¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 25, 2011
 
SÁBATO, QUASE UM SÉCULO


Tivesse segurado mais algumas semanas, Ernesto Sábato teria fechado ontem um século redondo. Nasceu em 24 de junho de 1911, solstício de inverno, e muito escreveu sobre o significado pagão da data. Escolheu uma péssima data para morrer. Ficou espremido entre o casamento do principito inglês e a beatificação do João Polaco. No dia seguinte, as páginas foram do bin Laden. Fosse numa semana mais tranqüila, sua morte teria mais espaço. Acontece. Aldous Huxley teve o azar de morrer no mesmo dia em que John Kennedy foi assassinado.

Há quem situe Jorge Luis Borges como o escritor maior da Argentina. Cá entre nós, eu citaria Hernández. Creio que o grande legado argentino à literatura universal é o Martín Fierro. De qualquer forma, antes de Borges eu situaria Sábato. Borges de certa forma desdenha a Argentina e refugia-se no mito e na metafísica. Os contos de El Aleph – a meu ver seu livro mais importante – situam-se em um topos uranos irreal. Já Sábato, tanto em Sobre Heroes y Tumbas como em Abbadón, el Exterminador, mergulha na história argentina. A Borges, a história dos homens pouco lhe diz.

Em Abbadón, Sábato cometeu um pecado mortal, que seus leitores mais exigentes não perdoam, o endeusamento do Che Guevara. Não sei o que o levou a isso. Falta de informação não há de ter sido. Até eu caí nesse conto. Não que tivesse maiores simpatias pelo Che. Em minha tese, considerei, talvez deslumbrado com Sábato, que um escritor tinha todo direito em transformar em personagem de ficção um personagem histórico. Mais tarde cheguei à conclusão que não tem. Não se pode pintar com cores lindas um celerado. Pior ainda, a soldo de Moscou, da utopia mais assassina do século passado.

Hoje, além da biografia romanceada do Che, vejo mais dois pecados em Sábato. Primeiramente, aquele endeusamento da literatura, que se convencionou chamar de clericatura do escritor. Ele enaltece demais o ficcionista, “o homem que sonha pela comunidade”. Ora, o escritor não está com essa bola toda, particularmente numa época em que as grandes obras se acumulam a ponto de tornarem-se triviais e os grandes escritores se dão cotovelaços nas enciclopédias. Pessoa entendeu bem isto: “A avassaladora produção literária tornará a seleção igualmente avassaladora, pela reação. A verdadeira produção abundante de livros bem escritos fará com que muitos livros antigos pareçam menos bons do que quando se destacam de um pano de fundo de nada. (...) A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos; os mortos são mais numerosos”.

De minha parte, há mais de vinte anos – talvez trinta – não leio ficções. Histórias inventadas me cansam. Claro que sempre volto com prazer a um Cervantes, Swift, Orwell. Literatura contemporânea não leio mais. É como se eu estivesse ouvindo as conversas de meu boteco. Lembro que, em Buenos Aires, quando me encontrei com sua obra, fiquei fascinado com Heroes e particularmente com o Informe sobre ciegos. Achei que tinha encontrado a verdadeira Buenos Aires, a noturna, que não era aquela diurna que meus olhos viam. Besteira. A verdadeira Buenos Aires era aquela que me cercava. A criada por Sábato era um conto de fadas para adultos. Este é o perigo da arte, fazer com tomemos o irreal pelo real. Volto ainda a Pessoa: “o romance é um conto de fadas de quem não tem imaginação”.

Outro pecado, a meu ver, é aquele ar de sofrimento e desesperança com a humanidade de seus últimos livros. Sábato parecia a própria encarnação da tragédia, um Atlas suportando o tempo todo o peso do mundo. Não sei se fazia aquilo por charme ou se sentia aquilo mesmo. Não que eu deposite grandes esperanças na humanidade. Mas “que el mundo fué y será una porqueria” era coisa que ele devia ter descoberto desde jovem. Também demonstrou, na velhice, uma certa aproximação com deus que não fecha com uma inteligência lúcida. Numa de suas últimas confissões, ele conta que certo dia entrou em uma igreja e comungou. Ora, isto não condiz com o Sábato que um dia admiramos.

Quando veio a São Paulo, em 94, Sábato foi trazido por uma promoter analfabeta que quase o comprometeu ante seus leitores. Seria patrocinado por empresas como Odebrecht, OAS e corrupções do gênero. Ele consultou-me sobre essas empresas. Disse-lhe que um homem de sua estatura moral não podia vir ao Brasil patrocinado por empresas que compravam até o Congresso. A promoter ficou fula da vida. Pediu que eu não telefonasse mais ao Sábato. Vais desculpar, querida, mas no que depender de mim, ele não vem. Sábato sentiu a gravidade da coisa e fez com que ela conseguisse patrocinadores mais neutros, tipo Visa, Mastercard ou algo do gênero.

Pior ainda: a moça planejou um encontro dele com o Evaristo Arns, que chegou a ser anunciado no Estadão. Se o Sábato havia subscrito o Nunca Más, deveria encontrar-se com o mentor do Tortura, Nunca Mais. Telefonei na hora. Não faça isso, Sábato, esse fulano é fanzoca do Fidel e da ditadura cubana. Sábato recuou e Sua Eminência não conseguiu exercer seu narcisismo.

Certamente em decorrência de sua juventude comunista, Sábato não conseguia fugir de uma certa atmosfera de guerra fria, sempre manifesta tanto em seus romances como em seus ensaios. Quando foi entrevistado no Roda Viva, na saída Heródoto Barbeiro disse-me: “A impressão que tenho é que ele há muito repete a mesma coisa”. Tinha razão. Sábato estabeleceu residência em meados do século passado e sua saga parece ter perdido o sentido após a queda do Muro.

De qualquer forma, um homem que viveu intensamente sua época. Para mim, foi importante tê-lo conhecido e traduzi sua obra com sumo prazer. Em homenagem ao século que quase completou, reproduzo abaixo o primeiro capítulo de seus diálogos com Jorge Luís Borges, mediados pelo jornalista Orlando Barone, nos cafés de Buenos Aires.