¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, outubro 28, 2010
 
AS CEPAS SÃO MUITAS


Meu caro Carlos,

De fato, não sou varietal. Bebi em muitas fontes em minha vida e não estou acostumado com uma só. Tenho meus escritores diletos, mas nunca consegui concordar integralmente com nenhum deles. Sempre leio livros com caneta em punho. À menor discordância vai anotação à margem. Por essa razão, não gosto de livros emprestados. Não posso sublinhar. Tampouco gosto de emprestar livros: os meus estão sublinhados.

Em meus verdes anos, li uma História da Filosofia, de autor que não é muito bem visto pelos acadêmicos, Will Durant. É que acadêmicos em geral são metafísicos, e ianques são pragmáticos. Um Husserl ou Heidegger jamais seriam americanos. Bom, o Durant listava uma série de livros que deveriam ser lidos por todo homem medianamente culto. Os autores iam de Aristóteles e Platão a Montaigne e Descartes. Eu teria uns quinze anos e vivia ainda em Dom Pedrito, onde a livraria do seu Naziazeno só tinha livros didáticos. Fui a Santa Maria, onde a Globo tinha uma filial. E apresentei ao balconista minha listinha.

Para meu espanto, encontrei muita coisa. A Globo editava na época uma das coleções que teve enorme importância na formação dos brasileiros, a Biblioteca dos Séculos. Encontrei Aristóteles e Platão, Montaigne e Descartes, Agostinho e Diderot, e muitos outros. Faltou-me a Suma Teológica. Ainda bem. Na época, eu não imaginava que a Suma tinha dez tomos.

Voltei a Dom Pedrito com uma pesada carga nos ombros. De lápis em punho, fui derrubando os livros. Aristóteles não me tocou muito, mas os Diálogos receberam anotações de ponta a ponta. Platão escreve com clareza, nada a ver com as confusas considerações de Heidegger ou Sartre. Certamente aquelas considerações de um pivete de quinze anos eram descabidas, eu não tinha elementos para julgar a cultura da época. Mas me reservava o sagrado direito de discordar.

Hoje, mais adulto, vejo em Platão as raízes de Pol Pot. Mas na época Pol Pot ainda não mostrara ao que vinha. Nem por isso deixo de admirar o imenso esforço intelectual de Platão, feito em época em que apenas se começava a tatear o pensamento.

Descartes foi decepção total. O cogito me pareceu extremamente precário. Que história é essa de reduzir a certeza da existência à existência do pensamento? Um animal não pensa e no entanto existe. Diga-se o mesmo de uma pedra. Se eu afirmasse, lá em Dom Pedrito, que concluíra que existia porque pensava, seria tomado como doido varrido. Mas Descartes era francês. O mundo está cheio de bobagens que só convencem pessoas cultas.

Um proveito tive daquelas leituras. Ao cursar Filosofia, já tinha uma boa noção de Filosofia. Outras vantagens colaterais: abandonei o cristianismo que me fora enfiado a fórceps na cabeça. Não crer em Deus me foi extremamente salutar. Me senti dono de minha vida, em vez de instrumento de uma vontade alheia. Foi como se recém tivesse nascido. Quando fui assediado pelos comunistas, considerei o marxismo uma ideologia muito tosca. Desse sarampo não padeci.

A descoberta seguinte foi Nietzsche, o alemão que filosofava a golpes de martelo. Derrubou o que restava de minhas convicções. Foi com certeza um dos pensadores que mais me influenciou. Me senti renovado após sua leitura, como serpente que joga fora a pele antiga. Mas jamais consegui concordar com ele em um conceito que é chave em sua obra, o eterno retorno. Creio que na História não há retorno algum. E sempre desconfiei de sua idéia da morte de Deus. Era mais wishful thinking que outra coisa. Deus não morre. A estupidez humana é eterna.

Comecei com Ecce Homo, sua última obra antes de penetrar nas trevas. Lembro muito bem de sua leitura. O livro me foi trazido por um amigo um tanto maluco, mescla de físico, matemático e halterofilista. "Janer, tens de ler esse alemão". Comecei a leitura lá pelas dez da manhã. Perdi o almoço, não conseguia parar. Lá pelas tantas, diz Nietzsche: "Sei que minha leitura absorve e não pode ser interrompida". Seriam umas três ou quatro da tarde. Vontade de jogá-lo no lixo. É claro que não joguei.

Na universidade, quando cheguei a Heidegger e Sartre, já estava vacinado. Bocejei de tédio e cheguei a dormir nas aulas. Quando começava a roncar, minha companheira me cutucava para que acordasse. Só fui entender Sartre quando li as memórias de Simone. Nelas, la Beauvoir contava que um dia Sartre chegou todo contente e lhe disse: ontem escrevi um período que nem eu consegui entender.

Em suma, nunca aceitei pensador nenhum de mão beijada. Mesmo em relação aos que mais admiro, tenho minhas restrições. Jamais assumi uma filosofia, fosse qual fosse. Deve ser por isso, suponho, que sou considerado polêmico. Se alguém me pergunta qual é minha filosofia, respondo sem hesitar: nenhuma. Livre pensar é só pensar, dizia o Millôr.

Desisti da Filosofia já na metade do curso, quando um dos mais conceituados professores da universidade afirmou: o objeto da Filosofia hoje é buscar o objeto da Filosofia. Chega de masturbação, disse a meus botões. E me voltei para a literatura. Se a Filosofia discutia o homem abstrato, com H maiúsculo, na literatura eu encontrava os homenzinhos concretos do dia-a-dia, aqueles com H minúsculo.

Sempre me considerei um pouco adiante dos meus. Em minha juventude, escandalizei não pouca gente, seja pelo que pensava, seja por meu comportamento. Os tempos eram outros, moralistas. Hoje tudo mudou e ninguém consegue mais escandalizar ninguém. Saudades dos 70.

Dificilmente algo me choca. Mas um companheiro de bar conseguiu o milagre. “Te cuida, Janer, não há vantagem alguma em estar à frente de sua época”. Era um publicitário. Ele precisava estar dentro de sua época, para bem exercer seu ofício. O que mais me chocou foi ouvir aquela insanidade de pessoa que eu tinha por culta.

E assim tenho vivido, meu caro Carlos, bebendo ao sabor dos ventos. As cepas são muitas. Não vejo porque beber de uma só.