¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, abril 29, 2010
 
A GRANDE MISTIFICAÇÃO
DO SÉCULO PASSADO (III)



Muitos outros embates tive com esta raça de vigaristas. Ainda jovem, fiz um concurso para secretário de escola. Na hora do exame biométrico, entrei na fila errada, caí na dos concursados para delegados de polícia. Fui examinado por um psicanalista. Não por acaso, um dos que estavam no debate sobre Bergman. Sentado em uma cadeira solene, do outro lado da mesa me analisava com olhar percuciente. Eu, numa cadeirinha de réu. Comecei a rir.

- Por que o senhor está rindo?

- Estou rindo porque o senhor, do alto dessa curul, está me observando nesta humilde cadeirinha.

Não sei se ele entendeu a curul, mas senti que não gostou.

- O senhor está rindo de nervoso.

- Vai ver que é, Dr! O senhor é psicanalista. Eu, provavelmente um neurótico qualquer.

- O senhor tem algo contra a psicanálise? – perguntou-me.

Tinha e muito. Havia lido bastante na época sobre o assunto e fui debulhando meus argumentos. Ele não disse nada e dispensou-me. Algumas semanas depois recebi uma comunicação. Devia submeter-me a uma junta psiquiátrica. Se não aceitava a psicanálise, certamente era um perigoso meliante.

Compareci ao exame. Não consigo esquecer da cena. Três doutores, sentados sempre em cadeiras solenes, me olhavam do alto. Eu, numa cadeirinha de réu. Precisava do emprego, respondi como eles gostavam. Fiquei sem saber se fui condenado ou não pelos Torquemadas. Antes da sentença, consegui emprego em jornal e nem me preocupei com o laudo.

Mais adiante, novo confronto. Escrevi que ser psicanalista dispensava curso universitário. Mais ainda, dispensava qualquer curso. Qualquer analfabeto, se quisesse, podia colocar placa de psicanalista em uma sala e sair clinicando. Na época, em São Paulo, após o curso de cinco anos, ao preço de dez ou quinze mil cruzeiros por mês, pessoas sem o pré-requisito do curso de medicina podiam exercer a profissão de psicanalista. Enquanto 38 alunos faziam o curso, outros cem esperavam na fila. O que constituía uma espécie de subvigarice, já que lei alguma regulamentava a profissão.

A guilda reagiu com fúria. Um psiquiatra, lembro que chamado Ronaldo Moreira Brum, me acusou nos jornais de nada entender de medicina – como se psicanálise fosse medicina. Ok! Doutor. De medicina nada entendo. Mas entendo de Direito. E psicanalista não é profissão regulamentada. Portanto, qualquer um pode exercê-la. A propósito, tem muito engenheiro e economista desempregado no Brasil, que puseram plaquinha de psicanalista em seus escritórios para ganhar seu pão.

Uma psicóloga e jornalista, Ivete Brandalise, resolveu enfiar sua colher na sopa. Escreveu que devia existir uma lei que regulamentasse a profissão de psicanalista. Que ela, psicóloga, tinha uma lei que regulamentava a sua. Ora, a dita lei era um trenzinho da alegria, no qual embarcaram todos os licenciados em Filosofia. De filósofos, vaga e suspeita ocupação, viraram psicólogos. Ora, lei tem número e data. Desafiei a Brandalise, e também o Dr. Ronaldo, a me citar o número e a data da lei que regulamentava a profissão. Nunca tive resposta.

A cada semana, começava minha crônica: “Enquanto o Dr. Ronaldo não nos fornece o número e a data da famosa lei que regulamenta a profissão de psicanalista...” Nunca forneceu. Soube mais tarde que propôs, em uma reunião da Amrigs (Associação dos Médicos do Rio Grande do Sul), que a entidade me processasse por calúnia. Ou talvez difamação, já não lembro. Prudentemente, a Amrigs decidiu que não iria dar atenção a “um jornalista em busca de sensacionalismo”.

Se bem que, devo confessar, tive notícias de um psicanalista sensato. Em minhas andanças noturnas, conheci uma mulher esplendorosa. Algumas semanas depois, sem mais nem menos, ela bateu à porta de meu humilde tugúrio. Recém-acordado, perplexo e sem acreditar no que via, perguntei ao que vinha.

- Meu psicanalista me liberou para te visitar.

Entra. E passa meu endereço ao doutor. Que mande mais clientes. Profissional dos bons tava ali. Ou seja, mesmo no universo da psicanálise parece existir alguma lucidez. É a chispa da ferradura quando bate na calçada.