¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quarta-feira, julho 28, 2010
 
KALOCAINA - XV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Tivemos de esperar Tuareg. Quando se está acostumado a ter obrigações fixas a cada minuto, dia e noite, um tal espaço do tempo vago torna-se uma tortura incrível, mas tudo, inclusive o pior, tem sua compensação, e por fim nos encontrarmos face ao Ministro da Polícia, com a chance de mostrar-lhe para que servia a kalocaína. Nunca acreditaria ser necessário controlar-me tão violentamente para não tremer as mãos quando foram arregaçadas as mangas de um delinquente barbudo sentado na cadeira à minha frente, mas os pequenos olhos de urso de Tuareg me alfinetavam a nuca tão agudamente que eu quase me sentia sob a agulha da seringa. Enfim, tudo transcorreu bem. Em meio a uma série de circunstâncias difíceis, que fizeram o Ministro inclusive esboçar um sorriso com sua boca carnuda, o que tornou mais descontraído o ambiente, o interrogado confessou sem esquecer detalhes, não só o crime pelo qual fora acusado e ao qual até então se carecia de provas concludentes, como também uma série de outras transgressões, que cometera sozinho ou com outros. Informou nomes e circunstâncias sem vacilar. As narinas de Tuareg se dilatavam de satisfação.

Continuamos com outros. Rissen e eu aplicávamos alternadamente a droga, o próprio secretário do Ministro fazia o protocolo, e para testar-nos enviavam um ou outro cidadão-soldado inocente entre os demais – isto é, inocente quanto a transgressões à lei; em um sentido mais amplo, a palavra dificilmente conviria a qual quer que fosse, para evidente satisfação do Ministro de Polícia. Quando acabamos de examinar seis pessoas, em tempo excepcionalmente curto, Tuareg ergueu-se e declarou estar totalmente convencido. A kalocaína substituiria logo todos os outros métodos de investigação em todo o Estado Mundial, esclareceu ele. Esperava que reservássemos alguns dias para instruir alguns experts da capital; queria, além disso, antecipar que nossa missão, ao voltarmos para casa, seria a de ensinar a aplicação e o fabrico de kalocaína em grande escala nas Cidades Químicas. Deixou-nos com evidente bom-humor, e logo recebemos uma vintena de pessoas para serem instruídas. As cobaias permaneciam em uma longa fila ante a porta e esperavam, todos criminosos mantidos em prisão preventiva.

Já no dia seguinte fui chamado por Karrek e recebi ordens de deixar provisoriamente todo o trabalho para Rissen. Pôs-me na mão um considerável pacote de papéis, que consistia de licenças, recomendações e identificações diversas.

Esqueci de contar que a solicitação de uma nova campanha de recrutamento de cobaias voluntárias, que eu desfechara e expusera ante as diversas instituições da Cidade Química, fora totalmente subscrita em poucos dias. Trouxe comigo todas as assinaturas para entregá-las pessoalmente ao Ministro de Propaganda. Por uma questão de segurança, pedido conselhos a Karrek sobre como proceder, e ele deu-me ótimas indicações. Minhas excelentes recomendações certamente seriam também suficientes para o Terceiro Departamento, ao qual competiria uma tal campanha. Tomei então o metrô e saltei ante a monumental porta subterrânea do Ministério da Propaganda.

Já pela manhã eu me sentira atacado por um certo mal-estar, e o médico pessoal do Ministro da Polícia me prescrevera uma série de remédios, de modo que eu me encontrava num estado um pouco anormal. Provavelmente era esta a razão de minha inexplicável agitação ao solicitar audiência com Lavris, chefe do Sétimo Departamento. Em verdade, vindo da parte de Karrek, eu tinha maiores chances do que se agisse pessoalmente, visto que ele parecia especialmente interessado na promulgação da nova lei, por razões para mim desconhecidas. Mas mesmo em meu estado de excitação, senti que não agia por conta de Karrek, tampouco por conta própria. Minha ação era apenas um passo em direção ao desenvolvimento colossal do Estado, talvez um dos últimos passos antes que a perfeição total fosse atingida. Eu, uma insignificante célula do grande organismo estatal, por cima de tudo intoxicado, embora ocasionalmente, por diversas poções e drogas, estava em vias de desfechar um trabalho de limpeza que livraria o corpo estatal de todos os venenos inoculados pelos criminosos ideológicos. Quando, finalmente – após infindáveis formalidades, revistas de corpo, espera –, ergui-me para ser recebido no gabinete de Lavris, foi como se estivesse me dirigindo para minha própria purificação, de onde voltaria totalmente calmo e livre deste resquício associal, que eu não queria reconhecer nem tomar consciência, que não era meu, mas que repousava traiçoeiramente em meus recantos mais obscuros e que eu podia resumir em uma palavra: Rissen.

Nada distinguia o gabinete de Lavris de milhares de outras salas de trabalho, a não ser os vigias armados, dispostos aqui como junto ao Ministro da Polícia, que indicavam ser aquele que aqui trabalhava um dos valiosos e caros instrumentos do Estado. A mulher alta, de pescoço esguio, atrás da escrivaninha, com a pele repuxada na boca e um eterno sorriso irônico nas faces, era Kalipso Lavris.

Mesmo se sua idade não fosse indefinida e sua postura rígida como estátua de um deus antigo, em meu estado febril eu a veria apenas como semi-humana. Nem mesmo uma grande espinha que explodira no lado esquerdo de seu nariz e antingira sua madureza total não a desmerecia ante meus olhos. Não era ela a mais alta instância ética do Estado Mundial, ou pelo menos a força diretiva da mais alta instância ética, o Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda? Não se podia ler em suas faces afeições pessoais como em Tuareg, sua imobilidade não continha impulsos ocultos como a de Karrek, ela parecia-me ser a própria cristalização da lógica, purificada de todos os azares da individualidade. Isto era uma alucinação febril, mas ao mesmo tempo uma imagem bastante exata de Lavris, acho.

Eu já sabia antecipadamente que a alusão a uma nova legislação não podia ser feita abertamente, pois oficialmente o Sétimo Departamento nada tinha a ver com o assunto. Os vigias, com suas armas embaladas, lembravam-me ainda mais isso, sem que, no entanto, me importunassem. Minha missão era por demais necessária para que o Estado ou eu fracassássemos.

Eu nem imaginava o quanto me enredara com a questão da reprimenda. Enquanto se buscava minha ficha policial, tive de esperar em uma pequena sala de recepção por mais de duas horas, suponho. Mas devemos aprender, pensei, devemos aprender a esperar. O tempo acabou passando. Devo, no entanto, admitir que a ficha foi prontamente expedida, considerando-se o espaço imenso que deve ocupar tal fichário de todos os cidadãos-soldados do Estado Mundial. Embora eu jamais o tivesse visto, podia muito bem imaginar ser necessário pelo menos uma hora apenas para atravessas as imensas salas até aquela onde estava a ficha – por outro lado, obviamente, tudo precisava estar minuciosamente sistematizado para que não se precisasse procurar muito ao chegar-se lá – e fazer o mesmo caminho de volta. Suponho-se ainda que o fichário dificilmente se encontraria no Ministério de Propaganda, mas sim no de Polícia, podia-se estar contente com duas horas de espera.

Quando fui novamente admitido. Lavris estudava minha ficha – ficha é modo de dizer, pois mais parecia um pequeno livro encadernado – junto à qual estava uma delgada pasta com papéis que provavelmente continham instruções e deliberações sobre a questão de minha reprimenda. Era perfeitamente compreensível que ela tivesse esquecido completamente o caso, sobrecarregado como devia estar o Sétimo Departamento com as mais importantes denúncias e problemas de todo o Estado.

– Temos aqui o seu caso – disse Lavris, com sua voz surda e ao mesmo tempo sonora. – Consta de sua ficha policial que o senhor já pediu para apresentar sua autocrítica no rádio, embora ainda não tenha tido a oportunidade. Que é que o senhor realmente quer?

– Levei às suas últimas consequências as palavras: o desmascaramento dos últimos – os relutantes – é uma valiosa atitude para o bem do Estado. Descobri inclusive uma droga que torna possível desmascará-los mais minuciosa e sistematicamente que antes.

E falei da kalocaína tão entusiasticamente quanto pude.

– Agora – concluí –, basta apenas esperar-se por uma legislação da mais devastadora espécie até então conhecida pela história: a legislação contra idéias e pensamentos subversivos. Talvez demore ainda... Mas virá, certamente.

Ela pareceu não reagir à minha sondagem. Decidi experimentar a mesma isca que usara com Karrek.

– Qualquer um pode ser incurso nesta lei – insinuei, acrescentando após uma longa pausa: - Naturalmente, qualquer um que não seja leal até os ossos.

Lavris permaneceu silenciosa e pensativa. A pele pareceu repuxar-se um pouco sobre as saliências da face. Subitamente espichou uma mão longa e bem cuidada, apanhou delicadamente um lápis entre o indicador e o polegar e girou-o lentamente até a junta dos dedos ficarem brancas. Sem demonstrar concessões, levantou os olhos e perguntou:

– Era isto que o trazia aqui, cidadão-soldado?

– Sim, este era meu objetivo – respondi. – Chamar a atenção do Sétimo Departamento para uma descoberta que possibilita demonstrar a condenável relutância interna de cada um, embora esta ainda não se tenha tornado um crime perante a lei. Se tomei inutilmente o tempo deste Departamento, estou pronto para pedir excusas.

– O Sétimo Departamento lhe agradece por suas boas intenções – respondeu ela com uma impermeabilidade glacial.

Despedi-me e saí, cheio de dúvidas e sempre com febre.

Ao entrar cambaleante no Terceiro Departamento com minha lista de nomes, o relógio assinalou o fim da jornada e quase fui derrubado pelos funcionários que saíam precipitadamente. Um velho de ar azedo ainda permanecia sentado, concluindo alguns cálculos, e não vi outra solução senão dirigir-me a ele. Franziu o nariz, manteve seu mau-humor ante as recomendações, examinou as listas e disse:

– Mil e duzentos nomes, não? Todos com altos méritos científicos? Pena o senhor ter chegado tarde. Sua solicitação já foi atendida antes mesmo que o senhor pudesse apresentá-la. Não menos que sete outras Cidades Químicas nos enviaram o mesmo pedido, algumas há oito meses atrás. A campanha que o senhor deseja está sendo preparada intensamente para ser lançada.

– Nada me alegra mais que isso, disse eu um tanto decepcionado por não ter tomado parte pessoalmente nesta atitude meritória.

– Portanto o senhor nada mais tem a fazer aqui – disse o homem, e curvou-se sobre sua coluna de cifras.

– Mas não seria possível arranjar-me uma forma de participar dessa campanha – gritei, assaltado por uma súbita coragem causada talvez pela febre. Se estou comprovadamente interessado no assunto, por que não poderia participar dos preparativos? Tenho uma pilha de recomendações... Olhe aqui... E aqui... E aqui...

Olhou de lado, ora para meus importantes documentos, ora para suas colunas em branco; olhou depois com um suspiro para o último de seus colegas que desaparecia pela porta. Expulsar-me não ousava. Finalmente encontrou uma saída que lhe pareceu ser a mais rápida possível.

– Vou dar-lhe uma apresentação – disse, e escreveu algumas linhas a máquina, apanhou rapidamente um grande carimbo, o do Terceiro Departamento, calcou-o sobre o escrito e passou-me o papel

– Palácio dos Estúdios Cinematográficos às 20 horas hoje à noite. O que fazem lá não sei, mas sempre estão fazendo algo. Isto é suficiente. Ninguém me conhece lá, mas conhecem o carimbo. O senhor está satisfeito agora? Espero que não tenha feito nenhuma besteira...