¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, dezembro 03, 2010
 
PERGUNTINHA


Em abril de 1964 Sartre renegou sua obra de ficção, chegando a dizer em uma reportagem que um romance como A Náusea não tem sentido algum quando em alguma parte do mundo há uma criança morrendo de fome. Embora tenha admitido que segue pensando que os homens são animais sinistros, defendeu a idéia de que seus males metafísicos devem ser relegados a um segundo lugar, como um luxo e uma traição.

Em Três Aproximações à Literatura de Nosso Tempo – que tive a honra de traduzir – Ernesto Sábato protestou: “Estas declarações desencadearam uma polêmica que dura até hoje. Apesar de compartilhar sua preocupação com a miséria e a injustiça social, me nego absolutamente a aceitar esta afirmação peremptória que, ao ser aplicada coerentemente, não só invalidaria um romance metafísico como também toda a literatura e mesmo a arte em sua integridade. Já que nem a música de Bach, nem a pintura de Van Gogh, nem a poesia de Rilke são úteis para salvar a vida de uma única criatura abandonada. A arte tem outras possibilidades e outras funções”.

O manifesto sartriano tem uma versão nova em nossos dias. O escritor Paulo Lins, ex-favelado e autor do romance Cidade de Deus, confortavelmente sentado em um sofá de um luxuoso hotel em Guadalajara, México, reflete sobre os avatares de sua ascensão social:

“No início, foi muito difícil. Sentia culpa burguesa e pensava: eu não posso ficar em lugares tão luxuosos, porque há crianças passando fome, sem escola, na América do Sul e também aqui no México. Agora, me acostumei, mas continuo me sentindo mal porque o bom não é para todos. Por isso há guerra. Só há guerra porque há fome".

As famosas criancinhas! É o que dá quando um analfabeto é promovido a intelectual. Passa a deitar falação sobre o homem e o mundo e acaba proferindo solenes bobagens. Nações ricas declararam guerra a nações também ricas e obviamente não eram movidas pela fome. Seja como for, nem Sartre deixou de fazer literatura, nem Paulo Lins deixará de freqüentar hotéis de luxo. Bem-estar vicia. Culpa burguesa é como gripe, passa ligeirinho.

O escritor carioca aproveita sua tribuna em Guadalajara para fazer a defesa da bandidagem: "Não era necessário matar 37 pessoas. A polícia brasileira tem o hábito, a vocação, de matar gente pobre. Ela faz isso há muitos anos, sobretudo negros".

Como se traficante fosse gente pobre. Como se um policial que sobe um morro para enfrentar traficantes de metralhadora em punho tivesse de se deixar matar, para não matar os coitadinhos. Em verdade, a polícia matou muito poucos. Mais profilático seria se matasse mais.

O festival de bobagens não pára aí: “Muito mais que o narcotráfico, esta violência está ligada ao racismo, ao abandono, à discriminação, à desigualdade social e, acima de tudo, à corrupção, que permite a chegada de armas da Europa".

Ora, que me conste não são os europeus que fabricam Uzis e Kalashnikovs. Ligar a droga ao racismo é um despautério, afinal não é só negro que trafica. Tampouco é a desigualdade social ou discriminação que provocam a violência. Violência existe em todos os estratos da sociedade, mesmo onde não há desigualdade nem discriminação. Ou Paulo Lins pretenderá que eram discriminados os bicheiros que patrocinavam escolas de sambas e eram recebidos com todas as honras nos camarotes oficiais dessas escolas?

Como bobagem puxa bobagem, o escritor continua: “É hora de capturar esses bandidos. A população apóia a invasão. Se os criminosos respeitassem a população como antes, a população não a apoiaria”. Essa é ótima. Criminosos respeitando a população merecem todo respeito. Mas criminosos que respeitam a população serão criminosos? Pelo jeito, não. Provavelmente, são beneméritos fautores de justiça social.

As operações policial-militares no Rio não passam de uma farsa, incensada pela imprensa como um gesto de salvação nacional. Foram tomadas duas favelas no Rio. Ora, no Rio há 1006 favelas. Faltam só 1004. Segundo reportagem da Folha, enquanto as Forças Armadas controlam o Complexo do Alemão, na Rocinha o tráfico rola solto e os traficantes desfilam serenamente de fuzis em punho. Isso sem falar nas favelas de São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis. O tráfico será controlado – se for, o que é improvável – só no Rio? A que se deve tal privilégio? À Copa de 2014?

A polícia está atrás dos agentes do tráfico. Os financiadores permanecem – e permanecerão – impunes. O traficante apenas atende a uma demanda. Quem demanda é o consumidor. Ora, consumidor algum irá para a cadeia. Também, pudera! Meio Rio de Janeiro iria em cana.

Fica a perguntinha: com a eventual neutralização dos atuais traficantes, quem irá abastecer o generoso mercado carioca de drogados?