¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 30, 2010
 
CONSELHO CENSURA LOBATO (II)


Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da atitude de Jim Roy. Aproximam-se as eleições. Que, no ano da graça de 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam nosso mundo de hoje, 1998.

É esta possibilidade de “radio -transportar” os dados que opera uma reviravolta nas eleições de 2.228, nos Estados Unidos. Jim Roy vai explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.


Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado, surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas dos dois monstros – a ebriedade negra e o orgulho branco –, a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade.

Na época, John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já havia resolvido o problema da pigmentação.

Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea. Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.

Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de “a segunda camuflagem do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.

Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de “um homem branco natural”. Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota.

– Tua raça morreu, Jim...

Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos.

A vida da América voltou à normalidade. Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor. Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana...

Confesso que ainda não entendi como os ditos movimentos negros ainda não pediram a proibição de O Presidente Negro. Pois nesta obra-prima – e premonitória – de Lobato, o negro não fica muito bem fotografado. Os institutos de desencarapinhamento são uma ironia um tanto perversa. O negro branqueado é uma barata descascada. O final da ficção não é nada encorajador: a raça negra se extingue. Vai ver que os militantes da negritude ainda não a leram.

No ritmo em que vamos, qualquer dia será censurado O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. Ou o Chapadão do Bugre, de Mário Palmério. Nestes dias de racismo índio e negro, crioulo e bugre viraram palavrões.