¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, agosto 23, 2010
 
QUANDO GRANDE POESIA
VIRA NEGÓCIO RENTÁVEL



Há dois poetas que leio e releio de tempos em tempos. Quem me acompanha sabe quem são: Fernando Pessoa e José Hernández. Levei-os comigo na bagagem quando fui respirar outros ares. Quando me sentia muito só naquelas madrugadas brancas e silentes, me refugiava em suas páginas. Pessoa me fazia mergulhar em mim mesmo e Hernández me trazia de volta a meus pagos e à minha infância. Curto outros poetas, é verdade, em geral platinos: Echeverria, Elias Regules, Estanilao del Campo, Serafin J. Garcia, Atahualpa Yupanqui. Mas estes eu os freqüento mais espaçadamente.

Com o luso, encontrei-me em 1969, quando a José Aguilar lançou a 3ª edição de sua Obra Poética, em papel-bíblia, de 786 páginas. O volume contém toda a produção poética de Pessoa até então conhecida, inclusive seus poemas em inglês e francês, mais suas traduções de poetas ingleses ao português, em particular as soberbas traduções de The Raven e Ulalume. (A meu ver, soam melhores que as versões originais de Poe).

Quando passo por Lisboa, sempre dou um pulo ao Martinho da Arcada, ao café Nicola e à Brasileira do Chiado, os bebedouros mais usuais do poeta. Havia um outro, o Palladium, na Avenida da Liberdade, mas este já não existe. Quando ando por lá, sempre ergo uma bagaceira em homenagem àquele que morreu de cirrose aos 47 anos. A Brasileira ostenta hoje uma estátua de Pessoa sentado, homenagem que o obscuro poeta, que só publicou um livrinho em vida, talvez jamais imaginasse. Ano passado, quando fui erguer meu bagacinho, uma meia dúzia de meninas lindas sufocavam o poeta, sentadas em seu colo. Por esta ele certamente tampouco imaginava.

Pessoa morreu pobre, bêbado e desconhecido. Quando digo bêbado, não vai nisto nada de pejorativo. Penso que seus poemas não existiriam sem aquela particular prosopopéia que só o álcool propicia. Cirrose foi o preço a pagar por seu gênio. Agradeçamos a seu fígado por seus poemas. Considero, inclusive, que Pessoa deve ser degustado com bom vinho.

Hoje, o poeta anônimo do Chiado é universalmente conhecido e sua memória rende bolsas, cátedras e prebendas a centenas de acadêmicos. Pesquisar Pessoa virou moda universitária. Em Paris, na Sorbonne Nouvelle, vi uma tese de Doctorat d’État – quatro volumes de 500 páginas cada um – que deve ter rendido bons anos a uma brasileira às margens do Sena. Quanto à pesquisa, nem os participantes da banca devem tê-la lido na íntegra.

Pessoa nada tem a ser estudado. Seus poemas existem para serem lidos, sentidos, absorvidos. Sua comunicação com o leitor é direta, dispensa intermediários. Como aliás todo grande poeta. Quem está faturando alto com a fortuna literária do poeta é Museu da Língua Portuguesa, de São Paulo, que exibe a partir de amanhã e até 30 de janeiro próximo a mostra “Fernando Pessoa, Plural Como o Universo".

Professores e até mesmo um cenógrafo propõem “uma exposição que busca mostrar toda a multiplicidade da obra de Pessoa, oferecendo ao visitante uma viagem sensorial pelo universo do poeta, permitindo que ele leia, veja, sinta e ouça a materialidade das palavras. São basicamente três módulos que, depois de percorridos, possibilitarão conhecer um artista que não apenas modificou as artes, mas a sociedade como um todo”.

“O resultado é deslumbrante, pois estimula todos os sentidos. Logo na entrada, por exemplo, o visitante se depara com seis cabines, cada uma identificada com os heterônimos de Pessoa, além de uma que carrega o próprio nome do poeta.

“Ao entrar em uma delas, basta movimentar o braço no ar que um sensor vai exibir um poema característico daquele heterônimo. (...) Também na entrada, o visitante perceberá que o azul predomina na coloração das paredes. "Isso porque a identidade visual é o mar que faz lembrar do azul da água e do céu", explica o cenógrafo Hélio Eichbauer. "É uma referência à época dos descobrimentos e das grandes conquistas de Portugal, inspirada no livro Mensagem”. É o que leio no Estadão de hoje.

Em determinado momento, “o visitante adentra um universo em que tanto pode permanecer em um espaço no qual vozes de atores declamam poemas até conhecer um banco de areia onde, com um sinal feito pela mão, um poema é projetado sobre aqueles grãos, como se escrito na praia. Depois, basta outro aceno com os dedos e os versos são apagados pela água do mar, que surge também projetada, produzindo um agradável efeito”.

Pintaram Pessoa de azul. O poeta maior português foi transformado em brinquedinho para adolescentes. Em vez de curtir sua poesia, você ergue um braço e surge um poema projetado na areia. Que tem isso a ver com Pessoa? Desde quando efeitos cenográficos podem traduzir poesia? Você vai lá, estala os dedos e lê um poema. Mas o poema fica lá. Você guarda na memória no máximo um verso ou dois. É como ver quadros em um museu. Os quadros permanecem nas paredes e você volta para casa apenas com uma vaga lembrança.

Não é melhor ter na biblioteca as poesias completas do poeta? Quando quero ler ou voltar a ler Pessoa, puxo o volume de minhas estantes e busco o poema que quero. Ou não busco e vou lendo ao azar. Pessoa permanece permanentemente comigo, ao sabor de meus desejos de lê-lo. Tais exposições só servem a quem tem preguiça de ler e aos amigos do Rei, que certamente faturam alto com tais instalações.

A grande poesia, que sempre foi gratuita, virou negócio e dos mais rentáveis.