¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, setembro 12, 2010
 
QUANDO ESMOLAR VIRA
SINÔNIMO DE TRABALHAR



Esta nossa imprensa fantástica e seus eufemismos maravilhosos. As pessoas desmoralizam as palavras que as definem e depois buscam outras para serem definidas. Aconteceu, por exemplo, com favela. À medida que a palavrinha passou a ser sinônima de tráfico e banditismo, os jornais recorreram à outra: comunidade. Ora, esta palavra é bastante ampla e eu não estaria sendo inadequado se falasse da comunidade de Higienópolis ou do Anália Franco. Mas não. Comunidade agora é a Heliópolis ou da Rocinha. Líder de favela soa mal. É expressão associada a drogas e criminalidade. Melhor líder da comunidade.

Minha faxineira, outro dia, me perguntava:
- É verdade que não se pode falar mais em favela? A professora de meu filho disse que agora é comunidade.

Claro que pode, Cristina. O que um professor diz não tem força de lei. E tentei explicar para ela em que consiste o tal de pensamento politicamente correto. Cristina é pessoa bastante atilada e logo percebeu que estavam mexendo com a linguagem.

Outro dia, vi uma manchete divina no Estadão:

67% DAS CRIANÇAS QUE TRABALHAM NA RUA TÊM TRANSTORNO

Fiquei intrigado. Moro há vinte anos em São Paulo e jamais vi crianças trabalhando na rua. Fui à notícia:

Além de sofrerem violência física em casa, 67% das crianças que trabalham nos semáforos das ruas de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, e dos Jardins, zona sul, apresentam transtornos emocionais. De 185 que trabalham nessas áreas, 124 têm problemas como hiperatividade, fobias e depressão. Entre as crianças analisadas, todas tinham nível de estresse superior aos limites normais.

Ah bom! O jornal falava das crianças que esmolam nas ruas. O diagnóstico resulta de uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), daí o politicamente correto. Falava dessas crianças que esperam os carros diante dos semáforos e fazem uma rápida apresentação de malabares. A propósito, amigos me contam que a prática está disseminada por todas as capitais da América Latina. É óbvio que as tais de criancinhas não tomaram, espontânea e universalmente, a decisão de serem malabaristas em todo um continente. Claro que existem ONGs internacionais que, em vez de as tirarem da miséria, as treinam para pedir esmolas.

Continua a notícia:

Entre as crianças emocionalmente abaladas, 27% têm diagnóstico fechado para distúrbios graves, como déficit de atenção e hiperatividade, transtorno de conduta (personalidade antissocial), depressão, fobias, enurese (urina durante o sono, ligada a questões emocionais) e transtorno de oposição e desafio (agressividade).

Nos depoimentos, as crianças falam em abusos sexuais (15,5% afirmaram terem sido molestadas nos semáforos), situações de violência (32,8% disseram ter sofrido espancamento) e abusos emocionais (31,6% sofrem xingamentos constantes de motoristas - o que traumatiza principalmente as mais novas).

"A pesquisa é representativa de toda a periferia da capital paulista. Retrata a situação de famílias desestruturadas, que têm renda miserável e não vêem outra opção a não ser trabalhar nas ruas", disse a coordenadora do estudo, Andrea Feijó de Mello, pesquisadora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) da Unifesp. "Há milhares de crianças assim, a maioria não atendida por programas assistenciais."


É óbvio que a miséria é estressante. Como também é óbvio que uma criança jogada nas ruas está sujeita a toda espécie de abusos. Aqui em São Paulo, há pessoas alugando filhos alheios para esmolar nas ruas. E certamente estão alugando também adultos. Frente a meu edifício, todos os dias vejo uma mulher jogada na calçada, que mal tem condições de manter-se em pé. Está quase morta, a coitada. Como ela chega ali? Caminhando é que não é. Alguém a deposita de manhã e vem buscá-la à noite.

Mas o Estadão – leia-se no fundo a Unifesp – fala em famílias que “não vêem outra opção a não ser trabalhar nas ruas”. Esmolar virou sinônimo de trabalhar.

Para quando a regulamentação do novo ofício?