histórias, mas contadas por pais, parentes, pela gauchada de Upamaraty e Ponche Verde. Causos, como se dizia naqueles rincões. Era uma atividade lúdica para os momentos de lazer. Havia os causos em torno à fogueira no galpão, na madrugada, quando a indiada se reunia para tomar um chimarrão antes de começar as lides de campo. E havia os causos noturnos, quando após a janta se tomava mais um mate junto ao portal da casa.

Estes foram os que mais me marcaram. Eram histórias de cemitério, assombrações, esqueletos, caveiras, mulas sem cabeça. Eu as ouvia na antiga casa senhorial, que ficava a meia légua da casa de meus pais. Lá pela meia noite, hora sinistra, eu voltava naquelas noites enluaradas para meu rancho. Voltava voando pelas sangas e canhadas. Algo ou alguém, juro, me perseguia colado às minhas costas. Por mais que corresse, não conseguia afastar-me da coisa. Cá entre nós: não é fácil tomar distância da própria sombra.

Foram dias de pânico. Às vezes voltava a cavalo pela Linha Divisória, já tarde da noite, e sentia nitidamente, ao passar por cemitérios, que alguma coisa gelada montara em minha garupa. Até o cavalo ficava nervoso, suponho que contaminado por meu medo. E de nada adiantava passar do trote ao galope, porque a coisa gelada não apeava. Levei algum tempo para superar o medo a cemitérios. Hoje, adoro visitá-los em minhas viagens. De dia, bem entendido. À noite, não sei não.

Aquela gente inculta de meus pagos, se ouvisse falar em literatura, certamente não entenderia a palavrinha. Estavam no entanto exercendo uma das grandes funções da literatura, provocar emoções. Como Monsieur Jourdain, faziam prosa sem sabê-lo. Claro que os adultos não acreditavam naquelas potocas. Mas adoravam assustar as crianças. Se naqueles dias vivi momentos de terror, hoje guardo uma terna lembrança daqueles causos.

Um outro leitor me cita Bocaccio e Pasolini como grandes contadores de histórias. Ora, todo cineasta, todo escritor, é um contador de histórias. Cervantes ou Cela, Bocaccio ou Dante, Pasolini ou Fellini, Shakespeare ou Swift são contadores de história. Outra coisa é funcionário público pago para contar histórias que ninguém pediu para ouvir.

O leitor também menciona Sherazade. É uma metáfora interessante. Só para lembrar: ao descobrir que foi traído, o rei Shariar mata sua mulher e seu amante. E toma uma decisão que passa a provocar inquietação em seu reino: só aceita virgens em sua cama. Consumado o ato, o rei a executa. A bela Sherazade, filha do primeiro ministro, concebe um plano para acabar com a matança. Mas primeiro precisa casar com o rei. Uma vez casada, conta uma história que sempre promete outra. O rei, curioso, lhe concede mais uma noite. Mas se uma de suas histórias não agradar, terá sua cabeça cortada. No que dependesse do rei Shariar, poucos contadores de história contemporâneos sobreviveriam a um dia. Mas As Mil e uma Noites acabam sendo de uma chatice ímpar. Não conheço ninguém que as tenha lido integralmente. Tenho comigo uma edição magnífica da Aguilar, em três volumes, papel-bíblia, 1.600 páginas cada um. Só consegui ler umas cem noites. No que de mim dependesse, a Sherazade perdia a cabeça em pouco mais de três meses. Às vezes, volto a algum tomo, mais para curtir aquele saboroso estilo oriental de narração do que para ouvir uma história.

Quem viaja e quem lê sempre tem histórias interessantes para contar. Ernesto Sábato, por exemplo, era um causeur irremediável. Já ouvi por longas horas o relato de suas viagens, leituras, encontros e amores. Só tinha um problema: é daqueles que pega a palavra e não a larga mais. Basta mudar de geografia e você já tem o que contar. Na nova cidade ou país, sempre encontrará quem tenha curiosidade de ouvir algo sobre seu terrunho. E ao voltar ao terrunho, terá mais coisas ainda para contar aos seus.

Em Estocolmo, viajei pelo mundo todo em minhas aulas de sueco. O curso tinha uma estratégia para evitar panelinhas por língua, cada aula tinha um só ressortissant de cada país. Éramos então obrigados a nos comunicar na única língua comum, o sueco. Quando chegamos a um relativo domínio da língua, cada aula era um simpósio sobre história, sociologia, costumes, comportamento. O professor pedia, por exemplo, que cada aluno falasse sobre a condição da mulher, ou sobre a culinária, ou sobre a geografia de seu país. Em duas ou três horas de aula, havíamos viajado por boa parte do planetinha.

Foi numa aula dessas que conheci uma adorável suissesse, Federica de Cesco. Graças às histórias dela em El Hogar e Tassili, suas viagens pela geografia dos homens azuis, acabei viajando ao Saara argelino. Onde fui ouvir, nas noites gélidas na montanha, em torno à fogueira, histórias narradas por tuaregs. Como em meu galpão em Upamaruty.

Vivi noites solenes naqueles picos. Em meio à noite enluarada e a um silêncio estridente que chegava a ferir os ouvidos – juro! – o narrador usava suas palavras com parcimônia. Uma ou duas, talvez três, por minuto. Não era contratado para isso. Contava pelo prazer de contar as coisas de seu oásis ou de seu oued.

Foram momentos quase religiosos. Ateu, pensei com meus botões: se deus existe, ele deve habitar por aqui. O deus do Ocidente nasceu no silêncio do deserto. Deus nasce da areia, escreveu Michel Onfray.

Um pouco mais de Federica. Era uma escritora profissional. Isto é, escrevia sobre o que os editores lhe pediam. Falava sueco com um charmoso sotaque alemão. Encontrei-a na Stockholms Universitet. Em uma dessas aulas cosmopolita, passamos a discorrer sobre profissões. A professora perguntou a dela. Författarina, respondeu.

Författarina? Eu jamais havia visto uma författarina de perto. Preciso conhecer essa mulher, pensei. Na saída da aula, já estávamos tomando um café no Kungsträdgården, a praça que ficava frente ao curso. Linda e jovial, teria no máximo quarenta anos. Você então é escritora? Sou. Já havia escrito 25 livros, estava redigindo o vigésimo oitavo e tinha dois no prelo. Pensei que fosse blefe. Não era. Mais tarde, em seu apartamento, encontrei uma estante repleta de livros, com algumas das traduções em diferentes idiomas de alguns de seus cinqüenta livros.

- Mas nada disso tem valor - me disse. Escrevo para ganhar minha vida. Sou enviada a diferentes lugares do mundo para escrever romances com cor local. Agora, estou em Estocolmo para escrever uma história ambientada em aeroportos internacionais.

Vänta lite, min kära författarina! Péra aí, minha cara escritora! Quem escreveu meia centena de livros tem boas chances de ter escrito pelo menos um interessante.

- Naturligtvis! Gosto deste aqui.

E passou-me uma edição de luxo, com farta policromia, de Touareg, nomades du Sahara. Antes mesmo que eu o lesse, contou-me histórias dos chamados homens azuis, relatos que ouvi embevecido naquelas noites brancas dos hiperbóreos. Voltei do reino dos Sveas, perdi contato com Federica, mas fiquei com os tuaregs na memória. Uns sete ou oito anos mais tarde, fui conhecê-los. Lá ouvi, in loco, as histórias que Federica me contava.

Apaixonada por cavalos, certa vez convidou-me para fazer equitação. Gostei da idéia. Por sorte deu zebra e nossa cavalgada não ocorreu. Seria um desastre. Só mais tarde me dei conta de que montaria um cavalo urbano, sueco e civilizado, talvez até mesmo bilíngüe, desses que obedecem a comandos, comandos que desconheço. Só conheço os matungos analfabetos lá do Ponche Verde.

La Cesco, apesar de traduzida em um monte de línguas, é desconhecida no Brasil. Encontrei certa vez um livro seu traduzido ao português numa livraria do Chiado em Lisboa. Em Paris e Madri, encontrei dezenas. O encontro com a suissesse foi fundamental em minha vida. Se ela, que até então havia escrito meia centena de livros, considerava que nenhum deles era importante, considerei que poderia escrever pelo menos um que tivesse alguma importância. Assim nasceu O Paraíso Sexual Democrata. Assim, se alguém hoje tem de aturar minhas histórias, a culpa é da författarina.

Apresento-vos La Cesco. Trailer de filme sobre sua vida:
http://www.cineman.ch/movie/2008/FedericaDeCesco/trailer.html

Entrevista:
http://www.art-tv.ch/1532-0-frederica-de-cesco--das-interview.html

Esplendor dos dias de Estocolmo:
http://tinyurl.com/yzg645j