¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 05, 2010
 
UMA FILOSOFIA DOS
SENTIMENTOS DE
INFERIORIDADE*

Ernesto Sábato



Em um ensaio publicado em 1953, afirmei que o pensamento e a literatura de Sartre talvez derivassem de sua feiúra. A autobiografia, publicada muitos anos depois, confirma aquela afirmação. Foi uma criança terrivelmente feia, ao ponto de descrever-se a si mesmo como um "sapo" naquelas páginas sofridas. E mesmo imaginando tudo que nesta crença pode existir de exageração masoquista, esta era sua crença; e nestes casos, como se sabe, basta a convicção íntima que tem aquele que sofre.

Ignoro se escreveu uma psicologia dos sistemas filosóficos. Mas, no que diz respeito a Sartre, me parece que o olhar dos outros é o fato do qual não só é possível derivar sua obra de ficção como também seu pensamento. "Tenho vergonha, portanto existo", é o aforismo que sintetiza sua obras. "Os outros" nos contemplam, nos observam, nos dominam com seu olhar: não é esta a concepção de um homem obcecado com seu corpo, angustiado por sentimentos de inferioridade? Em O Muro, Eróstrato anseia por ver os homens de cima, onipotente; Loulou quer ser invisível, observar sua amiga sem que ela possa vê-la; Lucien se compraz em imaginar-se invisível, e um de seus prazeres é espiar pelo buraco de uma fechadura. Em Os Caminhos da Liberdade, Daniel imagina o inferno como um olhar que há de penetrá-lo todo. E em Huis Clos o inferno é simplesmente o olhar de Inés, um olhar que, para o cúmulo, será sofrido por toda a eternidade, em um quarto fechado onde não possíveis nem o sonho nem o esquecimento.

Sim, como dizia Ibsen, os personagens saem do coração do autor. Como não supor que este obsessivo sentimento é a projeção do próprio e obsessivo sentimento que imaginou estas ficções? Isto é corroborado por L'Être et le Néant, em cujas páginas aparece significativamente reiterado o tema da invisibilidade e do sobrevôo. Como suas próprias projeções, Sartre padece do que poderia chamar-se de "complexo de Acteón". E se levarmos em conta a importância que tem a liberdade de escolha em sua filosofia, devemos considerar como puro acaso que sua própria mulher se chame Simone de Beauvoir?

Sendo nosso corpo o que provoca e permite o olhar dos demais, o corpo tem em Sartre uma importância metafísica que não havia tido em nenhum sistema precedente. Em sua obra de ficção, o que diz respeito ao corpo e suas imundícies ocupa um lugar tão preponderante que sua narrativa mais profunda se intitula A Náusea. Todos seus personagens vivem obcecados com a carne. "Porque temos um corpo?", perguntam-se Loulou e Lucien; Ibbieta sentia a "a impressão de estar para sempre unida a um enorme verme"; Mathieu sente seu corpo como "uma grande imundície".

Naquele ensaio de 1953 pensei poder estabelecer um vínculo entre Sartre e Sócrates, um vínculo revelador a respeito de seu pensamento e de seu sentido da existência. Os dois são feios, os dois odeiam o corpo, os dois desejam uma ordem espiritual e perfeita. Sentem repugnância pelo mole e pelo viscoso, que é a forma mais grosseiramente humana do homem e do contingente, já que nem sequer possui essa pureza do mineral ou do cristal. Deve espantar que Sócrates tenha inventado a doutrina platônica? As criações na arte e no pensamento são em geral como os sonhos: atos antagônicos. E o pensamento platônico não poderia ser inventado por raça de arcanjos incorpóreos, mas por homens apaixonados como os gregos, e em particular por um indivíduo que, como afirmou um estrangeiro ao conhecê-lo, tinha "todos os vícios pintados em seu rosto".

Para este filósofo, como mais de vinte séculos mais tarde ocorrerá com Sartre, a encarnação é a queda, o mal original. E tanto porque a visão é o sentido mais sutil, o mais próximo do espírito puro, como pelo perverso poder que exerce sobre eles, os dois filósofos darão a este sentido prioridade filosófica. E assim, desde aquele grego inimigo do corpóreo, a filosofia se tornará pura contemplação, desdenhando a carne e o sangue.. Será preciso esperar até o existencialismo para que estes atributos do homem concreto entrem na meditação filosófica, embora seja na forma contraditória de Sartre, que, se conscientemente foi um existencialista, psicanaliticamente foi sempre um platônico, um racionalista.

Mesmo assim é revelador que Sartre tenha tentado provar alguma de suas idéias na figura de Baudelaire, personalidade que o subjuga ao ponto de inspirar-lhe duas de suas características: Daniel, o jovem Philippe. Se percorrermos os escritos autobiográficos do poeta, encontraremos, além do propósito de escrever um romance metafísico, outros traços que prefiguram Sartre: o ódio à natureza viva, o culto à esterilidade, a obsessão por um universo gelado ou cristalino, o platonismo patológico. Em Baudelaire há o mesmo desejo de pureza que em muitos outros pecadores da carne que se sentem culpados, o mesmo ódio diurno ao carnal que é o exato reverso de sua debilidade noturna. E como a mulher é o terrestre por excelência, o úmido e sujo por antonomásia, o platonismo aparece sempre vinculado a uma fobia pelo feminino (do mesmo modo que o existencialismo, e em geral o romantismo, é a revolta dos elementos femininos da humanidade.

Como o próprio Baudelaire, Roquentin sente asco ante a contingência do mundo orgânico e anseia por um universo límpido, o universo que de modo paradigmático é o da música e da geometria. Almeja o negro que em meio à imperfeição e à fealdade, no infecto quarto de arranha-céus em Nova York "se salva" criando uma melodia que pertencerá para sempre ao orbe eterno e absoluto. Parece-me igualmente digno de ser pensado que Pascal, antecessor de Sartre em sua atitude jansenista, talvez confuso adolescente em busca da pureza, encontrará um {transitório} paraíso nas matemáticas.

O Pascal maduro dirá depois que somos galés acorrentados à mesma galera, à espera da morte. Se desta idéia se retira a esperança em Deus, o que resta se parece bastante com o pensamento de Sartre. Em suma, com o sentimento de inferioridade dos feios, Sartre concede ao olhar dos outros um poder quase sobrenatural de petrificar-nos e dominar-nos; porque o mundo das coisas é o mundo do determinismo e coisificar um homem é arrebatar-lhe sua liberdade. O ser humano resulta assim em uma ambígua e dramática luta entre a determinação do universo físico e a liberdade de consciência.

Deste fato básico derivam uma série de conseqüências que manifestam o valor ontológico da vergonha, o pudor, as vestes e a simulação. Sinto vergonha porque me observam e isso prova não só minha própria existência como a existência de outros seres como eu. A convivência resulta desta forma em uma luta mortal entre consciências igualmente livres, cada uma delas tentando petrificar a adversária. Ao vestir-nos, ao dissimular, ao mascarar-nos, tentamos despistar o inimigo. A escravidão alcança sua máxima e mais degradante culminância no ato sexual, onde o corpo nu está exposto sem defesa alguma e no qual a palavra "posse" adquire um sentido filosófico, mais além do puramente físico.

* Três Aproximações à Literatura de Nosso Tempo (tradução de Janer Cristaldo)