¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, fevereiro 19, 2011
 
VOLTANDO ÀS ÓPERAS


Gustavo Rodarte de Queiroz aventa um argumento um pouco insólito para justificar seu gosto pelas óperas:

Caro Janer:

obrigado pela resposta e pelo tópico no blog. Gostei também da polêmica gerada. Pelo menos nesta polêmica apareceram algumas informações e indicações interessantes. (...)

Para finalizar direi algo que talvez não o agrade. O meu interesse por óperas está sendo despertado mais pela atitude de seus apreciadores do que pela ópera em si. Toda forma de arte onde a platéia tem que ficar calada e sem se manifestar me desperta interesse. Essa imobilidade do público demonstra que há algo para ser apreciado e não apenas macaqueado. Uma audiência atenta e comportada demonstra que o que está sendo exibido exige atenção e imersão para ser compreendido e desfrutado. Claro que há exceções, mas as óperas já estão por aí faz algum tempo. Devem ser a regra. Um abraço.


Bom, Gustavo, confesso ser a primeira vez que ouço tal argumentação. Me parece muito pertinente, embora me conste que, nos primórdios do gênero, era bastante comum a platéia vaiar regente e cantores e mesmo atirar-lhes ovos ou tomates. Era quando a ópera era de fato popular. Mais tarde elitizou-se e o público se tornou mais cordato.

Totalmente de acordo com suas razões. Quando vejo multidões cruzando os braços acima da cabeça em shows de música, não consigo deixar de lembrar as turbas que saudavam Hitler com o braço erguido. O fenômeno de massificação é o mesmo.

De minha parte, não suporto espetáculo algum que atraia multidões. A ópera caiu um pouco em meu conceito quando os ditos três tenores começaram a cantar em estádios. Não só em meu conceito, como no de todos aqueles que cultivam o gênero. Ópera não é para estádios. Estádio é para futebol, para a satisfação dos baixos instintos do povão. Ópera é camerística, exige ambiente e acústica especiais. O público de ópera aplaude com a efusão que os intérpretes merecem. Mas ninguém repete os gestos simiescos de um público de rock ou coisa que o valha.

Rodrigo Figueiredo me escreve sobre as peripécias da ópera no Brasil:

Prezado Janer,

como você é um apreciador do gênero, talvez queira investigar e comentar a verdadeira vergonha que se tornou produção de ópera no Brasil nos dias de hoje. Ópera é uma forma artística que traduz diretamente, pela sua complexidade produtiva, o grau de refinamento cultural, assim como a preocupação com qualidade artística, de uma sociedade. Todas grandes cidades do mundo desenvolvido têm casas e temporadas de ópera ativas. Quanto mais sofisticada e rica a cidade, melhor é a ópera que se produz nela. Berlim tem três casas de óperas com produções quase que diárias durante a temporada. Tóquio tem produções fantásticas, mesmo o Japão não sendo um grande produtor de cantores. Ora, estamos no final do verão no Brasil e, a essa altura, não há absolutamente nenhuma programação nos websites dos dois supostos teatros de ópera das duas maiores cidades do país. Em cidades como Nova Iorque, Londres ou Berlim, a temporada já teria sido publicada no inverno anterior e as assinaturas mais favoráveis em preço já estariam praticamente esgotadas.

Não é preciso se estender tanto na comparação. Basta olhar o Colón de Buenos Aires e a ópera em Santiago. Pequenas temporadas, já que o Colón não tem mais os recursos que tinha, mas perfeitamente decentes, com óperas siginificativas do repertório e sobretudo, elencos de boa qualidade. Não os mais caros, mas hoje em dia tem inúmeros jovens de grande talento começando carreira com cachês não tão altos ainda. Não é possível que em São Paulo, a maior e mais rica cidade da América Latina, não se produza ópera de razoavelmente boa qualidade. Por que não fazer parcerias com o Colón e Santiago, aproveitando a ida de cantores do hemisfério norte? Certamente haverá cantores no Brasil que também podem desempenhar bem. O argumento de que não há público é completamente falso. Em SP se pagou no ano passado $300 por 2 horinhas de Yo-Yo Ma e ambos os recitais estavam esgotados meses antes. Não há público então para ópera a $100-$200? É claro que há, desde que hajam produções interessantes com elencos razoáveis.


Público há, Rodrigo, particularmente nas grandes cidades. Mas não sei se sustentaria um movimento operístico intenso. A ópera nasceu na Europa e faz parte da cultura européia. No Brasil, é produto de importação.

Há dois anos, fui ver a Cavalleria Rusticana, no Theatro São Pedro, aqui em São Paulo. No terceiro dia de apresentações, a sala ainda estava lotada. Mas há um certo descaso oficial em relação à ópera. Isso sem falar nos melindres das divas. O Neschling, por exemplo, ao sentir-se desempregado, criou a Companhia Brasileira de Ópera para, após um ano, jogá-la ao relento. Foi para a Europa. Segundo suas declarações, com passagem só de ida.

Ou seja, é dinheiro e trabalho jogados ao lixo. Tenho uma amiga harpista que desistiu de tocar na Osesp porque a condição era que emprestasse sua harpa à orquestra. Ora, ninguém empresta uma harpa a uma orquestra. Enquanto isso, havia duas harpas encalhadas por questões burocráticas na Alfândega. E por aí vai.

Quem quiser fazer carreira aqui deve buscar a Europa, Canadá, Estados Unidos. À propósito, tive a honra de almoçar com a Laura de Souza, soprano que fez a Santuzza, na Cavalleria. (Eu imaginava que uma soprano falasse sempre em trinados, como a Rainha da Noite. Para meu espanto, falava como a gente). Eu a conheci quando menina, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ela fez carreira, mas teve de sair. Estudou em Hamburgo, Paris e Munique. Integrou o elenco estável do Staatstheater Kassel e do Deutsches Nationaltheater Weimar. Apresentou-se em diversas salas, na Dinamarca, Alemanha, Bielorússia, Estados Unidos. Uma carreira assim ela não faria estando no Brasil.

Isso sem falar que até ópera envolve corrupção no Brasil. Há uns bons dez anos ou talvez mais, o Teatro Municipal cá de São Paulo apresentou uma Traviata. Minha mulher era a primeiríssima da fila, no dia em que começaram a vender os ingressos. Só conseguiu o lugar do ceguinho, aquele lá em cima, nos poleiros, de onde não se vê nada. Metade dos ingressos havia sido distribuídos pela prefeitura àquelas gentes que só vão a óperas para exibir vestidos e fingir que gostam de ópera. A outra metade, aos cambistas. Quando cheguei ao teatro, cambistas me ofereciam na rua, pelo dobro ou triplo do preço, o lugar que minha mulher fora honestamente buscar na bilheteria.

Desisti da ópera. Queixar-me a quem? A polícia estava frente ao teatro. Para proteger os cambistas. Não há refinamento cultural no Brasil, esta é nossa circunstância. Pindorama está mais para Big Brother, Xuxa, Gugu Liberato, Lula, Sílvio Santos. Ópera mesmo, só em casa. Ou na Europa.