¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, julho 31, 2011
 
ERVA CONTRA ERVA


São Paulo, que é conhecida como a capital do medo e da gastronomia, ainda vai se tornar a capital das marchas. Um dia marcham os evangélicos por Jesus e contra os gays, outro dia marcham gays e simpatizantes com Jesus e contra a homofobia. Aliás, na última parada gay, o Cristo foi entronizado como o patrono da bicharada. Já os evangélicos brandem o velho Jeová, para quem bicha só matando. Claro que cada marcha quer o maior Ibope. A Marcha para Jesus, na zona norte da cidade, segundo seus organizadores teria reunido cinco milhões de marchantes. Para a polícia foi apenas um milhão. A Parada Gay, na Paulista, teria reunido quatro milhões. Quando se sabe que a avenida comporta apenas 500 mil pessoas.

Já houve também a marcha pela liberação da maconha, marcha redundante, já que a maconha desde há muito está liberada. Que se libere então o tráfico, este sim proibido. Proibido mas tolerado. Em fins de semana, é mais fácil encontrar cannabis do que uma aspirina. Mas esta bandeira, que seria a bandeira coerente, ninguém ousa empunhar. Para começar, os traficantes não a endossam. A tal de marcha da maconha reuniu alguns maconheiros em algumas capitais do país e só serviu – como só servem as marchas – para atrapalhar o tráfego.

Aqui, ao lado de onde moro, já houve até marcha contra moradores do bairro que eram contra a construção de uma estação de metrô na Angélica. Era uma marcha contra os contra. Seus organizadores prometiam mais de 50 mil marchantes. Foram 700, segundo a polícia. Eu, que por acaso passei pela manifestação, quando se reunia em frente ao shopping Higienópolis, diria que não foram mais de 300.

Ontem, na avenida dileta dos marchantes, mais uma marcha saiu em marcha, organizada pelo Movimento Nacional Contra a Liberação da Maconha, que pretendia reunir 100 mil pessoas na Paulista. A bandeira parece não ser muito popular. Reuniu apenas 800 gatos pingados. O líder da manifestação, autodenominado xamã Gideon dos Lakotas, propunha a seguinte pergunta: "Você daria maconha ao seu filho?"

Pergunta besta, afinal são os pais que dão maconha aos filhos. O usuário de maconha é geralmente jovem e raramente tem independência econômica. A erva é normalmente paga com a mesada. Algum pai ignora que quando o filho vai a uma rave ou show de rock está na verdade indo a um banquete de drogas? Ingenuidade tem limite.

O líder da marcha contra a maconha pertence à Família Espiritual do Céu Nossa Senhora da Conceição. Segundo a entidade – leio nos jornais - "o povo brasileiro sabe que a maconha não deve ser liberada". O movimento, diz a carta, surgiu por iniciativa de um grupo de amigos e começou a ser divulgado em escolas, universidades, movimentos sociais, ONGs, além "de irmãos de fé das mais diferentes crenças e religiões".

De acordo com os organizadores, Gideon é um escritor que dá cursos e ensinamentos religiosos. O grupo, criado em Minas Gerais, se autodenomina uma obra de caridade sem fins lucrativos, dedicada ao aperfeiçoamento espiritual do ser humano. "Não queremos uma nação de drogados e viciados", diz a carta do movimento.

Vamos ao que os jornais não contam. Que é um céu? Céus é como se denominam os templos dessa seita ridícula que surgiu no Brasil, o Santo Daime. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se.

Assumiu inclusive elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó.

Já tem até budista e hare krishna tomando chá de cipó. Para a monja tibetana Ani Sherab, o chá "oferece mais clareza para expressar e reconhecer a verdade. Com o daime, recebo muitas bênçãos e ensinamentos dos budas". Líderes das comunidade hare krishna desaprovam o daime, mas não negam que alguns membros consumam o chá. Para o professor de português Pandita, 51, Krishna se revela de formas diferentes. "O daime pode ser uma delas".

Nas cerimônias – relatava a Folha de São Paulo em 2007 – manifesta-se a salada toda. O altar é de Ganesh, deus hindu do sucesso. O som oriental de cítaras é substituído por maracás indígenas e mantras em sânscrito se sucedem a hinos em português. Não faltam sequer as entidades de umbanda. Segundo a mãe-de-santo Maria Natalina, "a ayahuasca proporciona sensibilidade maior. É um instrumento de contato superior com os orixás".

Na zona sul de São Paulo – segundo a reportagem – no Centro Espírita Sete Pedreiras, a miscigenação de crenças se repete, com orixás da umbanda, santos católicos e retratos de daimistas posicionados em lugares estratégicos do terreiro. A fusão resulta na umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira. Para o antropólogo Edward MacRae, da Universidade Federal da Bahia, assim como outras religiões o Santo Daime também tem a propriedade de aglutinar elementos de outras crenças, como umbanda, traços indígenas, cristãos, afro e esotéricos, ocidentais ou orientais. Mais um pouco de criatividade vocabular e teremos o catodaime, o krishnadaime, o budidaime. O fenômeno já existe, só falta batizá-lo.

São estes sorvedores de xaropes eméticos que promovem a tal de marcha contra a maconha. No site oficial do Céu de Nossa Senhora da Conceição, você encontra o “patriarca Gideon e a matriarca Genecilda, fundadores desta obra na terra”, encimados pela imagem do Cristo, “mestre desta obra”. O site traz a história do xamã e sua batalha pela defesa da sagrada ayahuasca.

Cristo é polivalente. De Deus encarnado, virou patrono das bichas e garoto-propaganda de um caldo enauseante que provoca vômitos e diarréias.

sábado, julho 30, 2011
 
Conto antigo:
MANHÃ DE DOMINGO *



Espiou o céu por uma fresta da quincha. Noite limpa, bueno há de ser o domingo. Não esperou pelos galos. Levantou de manso pra não acordar Joana. Vestiu-se em silêncio. Na cozinha, deu uma enxaguada na boca, apanhou baldes e canecos e se dirigiu à mangueira. As vacas, habituadas ao apojo depois do raiar do sol, protestavam com coices e mugidos. Meio balde de leite se misturou à terra. Juvêncio retribuiu o coice da oveira e sampou-lhe o balde pelas guampas. Não seria uma vaca quem lhe estragaria o domingo. Por segurança, maneou as outras. Até os guaxos se mostravam baldosos. Azar, não beberiam o apojo. Nas pedras da cerca assomou Negrinho, o mais madrugador: “Paiê, quero com bastante escuma!” Ao soltar as vacas sentiu-se cristeado, os terneiros mamavam o leite escondido.

Na cozinha, Joana quase sem fôlego assoprava na boca do fogão. A madeira verde resistia ao fogo, as lágrimas caíam pelas bochechas infladas, mentalmente maldizia a gurizada que não havia juntado graveto seco. Quando Juvêncio entrou, derramando leite do balde e canecos, Negrinho ao lado com um bigode branco de espuma, Joana já cuspia fora o primeiro mate.

- Que é que te deu na telha, levantar a esta hora?

Não há vivente que não perca o respeito pelo outro com a intimidade. Até cachorro estranho, quanto mais mulher. Cachorro começa rosnando, é só passar a mão na nuca e já vem lambendo as botas. Mulher também, só que com uma diferença. Em vez de fazer carinho, encrenca. Quando cortejava Joana e pernoitava na casa do sogro, ela surgia acanhada na cozinha, mas cumprimentava com um bom dia mais fresco que ar da manhã. Casou, taí! Já acorda em pé de guerra. Lei da vida. Vai olhando e aprendendo, guri. Todo índio tem sua hora de bobeira. É justo nessa que elas prendem o maula.

Respondeu com um vago “não amola, mulher! Tava sem sono e levantei”. Em verdade, não era bem isso. Chegara tarde da noite, banho de gado em estância grande rebenta qualquer cristão, até os ovelheiros haviam deitado cedo. Caíra na cama sem dar nem ao menos uma areada no cascão dos pés. Acordara mais cedo do que de costume. Nem havia esfregado os olhos, decidira uma troteada até o Aliás Bendigo. Já estava em tempo de pagar os fiados no bolicho. Como Aliás nunca tinha troco, aceitaria umas que outras por câmbio.

Qual seria o nome de pia do Aliás? Havia chegado há muito naqueles pagos, se alguma vez disse o nome a alguém, foi logo esquecido. Com ar de granfa, insistindo nos erres e esses de cada palavra, mal abria a boca dizia “aliás, bem digo!”, daí o nome. Tinha muita plata escondida, juntada não se sabia como. No lugarejo, dinheiro só tinham os estancieiros, e esses jamais pisavam em bolicho. Havia quem falasse em tropeadas noturnas, contrabandos, mas ninguém havia visto nada, só ouvira dizer. E diz-que-diz-que é ocupação de mulher em tarde de mate doce. Falta de assunto. Aliás mourejava de sol a sol, ganhava no arroz e na canha, carneava e distribuía a carne, levava coima do carteado e do osso, era justo que ganhasse o seu. Viver todos vivem, saber viver é que é!

O baio, flete de domingo, ficara preso durante a noite pra adelgaçar. Cavalo no trabalho vira matungo. O baio ficava solto a semana toda, tinha trote faceiro e nervoso. Mesmo velho, conservava o garbo da época em que conhecera Joana. Não fosse o baio, talvez não ganhasse a mulher. Bem aperado, fazia bela figura. O pelegão vermelho já estava desbotado e meio rasgado, as rédeas brancas de brancas só tinham o nome. Nunca as usava em serviço, mas é assim mesmo, índio que casa perde a elegância. Também! Não tem mais precisão de andar arrastando a asa. Pra que elegância, então?

Entre um mate e outro foi afiando a gilete num copo, fez espuma de sabão numa lata enferrujada de sardinha, ajeitou o espelho rachado na cadeira, sentou num cepo, Joana trouxe a bacia com águia quente. Negrinho olhava calado aquele ritual todo, Juvêncio forçava a vista pra se afeitar à luz do fogão. Em seguida vai chegar tua vez, guri! E não pensa que barba é privilégio. Barba é maldição que cresce com o sono.

Se afeitava pra quê? Bueno, mesmo casado, um tem que manter certo asseio. Com o rosto ainda sangrando, deu uma aparada no bigode. Uma chama mais viva iluminou o espelho, Juvêncio viu em meio às rachas do cristal um corpo estranho - o seu. Um calafrio lhe percorreu a espinha, devia ser o vento entrando pelas frestas da porta. Ou seria talvez que pela primeira vez olhava seu rosto?

Joana amassava o pão, largava a massa de vez em quando para tomar um mate. Estava arisca.

- Que requintes são esse, até parece que tu vai pra um baile?

Mulher não merece resposta. Negrinho ia dar guri bom. Via as coisas, aprendia pra si, não falava muito. Madrugava, bom sinal. Os outros ainda roncavam, as nulidades, nem pareciam crias do mesmo pai. Eram mais como filhotes de chupim em rancho de joão-de-barro. Puxaram a algum inútil da família, pois Joana também era despachada.

Secou a gilete - se a gente não seca, enferruja -, despejou a bacia pela janela, uma claridade fria começava a se infiltrar por baixo do carramanchão de glicínias. Com o barulho da água despejada o galo cantou, com um ar de tapeado. O galo do Martim respondeu. Em silêncio tomou mais uns mates, só se ouvia o chiado da cuia seca e Joana sovando a massa. O rancho era pobre, mas visita que chegasse no domingo não podia se queixar de ser mal recebida.

Os anuns começaram a charlar no bambuzal, as corruíras chiavam no oitão da casa. Amanhecia.

Bateu a porta, foi encilhar o baio. Negrinho largou a cuia, saiu atrás como cachorro. Via e aprendia. Esse guri merecia ir pra escola. Os tempos haviam mudado, qualquer rapazote bom nas contas valia mais que um domador. Negrinho mal dava na barriga do cavalo e já encilhava o seu, trepado num tronco. Os arreios ficavam meio frouxos, mas o que importa é a boa intenção.

A crina estava desparelha, Juvêncio deu uma tosada rápida. Encurtou um pouco a cola do baio e, num repente, decidiu sair de cola atada. Por que só solteiro havia de sair com o cavalo de cola atada? Não tá morto quem tá casado!

Pela barriga do animal corriam arrepios, o cavalo todo estava indócil. Negrinho ia alcançando os arreios. Deixou a cincha frouxa, o animal só de cabresto e foi se vestir.

O lenço estava encardido, mas vermelho quando encarde é sempre vermelho. Só fica um sebo na linha do cogote, mas isso ninguém nota. A camisa estava recém no terceiro domingo. Bombacha remendada mas limpa, pior se estivesse inteira e suja. Bota lustrada, o problema era meter o pé dentro, acostumado o dia todo nas chinelas. Mas com talco e jeito, não há bota que não sirva. Pé de pobre não tem número.

De espora o baio não precisava, mas enfiou os pés nas cujas. Há muito não se pilchava, queria hoje sair lampeiro, ainda que pela última vez na vida. Enfiou o pala calamaco, que mais não fosse servia pra esconder o nagão. Recheou de balas o dito, nunca se sabe que insolente um vai encontrar no bolicho em dia de cachaceira. Ajustou o sombrero ensebado na cabeça, puxou o lenço vermelho pra fora do pala branco, ajustou o barbicacho logo abaixo do bigode. Devia estar lindo o tipo todo. Resolveu embromar Joana.

Entrou despacinho por baixo do parral, abriu sem bulha a janela da cozinha. Joana virou-se com a luz que entrava, arregalou os olhos de susto.

- Não te reconheci. Tu não vai durá muito.

Mulher agourenta, caramba! Não era à toa que cada vez mais parecia uma coruja. Queria só lhe fazer uma broma e recebia uma respostada daquelas. Ficou até meio sem jeito. Quis fazer um carinho, não pôde. “Bueno, já me vou!” - foi só o que conseguiu dizer.

Enquanto enfrenava o baio, buscou Negrinho com o olhar pelo galpão. Não estava mais lá. Uma revoada de pássaros indicou que já andava caçando pelo eucaliptal. Le traria umas rapaduras. Açúcar é ruim pra dentição, mas mais vale um gosto do que cem pesos. Apertou a cincha, já a cavalo fechou a porteira, saiu a trote manso pelo lançante da coxilha. Na sanga, enquanto o baio tomava água, olhou para trás.

Em frente à casa senhorial, se delineava contra o horizonte o cinamomo que dera sombra a tantas gerações. Imóvel contra o céu já claro, suas ramadas mais altas acenavam como que em despedida. Talvez fosse aquela árvore, com sua copa generosa, a causa do empobrecimento e decadência dos Moreiras. Sua sombra convidava sempre para o mate. Pela manhã, batia no portal da casa, o sol já ia alto mas sua sombra era sempre fresca. Depois da sesta, a sombra estava do outro lado da cerca que rodeava o pátio. Quanto namoro não começou com mate doce debaixo daquela ramada!

Já que a água estava quente, os barbados aproveitavam pra tomar um amargo junto com o mulherio. Enquanto isso, a lavoura se enchia de jujo brabo, os alambrados deitavam mal um caturrita pousava no fio de cima. Fosse como fosse, cumprira sua obrigação, a de dar sombra. Se os Moreiras não haviam cumprido a sua, a culpa não era do cinamomo.

Atravessou a sanga pelo passo do vime. Tinha histórias aquele vime. Ali pescara suas primeiras joaninhas (um dia uma Joana o pescou, mas isso já era outro causo), ali possuíra sua primeira ovelha. No tronco deitado à guisa de barranco, cavalgara a primeira égua. E numa tarde quente de dezembro, quando levava os animais pra aguada, encontrou Joana acocorada esfregando roupa nas pedras. Não resistiu, homem não é de ferro. O sabão caiu na correnteza, foi descendo, fazendo borbulhas sanga abaixo.

Largou as rédeas do baio, que partiu num galope suave. A brisa dobrava as abas do chapéu de feltro, o barbicacho se enredava nos flecos do pala. Uma perdiz assustada alçou vôo, interrompida em seu passeio matinal. De um cardo a outro brilhavam babas-de-boi. Em zona de pedregal, os quero-queros mergulhavam com puas e gritos de guerra. Juvêncio galopava com o rebenque apoiado no lombilho, gesto pelo qual os Moreiras eram reconhecidos a léguas. Não que o baio precisasse de mango, no necesita el rebenque el que tiene buen cavallo, diz o paisano, mas em toda cancha de osso sempre há um atrevido implorando um mangaço.

O campo havia mudado, e como! Nos tempos de rapazote, era só se chegar no bolicho e já se sabia onde havia bate-coxa. Tudo tinha terminado, hoje só sobrava jogo de taba e missa no último domingo do mês. Não havia mais churrasqueada em eleição, ninguém dava mais baile pra despachar as machorras. Não havia mais estímulo pra uma penca, já nem se podia matar negro em fandango que a Rural Montada não dava mais folga ao índio. Se um ia calmamente pela estrada, nunca faltava um caminhão ou jipe roncando para atirar o cavalo nas macegas. Qualquer dia o Aliás Bendigo juntava uma boa plata e botava armazém na cidade. E nada mais haveria pra se fazer no domingo. Não era por nada que a rapaziada mais nova se mandava pros povoados.

O cavalo resfolegava, passou pra um trote largo. Ao passar pelo rancho das Tujas, o baio exibiu suas manhas de marchador. Mas as Tujas já tinham se mandado à la cria, há muito o rancho era tapera. A última que ficara se afogou numa cacimba ao saber que tinha doença ruim, ninguém consegue esquecer a infeliz nem beber daquela água. Só o baio não via isso, insistia em ser galante. Mulher da vida só no povo, agora. Os pagos ficavam cada dia mais tristes.

Chegou cedo no bolicho, nenhum cavalo na frente. De longe avistou o Aliás no meio dos eucaliptos, molhando a cancha de osso. Certa volta foi descoberto um pelego enterrado numa ponta. Por mais clavador que fosse o índio, só dava culo. Não saiu morte porque ninguém sabia a quem matar. Ninguém falou nada, mexerico é coisa de china. Mas não houve quem não pensasse no Aliás.

Ao chegar ao palanque, Aliás se aproximou com uma faca e uma chaira.

- Buenas, Juvêncio. Me ajudas a coreá uma vaca?

- Se não for roubada, te ajudo.

Broma de mau gosto. Com três mangangás no peito, Juvêncio Moreira mordeu o pó do terreiro.

Cumprida sua sina, o baio voltou ao trotezito pelo caminho real, os estribos balançando na manhã de domingo.

* Assim escrevem os gaúchos, Editora Alfa-Omega, São Paulo, 1976

sexta-feira, julho 29, 2011
 
LOUCO OU TERRORISTA?


A imprensa européia está se perguntando se Anders Behring Breivik, o norueguês que matou quase oitenta pessoas, é louco ou terrorista. A pergunta não é inocente. As esquerdas preferem que não seja louco. Se for louco, não é responsável por seus atos, e assim não podem acusar de xenofobia os europeus que se manifestam contra a imigração e contra o Islã. Se for terrorista, a responsabilidade recai sobre a “extrema direita xenófoba”.

Ora, qual a diferença entre terrorista e louco? Quando um muçulmano se explode achando que com seu gesto terá direito a 70 virgens no paraíso, estamos diante de um terrorista ou de um louco? A distinção me parece ociosa. Estamos diante de um terrorista e louco. Já contei a história de um palestino em Israel, que foi preso antes de conseguir explodir-se. Tinha o pênis envolto em papel higiênico. Queria preservá-lo para as virgens. Alguém duvida que isto seja loucura?

Onde a sanidade? A meu ver, vivemos cercados de loucura. É louco todo homem que crê no que não existe, como deus ou vida eterna. Quando vejo crentes se ajoelhando ante uma potestade inexistente, não tenho dúvidas: estamos diante de um insano. Quem afirma isto não sou eu, mas Paulo, o apóstolo:

Porque Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo. Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei o entendimento dos entendidos. Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o questionador deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que crêem.

Convivemos todos com a loucura. Enquanto não está armada, tudo bem. O problema é o louco com armas. Leio no Nouvel Obs:

“O retrato de um doente mental, assassino glacial, paranóico, crendo estar em guerra, se desenha com a leitura das 1.500 páginas do manifesto 2083, escrito pelo suposto (sic!) autor do duplo ataque sangrento na Noruega. Sem dúvida, os propósitos de Anders Behring Breivik são delirantes e siderantes. Seu advogado aliás anunciou, na terça-feira, que alegaria demência. Uma linha de defesa – a única, sem dúvida – que afasta a noção de terrorismo e da responsabilidade. Chocado pelo massacre que teve lugar na ilha de Utøya, o prefeito de Oslo julgou que o país estava tratando de um louco, de um loser que buscava uma razão de existir”.

E que sabia que no dia seguinte – acrescentaria eu – seria manchete nas primeiras páginas de todos os jornais do mundo. Este narcisismo não pode ser deixado de lado. Um terrorista árabe é mais ou menos anônimo, chame-se Ahmed ou Mahamoud. A expressão terrorista muçulmano nos é familiar. Já terrorista norueguês é algo insólito na imprensa. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que pela primeira vez esta expressão surge nos jornais. Como diz o Nouvel, trata-se de um terrorista de olhos claros, norueguês de souche.

“Estamos portanto diante de um ato terrorista” – afirma François Bernard Huygue, co-autor com Alain Bauer da obra Les terroristes disent toujours ce qui vont faire – “O terrorismo é uma forma de luta política e ideológica que consiste em cometer atentados visando alvos simbólicos. Os terroristas matam idéias, para difundir idéias e em nome de idéias. Em sua lógica – às vezes louca – não se ataca pessoas por razões individuais como em um crime, nem para provocar o máximo de perdas possíveis ao inimigo, como na guerra. Mata-se pessoas para que suas mortes produzam um efeito psicológico e um efeito pedagógico”.

Desconfio que o bestunto de Breivik não chegava a tanto. Que efeito pedagógico pode produzir a matança de oitenta pessoas? Qual a diferença entre terrorista e louco? Alguém ainda lembra da RAF, (Rote Armee Fraktion, em alemão), grupo terrorista dos anos 70, mais conhecido como Grupo Baader-Meinhof? Seus integrantes se autodescreviam como um movimento de guerrilha urbana comunista e anti-imperialista, engajado numa luta armada contra o que definiam como um Estado fascista. Seus manifestos delirantes defendiam uma revolução mundial, bastando para isso explodir alguns alemães.

Esta é a mesma loucura de Che Guevara, Lamarca, Marighella, que achavam que o mundo pode ser transformado com um fuzil. Ora, não são exatamente os fuzis que transformam o mundo. Os cristãos sabiam disto e conseguiram instalar sua loucura urbi et orbi. Verdade que recorreram à tortura e às fogueiras. Mas nem precisavam delas. Quando surgiu a Inquisição, a loucura já era vitoriosa.

Terrorismo ou loucura? Não vejo diferença.

quinta-feira, julho 28, 2011
 
VASSILISSA


Um homem se define por seu trabalho – escrevi há pouco. Se não trabalha, é um inútil. Objeta um leitor:

- Profissão é parte do que uma pessoa é. Não tudo. Possivelmente nem algo com o qual ela se identifica em particular, e sim algo que ela, muitas vezes por contingência do destino, calhou de fazer, e portanto não é algo que representa suas crenças, posições, modo de viver e ações como um todo. Profissão é parte da vida das pessoas. E nem de todas. Se fulano vive de renda ou herança, problema (ou sorte) dele. Isso não define caráter. O que você faz para ganhar seu pão é problema seu, e não vejo por que tenha que ser o que te define como ser humano, seu valor absoluto, ou o que seja que funcione como termômetro de qualidade de fulano.

Ok, leitor. Admitamos que profissão não seja tudo. Pode não definir caráter. Mas quem não trabalha continua sendo um inútil. Já nas primeiras páginas do Gênesis, o Senhor transforma o trabalho em maldição, ao jogar Adão fora do Éden para lavrar a terra.

“E ao homem disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei dizendo: Não comerás dela; maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos; e comerás das ervas do campo. Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás”.

Para o deus judaico, trabalho é castigo. Felicidade é viver sem fazer nada, numa espécie de País da Cocanha, onde os frutos da terra estão ao alcance da mão. Esta apologia do ócio é retomada no Novo Testamento, mais precisamente em Mateus:

“Olhai as aves do céu, não semeiam nem colhem e nem juntam em celeiros. E no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Aprendei com os lírios do campo, vede como crescem, e não trabalham e nem fiam. E no entanto, nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles”.

Pode ser. Mas eu me entediaria como uma ostra se tivesse de passar a vida toda sem fazer nada. Segundo o leitor, as pessoas podem viver de renda ou herança e trabalho não funciona como termômetro de qualidade de ninguém. Permito-me discordar. Um homem que nada faz, para mim, nada é. Há, é claro, algumas diferenças entre ser regente de orquestra e balconista, piloto de Boeing e taxista, chef e padeiro.

A propósito, em meus dias de Santa Maria, tive como companheiro de bar um poeta. Sua meta na vida era fazer poemas. Voltei a encontrá-lo alguns anos mais tarde. Perguntei se ainda fazia poemas.

- Não mais. Agora faço pães.

Aleluia! Os poetas que me desculpem. Mas a humanidade precisa mais de pães do que de poemas. Sem falar que pães são em geral mais saborosos que muitos poemas. Particularmente se falamos de poesia contemporânea.

Há obviamente o trabalho ruim, aquele que não escolhemos e jamais escolheríamos. Há o trabalho que até pode ser agradável, mas é mal pago. Quando comecei a trabalhar em jornal, ganhava apenas oito cruzeiros mais que o contínuo da redação. Mas me sentia muito bem quando, ao final do mês, passava no caixa para receber meus míseros trocados. Com eles, me dedicava a meus prazeres. Raras pessoas no mundo podem orgulhar-se do trabalho que fazem. O segredo do sentir-se bem com a vida é encontrar uma fórmula de chegar lá.

Quando encontro alguém de quem ainda não tenho referências, minha pergunta é: o que você faz? É pergunta que recomendo a toda pessoa que encontra uma outra que ainda não conhece. Se não sabemos o que uma pessoa faz, não sabemos quem ela é. Vive de rendas ou de herança? Pode ser. Mas se não tem uma profissão, pouco ou nada tem a me dizer.

Conheço pessoas que vivem sem nada fazer. Há muita mulher neste mundo que vive de pensão, distribuindo seu ócio entre a academia, o instituto de beleza e a novela das oito. Suas cabeças dão uma boa idéia do vácuo absoluto. Há cientistas que negam a existência do vácuo absoluto, pois isto contraria o princípio da incerteza, de Heisenberg. Que se lixe o princípio da incerteza. Vácuo absoluto existe, é a cabeça de quem não trabalha. Não trabalhar é a fórmula mais eficaz de uma mulher anular-se. Os muçulmanos, que alimentam um medo ancestral ao feminino, sabem disto. E proíbem suas mulheres de trabalhar.

Uma das coisas que me agrada em São Paulo são as mulheres com quem cruzo em meu dia-a-dia. São pessoas que vem ou vão para um trabalho, freqüentam bares e dispensam machos para pagar suas contas. Altivas, são donas dos próprios narizes e gerem suas próprias vidas, sejam minhas gerentas de banco ou as meninas que me servem nos bares ou cafés.

Em meus dias de Santa Catarina, me disse um aluno: meu sonho é ser rico e viver tomando uísque e olhando o mar. Tive pena da mísera espécie humana que ele representava. É possível que tenha chegado lá. Não o invejo.

Tampouco tenho maior apreço por quem pensa só em dinheiro. Dinheiro é bom. Mas se sua busca nos torna a vida desagradável, não é bom. Eu poderia ter enriquecido com a advocacia. Mas não me sentiria bem na pele de um advogado. Optei então pelo jornalismo. Ganhava pouco, mas era ofício que algum prazer me proporcionava. Jornalismo é cachaça, costumamos dizer. A adrenalina de um fechamento de jornal é algo que vicia. Más vale un gusto que cien pesos, dícen los orientales.

Algum leitor deve ter visto o filme Mediterrâneo, de Gabriele Salvatores. É uma das mais belas mentiras da história do cinema. Pego uma sinopse da Web: durante a Segunda Guerra, com a missão de defender o lugar contra uma possível invasão inimiga, um punhado de soldados é deixado numa pequena ilha do mar da Grécia. Mas, o vilarejo parece abandonado e como não tem nenhum único inimigo a vista os soldados aproveitam o tempo para relaxar um pouco. Porém, a ilha não está deserta e quando os habitantes do local percebem que os soldados italianos são inofensivos, saem de seus esconderijos nas montanhas para dar seqüência a suas pacíficas vidas. Portanto, logo os soldados descobrem que serem deixados para trás em uma paradisíaca ilha grega esquecida por Deus, não é uma coisa tão ruim assim...

O diretor não engana seu público: o filme é dedicado a todos os escapistas do mundo. Ilha grega pode ser uma idéia de paraíso para muita gente. Por uma semana, até concordo. Para toda a vida, seria para mim um inferno. Os italianos se dedicam a um eterno dolce farniente. A única pessoa que parece ter uma profissão na ilha é Vassilissa. Se apresenta alegremente ao batalhão. O capitão pergunta:

- Che lavoro fare?
- Io sono la puta.

E passa a exercer orgulhosamente sua profissão. Os soldados perderam o sentido de suas vidas. Vassilissa não: http://www.youtube.com/watch?v=B9VOQoH-Kb0

A profissão pode não ser das mais nobres. Mas é melhor do que não fazer nada.

quarta-feira, julho 27, 2011
 
TERRORISTA NORUEGUÊS
FAVORECE OBSCURANTISMO
DAS ESQUERDAS EUROPÉIAS



Há horas defendo a tese de que as esquerdas, não tendo conseguido destruir a Europa com o marxismo, estão agora apelando ao Islã pra chegar lá. Os marxistas nunca gostaram da idéia de Europa e isto está explícito na primeira frase do Manifesto: “um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo”. O islamismo é totalmente incompatível com o Ocidente. No Ocidente, a Igreja separou-se do Estado. Nos países islâmicos, domina o Estado. Isso sem falar da condição da mulher nos países árabes. Enquanto os muçulmanos considerarem que a mulher está um pouco abaixo do rabo do camelo, qualquer diálogo é impossível. A luta entre Islã e Ocidente existe desde há muito e agora se manifesta com mais intensidade em função do aumento do número de imigrantes árabes e africanos na Europa.

Sou voz isolada neste país de imprensa politicamente correta. Não lembro ter lido, em jornal algum, qualquer artigo que condene o islamismo como doutrina hostil à democracia, aos direitos humanos e à liberdade de expressão. Fato significativo é que os últimos livros de Oriana Fallaci, que condenam com veemência o obscurantismo muçulmano, até hoje não foram publicados no Brasil.

Em 2003, comentei La Rabia e l'Orgoglio, o soberbo panfleto de Oriana Fallaci em defesa do Ocidente e seus valores, escrito por ocasião do atentado ao World Trade Center e mais tarde transformado em livro. Em meados de dezembro de 2001, quando foi lançado, eu estava em Roma e via as pilhas de livros sumindo rapidamente, de minuto em minuto, nas livrarias. Vendeu como pão quente, chegando a atingir 50 mil cópias por dia, proeza sequer igualada pelos Harry Potters da vida. O livro foi traduzido em todos os idiomas da Europa e sua recepção foi tamanha na Itália, que velhinhas romanas compravam-no às pilhas e saiam a vendê-lo nas ruas e estradas.

O que só demonstra a colossal covardia dos editores brasileiros. As livrarias estão repletas dos lixos de Paulo Coelho ou Jô Soares e nem sombra do livro da escritora italiana. Em seu livro, Fallaci mostra uma Europa prestes a render-se à nova invasão do Islã. Se os árabes foram expulsos do velho continente pela força das lanças e espadas há cinco séculos, estão voltando agora munidos de armas mais sutis: direitos humanos, tolerância religiosa, diversidade cultural ... e o uso do ventre das muçulmanas.

A autora nos fala de uma Eurábia - e o neologismo não é seu, mas título de uma revista criada em 1975, por entidades européias em parceria com grupos árabes - na qual os muçulmanos passaram a impor suas mesquitas, seus ritos e atrocidades, sem respeito algum aos poderes europeus. Na Inglaterra já existe uma organização chamada Parlamento Muçulmano, cujo primeiro objetivo é recordar aos imigrantes que não estão obrigados a respeitar as leis inglesas: "Para um muçulmano respeitar as leis em vigor no país que o acolhe é algo facultativo. Um muçulmano tem que obedecer a Sharia e ponto", diz sua Carta Constituinte.

Ainda este ano, em Deutschland schafft sich ab (A Alemanha se destrói), Thilo Sarrazin, ex-diretor do Bundesbank e membro do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD), acusava os imigrantes turcos e alemães de constituírem “o coração do problema”, devido à sua escassa integração e sua dependência massiva das ajudas sociais. Em 2009, às vésperas do 20º aniversário da queda do Muro, dizia Sarrazin:

“A integração requer um esforço por parte de quem quer se integrar. Eu não respeito quem não quer fazer este esforço. Não tenho porque reconhecer aqueles que vivem das ajudas públicas, mas negam a autoridade do Estado que as outorga, não educam seus filhos e produzem constantemente mais meninas com véus. Isto vale para 70% da população turca e 90% da população árabe em Berlim”.

O autor ainda alertava: “A gente que bebia no bar do Titanic tampouco se dava conta de nada: a orquestra tocava, todo mundo estava bem, e nas primeiras horas ninguém notou o problema. Apesar disto, estavam condenados à morte, porque a água continuava entrando na nave”.

Tais denúncias têm sido condenadas pelas esquerdas européias, em nome do tal de multiculturalismo, como racistas e xenófobas. A defesa do ilícito virou norma entre os intelectuais do Velho Continente: os imigrantes ilegais têm todo o direito a permanecer em território europeu. Foi criado até mesmo um neologismo inadequado para definir quem defende o Estado de direito: islamofobia. Literalmente, medo do Islã. Ora, os europeus não têm exatamente medo do Islã. Têm, isto sim, é asco.

Já comentei, há algum tempo, história que me foi contada por uma amiga parisiense. Ela vivia em um pequeno studio, ao lado do qual havia um corredor que não dava a lugar nenhum. Resolveu derrubar uma parede e integrar o corredor a seu apartamento. O condomínio chiou e exigiu que ela voltasse a seu espaço anterior.

- Ok! Mas meu apartamento é muito pequeno. Estou pensando em vendê-lo. Aliás, já tenho alguém que quer comprá-lo, Monsieur Mohammed...

Santo remédio. O síndico nem tocou mais no assunto. É um caso isolado, é verdade. Mas reflete o que os europeus sentem pelos árabes. O maior bairro árabe de Paris é a Goutte d’Or, logo abaixo de Montmartre. À medida em que a mancha muçulmana se expande, os imóveis se desvalorizam.

Mas pretendia falar sobre Anders Behring Breivik, o maluco norueguês que matou cerca de oitenta pessoas, em nome de uma "guerra de sangue" a imigrantes e marxistas. Estranhamente, matou jovens noruegueses, que não eram imigrantes e certamente nada tinham a ver com marxismo.

Conversa de lobo. O lobo, quando vai comer o cordeiro, se sente na obrigação de fazer um discurso introdutório. O discurso de Breivik tem 1500 páginas. O que já é um desrespeito aos leitores. Onde se viu manifesto de 1500 páginas? Antes mesmo de seu massacre, isto já é um atestado de sua insanidade.

Alusões a O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, seriam inevitáveis. Uma jornalista tupiniquim, pretendendo ser original, escreve:

“Breivik é um fanático, que parece não recuar diante de nada para eliminar de sua frente aqueles que considera indesejáveis ou ameaçadores para o “sonho europeu” que persegue e difunde em suas mensagens pela internet. Os ataques que protagonizou, fundamentados por teorias de extrema-direita, deixam a Europa e o mundo em estado de alerta, já que uma onda de repulsa a imigrantes, declínio econômico, aumento do desemprego e medo crescente de retaliação de fundamentalistas islâmicos têm tomado conta de vários países do velho continente.

“O que os tristes acontecimentos da Noruega nos dizem é que parece que o apoio a teorias xenófobas, como as que segue o atirador fanático de Oslo e da ilha de Utoeya, está crescendo. Vem da Bíblia o conceito de que a coexistência com idéias e companhias maléficas equivale a chocar o ovo de uma serpente. Em 1977, o notável cineasta Ingmar Bergman fez um filme com o título O ovo da serpente, ambientado entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, quando o nazismo nasceu e prosperou na Alemanha, encantando governantes de índole totalitária em vários cantos do mundo. O resultado é bastante conhecido e lamentado até os dias de hoje.

“Eventos como o da Noruega parecem assustadoramente apontar nesta direção. Através do gesto tresloucado e das palavras mais ainda de Breivik, pode-se discernir o futuro provável da Europa e do mundo se providências enérgicas não forem tomadas para reprimir a expansão desta ideologia de extrema-direita que retorna. Através das membranas finas do ovo, pode-se vislumbrar o réptil peçonhento e letal, perfeitamente concebido e pronto para atacar”.

Esta é a tônica de uma imprensa dominada pelo pensamento de esquerda. Quem hoje defender a Europa da invasão islâmica é um nazista de extrema-direita. Vinte anos após a queda do Muro de Berlim, Breivik prestou um serviço inestimável a uma doutrina já putrefata.

As esquerdas, penhoradas, agradecem.

terça-feira, julho 26, 2011
 
GIRA LA COTE


Leitores me pedem um comentário sobre a morte de Amy Winehouse. Pouco ou nada sei sobre a moça, esse mundo do show-business nada me diz. Leitor de jornais, claro que tropecei várias vezes com seu nome. Apenas tropecei e segui em frente. Ídolos não me interessam. E suicidas não me comovem.

Confesso jamais ter lido ou ouvido qualquer canção de Amy. Fui então procurar “Rehab”, que teria sido um de seus grandes sucessos. Fiquei pasmo. Uma época precisa ser mentalmente muito pobre para cultuar uma letra escrota como aquela. O século parece ter sepultado canções belíssimas como as de Edith Piaf, Jacques Brel, Evert Taube, Sven-Bertill Taube, Mikis Theodorakis, Melina Mercouri, para admirar os vagidos desconexos de uma drogada.

Como meus leitores são em geral pessoas cultas, é bastante provável que desconheçam “Rehab”. Reproduzo então as duas primeiras estrofes, e mais não é necessário.

Tentaram me mandar pra reabilitação
Eu disse "não, não, não"
É, eu estive meio caída, mas quando eu voltar
Vocês vão saber, saber, saber
Eu não tenho tempo
E mesmo meu pai pensando que eu estou bem;
Ele tentou me mandar pra reabilitação
Mas eu não vou, vou, vou

Prefiro ficar em casa com Ray
Não posso ficar 70 dias internada
Por que não há nada
Não há nada que possam me ensinar lá
Que eu não possa aprender com o Sr. Hathaway


Seria o hino perfeito das cracolândias e das assistentes sociais que rejeitam a idéia de mandar os zumbis do crack para casas de recuperação. A propósito, semana passada surgiu na cracolândia paulistana uma imagem com fundo e inscrições em dourado onde se liam: Nossa Senhora do Crack. A nova santa chegou a sensibilizar D. Odilo Scherer, o cardeal arcebispo de São Paulo. O líder religioso disse em seu Twitter ter ficado comovido com a iniciativa e que ela alerta para o drama dos dependentes químicos. Estes, por sua vez, demonstraram um certo pudor em relação aos símbolos religiosos e, revoltados, acabaram por destruir a imagem. É uma pena. As inscrições bem poderiam ser encimadas por um nome famoso, Amy Winehouse.

Leio hoje no Nouvel Obs entrevista com Alex Foden, que partilhou apartamento e passagens difíceis com a cantora. Segundo o estilista, em seus piores momentos, Amy chegava a gastar mil pounds por dia em droga, para si e para seu entourage. Conta ainda que a cantora, em sua estada nas Caraíbas em dezembro de 2007, foi mula de si mesma, engolindo 2.100 libras de heroína repartidas em sete saquinhos no estômago.

Comentando esta relação constante entre rock e autodestruição, transcrevi em novembro passado excertos de O Livro dos Mortos do Rock, de David Comfort, no qual o autor comenta o chamado Clube dos 27:

Quatro morreram aos 27 anos de idade. A maioria teve premonições sobre morrer jovem. “Estarei morto em dois anos”, declarou um deles, sabendo muito bem o que estava dizendo aos 25 anos. “Não tenho certeza se chegarei aos 28”, disse um segundo membro do Clube dos 27. “Nunca vou chegar aos 30”, previu um terceiro. A morte assombrou a vida da maioria deles desde a infância. As mães de dois deles faleceu em acidente de automóvel. A mãe de outros dois bebia até cair. Aos 5 anos de idade, um deles viu o pai se afogar. Outro astro insistia em dizer que possuía os “genes do suicídio” porque os membros de sua família haviam tirado a própria vida.

Cada um possuía uma atração fatal. “Vou ser um músico famoso, me matar e me apagar em uma chama de glória!”, exclamou um. Ele deu ao seu grupo o nome de Nirvana, definindo o termo como “a paz absoluta da morte.” Outra estrela, estudante do Livro tibetano dos mortos como muitos dos outros, deu à sua banda o nome Grateful Dead. Outro nomeou seu grupo The Doors, uma porta para o outro mundo, além de descrever sua música como um “convite às forças do mal.”

Outra lenda viva, obcecada pelo fantasma do “carma instantâneo”, disse que faria o seguinte quando finalmente encontrasse o mensageiro da Morte: “Irei agarrá-lo pelas bochechas e lhe darei um beijo molhado na boca mofada, porque só há uma forma de partir – encarando o vento e rindo pra caralho!.” Outros demonstravam uma curiosidade irresistível sobre a vida além da morte, como observou o meio-irmão do próprio Rei do Rock:

“Era como um devaneio para saber até onde ele poderia chegar – era quase como se ele procurasse a morte –, apenas para ver o que havia do outro lado e depois voltar.” Embora cada um dos Sete tenha alcançado o auge da fama durante uma breve vida, só foram tipificados como imortais após sua autodestruição. O namoro de cada um deles com a morte adquiriu vida própria até assumir proporções mitológicas, tornando-se um tipo de calvário para sua legião de fãs.


Suicidas não me comovem, dizia. Há pessoas que têm sérias razões para matar-se, como doenças terminais ou mesmo impasses políticos. Não é o caso destes ídolos incensados pela mídia, que têm a fortuna nas mãos e a vida pela frente. Se quiserem destruir-se, estejam a gosto. O deplorável, nisto tudo, é a reação da imprensa.

Em junho, morreu um dos grandes escritores do século passado, Ernesto Sábato. Mereceu tímidas notas da imprensa internacional. Ontem ainda, morreu Mihalis Cacoianis, um dos grandes cineastas contemporâneos, diretor de filmes que não morrem, como Zorba, o Grego e Ifigenia. Recebeu não mais que algumas linhas dos jornais. Semana passada, a mezzo-soprano Catherine Jenkins, belíssima e dona de uma voz soberba, apresentou-se em São Paulo. Alguém ficou sabendo? Salvo raros aficionados, ninguém tomou conhecimento da passagem de Jenkins pelo Brasil.

Morre uma drogada britânica, autora de letras medíocres onde canta sua dependência das drogas – como se isto a alguém interessasse – e os jornais do mundo inteiro lhe abrem as páginas. As notícias de sua morte suplantaram as do massacre na Noruega.

Triste tempo, este nosso. Já houve dias mais inteligentes. Em janeiro de 1901, quando Giuseppe Verdi morreu, mais de cem mil italianos acompanharam seu féretro pelas ruas de Milão. Arturo Toscanini conduziu orquestras e coros combinados de toda a Itália em seu funeral.

Hoje, a imprensa celebra o suicídio de mais um mito criado pela própria imprensa. Mito passageiro, que amanhã só será lembrado por ter pertencido ao Clube dos 27. “Va, pensiero” é eterno. “Rehab” dura um segundo. Nosso século trocou o eterno pelo fugaz.

Gira la cote. Quem mais se habilita?

segunda-feira, julho 25, 2011
 
PSI REINCIDE
NO BESTEIROL



A imprensa não passa semana sem publicar certas bobagens recorrentes ao longo da História. Uma delas é achar que Picasso teve a intenção de pintar o bombardeio de Guernica em sua tela Guernica. Outra é debitar a Nietzsche e sua idéia de Übermensch a origem do nazismo. Uma terceira, que se repete a toda hora, é atribuir a Dostoievski a frase “se Deus não existe, tudo é permitido”.

Ainda na quarta-feira passada, eu dizia não lembrar, em meu mais de meio século de vida, de ter ouvido algo inteligente da boca de um psicólogo ou psicanalista. São profissionais que se munem de teorias para explicar o que nenhuma teoria explica, o ser humano. Até pode ser que algum psi, em algum momento, tenha feito alguma afirmação pertinente. É a chispa da ferradura quando bate na calçada. Desta vez, não transcorreu sequer uma semana para dois psis reincidirem na mesma bobagem, no mesmo jornal.

Na crônica passada, eu me referia ao psicólogo Paul Bloom, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Yale (EUA) que, entrevistado pela Folha de São Paulo, repetia a eterna sandice sobre Dostoievski. Hoje, no mesmo jornal, o psicanalista Luiz Felipe Pondé faz eco ao besteirol. Não por acaso, Pondé comenta a “excelente entrevista com um psicólogo professor de Yale na página de Ciência desta Folha da última terça”.

- Mas voltando ao erro na leitura de Dostoiévski. Do fato que religião não deixa ninguém melhor, o professor conclui que Dostoiévski estava errado quando afirmou que "se Deus não existe, tudo é permitido". Erro clássico. Essa afirmação de Dostoiévski não discute sua crença, nem o consequente comportamento moral decorrente dela (como parece à primeira vista). Ela discute o fato de que, pouco importando sua crença, se Deus não existe, não há cobrança final sobre seus atos. O "tudo é permitido" significa que não haveria "um dono do Universo" para castigá-lo (ou não), dependendo do que você fizesse.

Só tem um pequeno detalhe: Dostoievski jamais escreveu isso. Ao corrigir o suposto erro de Paul Bloom, Pondé reincide no verdadeiro erro de Bloom. Foi Sartre quem divulgou, urbi et orbi, esta bobagem, repetida até por dona Dilma, quando pretendeu demonstrar erudição. Quem menciona esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Pelo que se lê nos jornais, apesar de sua vasta obra, Dostoievski é autor desta única frase. Não tenho lembrança de ter ouvido a citação de qualquer outros topoi do escritor russo.

Há alguns anos, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O russo refere-se a Deus, é verdade, mas também à imortalidade. Ou seja, o tudo é permitido depende de castigo ou recompensa no Além. A simples idéia de Deus não é suficiente como sanção. Sem a referência à imortalidade, Dostoievski está deturpado.

Psicanalista e sedizente filósofo, doutorado em Filosofia pela USP/Universidade de Paris e pós-doutorado em Epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor convidado nas universidades de Marburg e de Sevilha, Pondé tem em sua bibliografia um ensaio intitulado Filosofia da Religião em Dostoievski. Só parece não ter lido Dostoievski atentamente.

Como já vai longe a época em que os jornalistas tinham alguma cultura geral, estas bobagens saltam na imprensa como pipocas numa panela. Que um jornalista pouco afeito à grande leitura profira tal asneira, até que se entende. Para um acadêmico com tantos títulos, fica feio, muito feio.

domingo, julho 24, 2011
 
ENDOCRINOLOGISTA AMERICANO
DESCOBRE QUE AÇÚCAR É VENENO



Os americanos parecem estar descobrindo a América. Estão concluindo que açúcar é veneno e deveria ser proibido para menores de 21 anos, como o álcool e o cigarro. O profeta do óbvio é o endocrinologista Robert Lustig, da Universidade da Califórnia em San Francisco. Sua palestra "Açúcar: a verdade amarga" teve mais de 900 mil acessos no YouTube (tinyurl.com/ldgu9k) e suas teses foram tema da reportagem de capa da revista do New York Times. Segundo Lustig, do mais natureba, o mascavo, até o suco de fruta ou o famigerado xarope de milho, o açúcar está por trás de doenças cardíacas, diabetes e câncer. É o que nos conta a Folha de São Paulo, em sua edição de hoje.

Neste nosso mundo contemporâneo, onde os jornalistas parecem ter perdido a memória, sempre tem alguém descobrindo a América. Em setembro de 2009, Veja apresentou como grande novidade o livro Sugar, a Bittersweet History, da historiadora canadense Elizabeth Abbott. Segundo a escritora, o açúcar redesenhou o mapa demográfico, econômico, ambiental, político, cultural e moral do mundo. “Em séculos de tragédia e glória, o açúcar transformou a alimentação do Ocidente, escravizou gerações de africanos nas Américas, foi combustível da Revolução Industrial, promoveu guerras e impérios, dizimou paraísos ecológicos, ergueu e pulverizou fortunas – e, nos trópicos, moldou a identidade brasileira. Movido pela sua energia calórica, o mundo segue girando rápido, tão rápido que estamos agora na soleira de outra mudança vertiginosa: o açúcar começa a ser considerado um vilão da saúde humana, um veneno tão prejudicial que merece ser tratado com o mesmo rigor empregado contra – suprema decadência! – o tabaco. Está mais perto o dia em que um pacote de açúcar trará a inscrição: O Ministério da Saúde adverte: este produto é prejudicial à saúde".

Já comentei o assunto no século passado, mais precisamente em 1989, quando caía o Muro de Berlim. Carson Ritchie, em seu ensaio Food in Civilization - How History Has Been Affected by Human Tastes, alerta para os efeitos danosos do açúcar. O livro foi publicado em 1981. Ou seja, há três décadas. E a denúncia obviamente é bem mais antiga.

Ritchie um dia convidou alguns amigos a um bom restaurante. Jantaram à la farta e tudo transcorreu muito bem, pelo menos até o momento da dolorosa. Ritchie puxou a carteira e nela não encontrou dinheiro suficiente. Teve de apelar aos amigos que convidara para jantar. Passado o episódio, considerou que a história da alimentação em algo se parece com esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que aquilo que desfrutamos custa bem mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa. Terá sido talvez esta gafe o que deu origem a seu livro.

"O açúcar para adoçar o chá e o café europeu - escreve Ritchie - foi cultivado às custas da escravidão negra. Os peles vermelhas foram expulsos sem piedade das pradarias onde caçavam para que o homem branco pudesse cultivar trigo e milho, e seus búfalos foram exterminados para dar lugar a grandes rebanhos vacuns. Os escritores norte-americanos responsabilizaram as grandes multinacionais fruticultoras pelo caos das economias centro-americanas, construindo ferrovias ilegais, sonegando impostos, manipulando os baixos salários da mão-de-obra não qualificada (já por si suficientemente baixos), expropriando as terras dos camponeses e exaurindo a fertilidade do solo. E tudo isso para que os norte-americanos tivessem bananas como sobremesa!"

Ao debruçar-se sobre os efeitos dos alimentos na História, Ritchie descobre que foram os conceitos errôneos de alimentação e não os corretos, os que demonstraram ter maior influência. "Crenças em que as especiarias aumentavam a virilidade, que o açúcar era essencial para a saúde, ou que para ser forte devia-se beber muita cerveja, condicionaram mais os destinos da humanidade que as autênticas e consolidadas leis da ciência da alimentação".

Mas como convencer minha assessora de assuntos domésticos de que seu vício não passa de um hidrato de carbono sem nenhum valor alimentício? Se os europeus, para açucarar suas tardes, destruíram homens e culturas, na África e nas ditas Índias Ocidentais, como queixar-me da Cristina?

Já vi universitários e professores universitários se lambuzando com sorvetes, que além de açúcar contém algo mais nocivo, o sal. (Isso até que não é tão grave: há universitários que acreditam em Deus). Pior ainda, já vi muitos destes senhores que, por uma questão de ofício possuem, ou deveriam possuir, noções de bem comer, dando sorvetes a seus filhos. Assim sendo, sempre tenho em casa um açucareiro cheio para saciar os instintos primários de Cristina e de eventuais formigas que já descobriram o mapa da mina. Sem falar que, quando o café é forte, tipo exportação, não me furto a ajuntar-lhe uma colherinha de veneno.

Não sou chegado a sobremesas. Mas, quando em Paris, não resisto a um baba au rhum ou a uma île flottante. Leitores de Asterix devem lembrar de uma guarnição romana na Gália, Babaorum. Pois vem de baba au rhum. É um pudim encharcado de rum. Divino! Quanto à île flottante, sobremesa de clara de ovos, é coisa de minha infância lá no Ponche Verde. Mais conhecida naqueles pagos como escuma de sapo. Mas é claro que uma île flottante, degustada às margens do Sena, soa mais chique que escuma de sapo sorvida às margens do sangão dos Lucas.

Pois este hidrato tão prestigiado, que no fundo só serve para produzir cáries, obesidade e doenças cardíacas, produziu mais estragos na trajetória do ser humano do que o próprio sal, que pelo menos tem a virtude de conservar as carnes, fator aparentemente banal, mas decisivo na caminhada do Homo Sapiens, seja rumo ao combate, seja rumo a descobertas. E já fez levas de jovens do mundo todo partirem em revoadas rumo àquela ilha tanto amada por Paulo, cardeal Arns, para cortar cana em prol da revolução.

Pois a cana-de-açúcar deve ser colhida rapidamente quando madura e Castro, preocupado em seguir as diretrizes de Moscou, mandou para Angola a juventude cubana, onde, em vez de ceifar cana, ceifaram vidas alheias e muitas vezes perderam as suas. Mas Estados Unidos, Europa, América Latina e mesmo o Brasil, pronto supriram a falta de mão-de-obra. Milhares de jovens, que jamais haviam visto de perto um canavial, bravamente acorreram, de machete em punho, em apoio à ditadura cubana.

O açúcar foi introduzido no mundo mediterrâneo por Dario, o rei dos persas, trazido da Índia após suas conquistas por lá. Difundiu-se pela Europa e passou ao Novo Mundo graças aos colonizadores espanhóis. Hernán Cortez introduziu a cana-de-açúcar no México. O Caribe proporcionava ao açúcar o clima mais adequado que seu próprio lugar de origem, a Índia, pois lá chovia muito mais. Acontece que os espanhóis jamais iriam trabalhar se encontrassem alguém que o fizesse por eles.

A tarefa foi delegada, se assim se pode dizer, aos índios caribes e arawaks, culturas que logo foram exterminadas. Tendo de buscar mão-de-obra em outra parte, os colonizadores das "Índias Ocidentais" deram uma piscadela de olhos aos portugueses. Estes, tendo observado que os índios, não se adaptando ao trabalho duro, morriam na colheita de açúcar, os deixaram de lado e foram buscar escravos na África.

"Já que espanhóis e portugueses haviam começado a desenvolver suas plantações de cana com a colaboração dos escravos negros, todos os demais pensaram que tinham de seguir seu exemplo. Se assim não faziam, expunham-se a produzir um açúcar mais caro, sem saída no mercado. Resulta irônico comprovar a que ponto haviam chegado os primeiros colonos franceses e ingleses no Caribe: homens idealistas, freqüentemente perseguidos por suas crenças religiosas, e muitas vezes indivíduos de princípios elevados que queriam viver de uma forma mais livre da qual lhes era permitido viver na Europa". Pois estes senhores, diz-nos Ritchie, tornaram-se escravocratas nas Índias Ocidentais. Para satisfazer o paladar europeu.

Outro subproduto da cana, o rum, serviu para incrementar o tráfico de escravos. Quando surgem as primeiras campanhas abolicionistas, seus líderes implantam o primeiro boicote ao comércio infame, adoçando o café com nata em vez de açúcar, e pedindo conhaque francês em lugar de rum. Para ajudá-los a propagar suas idéias, lady Henderson, comerciante em Londres, vende açucareiros com gravado em letras douradas: "Açúcar das Índias Orientais, não produzido por escravos".

Ritchie considera que se o açúcar fosse descoberto hoje seria classificado como droga. Droga que já produziu mais estragos em sua trajetória – acrescentemos – do que a maconha ou cocaína. Em suma, tanto Robert Lustig como Elizabeth Abbott nada dizem de novo. Apenas repetem antigas denúncias sobre este veneno que as pessoas ingerem prazerosamente todos os dias.

sábado, julho 23, 2011
 
QUANDO DR. LULA FALA
O MUNDO SE ILUMINA



Lula recebeu ontem no teatro Santa Isabel, em Recife, o título de Dr. Honoris Causa, conferido por três universidades pernambucanas, a Universidade Federal de Pernambuco (UFP), a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e a Universidade de Pernambuco (UPE). Três vezes doutor. O título é atribuído à personalidade que se tenha distinguido pelo saber ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos.

Ao receber o título, o Supremo Apedeuta recebeu também a samarra e o capelo. A samarra vermelha, em alusão à área de Ciências Humanas, cujo centro na UFPE propôs a homenagem. O capelo é o chapéu privativo do reitor, do vice-reitor, dos Professores Eméritos e dos Doutores Honoris Causa. O reitor usa o capelo branco, representando o poder temporal (analogia com a coroa real) e também a samarra branca. E o ex-presidente usará capelo vermelho, compondo o traje com a cor das Ciências Humanas.

Leitores me escrevem, espantados com o evento. Nada de novo sob o sol. Em março passado, Lula recebeu o mesmo título da Universidade de Coimbra. Era de se esperar. Em dezembro de 1989, no jornal A Notícia, de Joinville, muito antes de Lula eleger-se presidente, eu já anunciava seu doutorado: “Queremos construir uma sociedade de classe média, declarava o Dr. Lula no domingo passado”.

Ora, o diploma Honoris Causa só serve para enfeitar cartão de visita e não confere nenhuma capacitação acadêmica a seu portador. É uma das instituições mais desmoralizadas do universo universitário e não raro é concedido a criminosos e vigaristas. Nos anos 90, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) concedeu o título a Fidel Ruz Castro, o tiranete caribenho. Este senhor, todos conhecemos.

Um outro Honoris Causa menos conhecido é o Dr. Raoni Metuktire. Se alguém não lembra, Raoni é aquele cacique que, nos anos 80, exibia orgulhosamente aos jornais a borduna com que matou onze peões de uma fazenda. Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. O papa João Paulo II, François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indígena. Raoni, com seus belfos, se deu inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares.

Em 2008, Raoni recebeu o título de Dr. Honoris Causa pela UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso). Isso de universidades homenagearem assassinos está virando praxe acadêmica.

Ou vigaristas. Como Darcy Ribeiro, o grande escroque acadêmico, que se gabava de ter um diploma de Dr. Honoris Causa pela Sorbonne. O senador monoglota sequer sabia por qual universidade foi titulado. O Honoris Causa, Darcy o recebeu em 1978, quando não mais existia a Sorbonne. O diploma foi conferido pela Universidade de Paris VII e entregue em uma sala do prédio da antiga Sorbonne, o que é muito diferente.

Darcy Ribeiro, em prosa e verso cantado pelas esquerdas, foi antes de tudo um caso de polícia. Já escrevi sobre o vigarista. Além de gabar-se de ser monoglota, exibia como titulação universitária um diploma da Escola de Sociologia e Política, de São Paulo, curso que jamais foi reconhecido pelo Ministério de Educação e Cultura. Em seu currículo enviado ao Senado, espertamente se intitulou etnólogo, ofício que, como o de antropólogo, prostituta ou psicanalista, ainda não foi regulamentado no Brasil. Gozou de três aposentadorias federais, uma delas pela Universidade de Brasília, com a qual jamais teve vínculo de emprego. Sua carreira é a de um escroc acadêmico.

Não bastasse isto, dizia ter fundado a Universidade de Brasília. Não fundou. Nem nela lecionou, embora tenha por ela se aposentado. Segundo o Dr. José Carlos de Almeida Azevedo, ex-reitor da UnB, Darcy nela jamais teve um só aluno e foi “reintegrado” para “aposentar-se”, sem jamais ter vínculo de emprego com a universidade, já que era “requisitado”. A propósito, cito artigo do ex-reitor, publicado em 24/06/96 na Folha de São Paulo:

“Servidor do antigo SPI, hoje Funai, e da UFRJ, Darcy apareceu na comissão convocada pelo então ministro da Educação, Clovis Salgado, para cumprir determinação de JK, no sentido de “...fundar Universidade Brasília... em moldes rigorosamente modernos...”. Na comissão, presidida por Pedro Calmon, Darcy era o único que jamais havia concluído, ou iniciado, um curso superior, mas foi Reitor da UnB e ministro da Educação, poucos meses em cada lugar, sem deixar qualquer vestígio do que fez”.

Concluí o ex-reitor:

“Ao autoproclamar-se fundador e criador da UnB, beneficiando-se disso ad perpetuam, o Darcy usurpa méritos exclusivos de Juscelino Kubitschek, de seu ministro Clovis Salgado e de Anísio Teixeira, comprovados em relatório oficial do MEC e em depoimento do ministro. O primeiro mandou criar a universidade, compreendendo sua importância; o segundo criou todas as condições, e Anísio a organizou. (...) A construção, institucionalização e consolidação da UnB devem-se aos reitores Caio Benjamin Dias, Amadeu Cury e, em escala menor, a este modesto escriba, que a ela serviram, a convite exclusivo do Conselho da Fundação UnB”.

O senador monoglota dizia ainda ter fundado a Universidade Nacional de Costa Rica. Tampouco a fundou. Aliás, nem existe tal universidade. Conforme nos informa o professor Augostinus Staub, “existe, sim, a Universidade Nacional, na cidade de Herédia, criada em 1970, pelo presbítero Benjamin Nuñez Gutierrez, e não por Darcy Ribeiro”.

Para termos uma idéia da capacitação intelectual deste Honoris Causa, cito esta sua interpretação do Gênesis, que consta do livro Mestiço é que é bom (Editora Revan, Rio, 1997):

Aliás, eu preciso contar para vocês uma coisa muito interessante que eu desenvolvi ultimamente, meio literária mas muito bonita. E uma história sobre Eva, eu estive meditando sobre Eva e descobri que Eva é trotskista. É a primeira revolucionária da história. Nós devemos coisas fundamentais a Eva.

Primeiro, Eva fundou a foda. Adão era um bestão, estava lá, com aquele penduricalho dele e não sabia o que fazer. Eva disse:

- Vem cá Adãozinho.

Ele pôs dentro dela e foi aquele gozo, ele teve o orgasmo e, quando deu aquele gozo, o anjão desceu e disse:

- Deus não gosta, Deus está puto com vocês, fora!

E os pôs para fora do Paraíso. O Paraíso era uma merda, não era de matéria plástica porque não existia matéria plástica, era de papel crepom. Porque a flor é o órgão genital das plantas, fode, não poderia ter no paraíso flor fodendo. Era de papel crepom. Quando o anjão pôs eles para fora, obrigou o seguinte:

- Vamos fazer o comunismo, vamos fazer o Paraíso lá fora.

Eva também foi fazer o comunismo.


Estes são os doutores Honoris Causa que a universidade reverencia. Quanto a Lula, ninguém se surpreenda se um dia for sagrado imortal pela Academia Brasileira de Letras. Depois de Getúlio Vargas, do general Adelita, de Sarney e Paulo Coelho, nada mais surpreende.

Lula aliás já tem o aval da Dra. Marilena Chauí: “quando Lula fala o mundo se ilumina e tudo se esclarece”.

sexta-feira, julho 22, 2011
 
ATEU PROFISSIONAL?


Sobre a questão dos ateus, uma de minhas boas interlocutoras me xinga: “janer, por causa de um "i" tu chamas alguém de ignorante com toda essa carga de cultura? Tu és um baixinho sinistro”.

Bom, não sou exatamente baixinho e diria que sinistro também não. Quanto ao “i”, não é apenas um “i”. Na madrugada de hoje, eu assistia a uma sessão do STF, quando Gilmar Mendes deu seu voto sobre a tal de homoafetividade. Não sei se ele estava querendo bancar o popular, mas a toda hora dizia: legalmenti, exatamenti, di forma que. Vá lá, mas não fica bem num ministro. Lá no campo, apesar de não terem grandes luzes, a gauchada chamava de bundinha da cidade quem trocava o "e” por “i”.

No caso do ateu, o “i” foi mais grave. Foi prazeirosa em vez de prazerosa. Já ouvi isso de muito professor universitário. Certa vez, em uma reunião de departamento na UFSC, ouvi de uma Dra. pela USP: “para mim é muito prazeiroso...” Não resisti: “quer dizer que a Dra. tem prazeires quando...?”

É erro crasso que não se admite em pessoa minimamente culta. E muito menos em quem tem doutorado pela USP. Ou talvez seja normal entre os PhDeuses uspianos e não estou sabendo. Sempre vi os crentes como pessoas incultas, ao contrário dos ateus, que dominavam o vernáculo. Como disse, já não se fazem mais ateus como antigamente.

Por outro lado, Juliana Honório da Silva enviou mensagem ao presidente da ATEA:

Prezados Senhores,

Tenho uma dúvida com relação ao Sr. Presidente dessa Associação. Gostaria muito de saber qual é a sua formação acadêmica, qual sua especialização, e se exerce a profissão para o qual foi preparado. Em resumo, onde e em quê Daniel Sottomaior trabalha. Desde já, agradeço, obrigada.


Daniel Sottomaior responde:

Juliana, a entidade existe para promover os objetivos estatutários. Expor as vidas pessoais de membros e diretores não faz parte de nossos objetivos.

Daniel


Como se declinar a profissão que alguém exerce fosse expor a vida pessoal desse alguém. Por um lado, Juliana não está perguntando pela vida pessoal de ninguém. Está perguntando qual sua profissão. E não pergunta pela profissão dos membros. Apenas pela do diretor. O diretor não respondeu.

Por outro lado, não vejo invasão nenhuma de privacidade se alguém pergunta por minha profissão. Um homem se define por seu trabalho. Se não trabalha, é um inútil. Se Sottomaior não responder a esta pergunta, é um desocupado que faz do ateísmo profissão.

Se responder, publico sua resposta.

 
SOBRE OS PRAZEIRES DE UM ATEU


De leitor que se identifica apenas por duas iniciais, recebo:

Enquanto houver tribunais com crucifixos, expressões crentes na constituição e no dinheiro, juízes que condenam réus a serem evangelizados, bispos no Conselho Nacional de Saúde, evangélicos contra a ciência, criacionistas querendo debater com a ciência (e mesmo interditá-la), isenções fiscais às igrejas, lutas religiosas pelo mundo, reacionarismo contra a contemporaneidade nos costumes e nas artes por razão religiosa e preconceitos, abertos ou velados, eu continuarei financiando e defendendo a ATEA. Mesmo ciente de seus erros - e a campanha é cheia de erros - o resto é muito, muito pior. Os que defendem a permissividade com as religiões e com a religiosidade no mundo contemporâneo fazem um favor ao que há de ruim no passado histórico, e um desfavor à democracia.

Se Daniel fosse juiz ou bispo, duvido que o redator se referisse, assim desrespeitosamente, como "um tal de". Antes de ser apresentado, e não havendo ofensa declarada, é o Sr. Daniel Sottomayor. Nenhum sábio ou messias, mas alguém que tem a coragem de desacomodar, e de fato perturba, é eficiente em sua meta maior.

Ateus, vivemos heisemberguianamente, sem precisar desses fantoches infantis que iludem os ignaros há milênios, ou de narrativas prontas para ver o mundo. A autonomia é prazeirosa e promissora.

FM


Atirei no que vi e acertei no que não vi. De fato, Sottomaior não é indiferente a doações. Que isso de lutar por uma causa sem subsídios é coisa de insanos. Até Marx, o pensador ateu que mais influenciou o século passado, não se fazia de rogado quando Engels lhe repassava o vil metal.

Você não deixa de ter razão em alguns de seus considerandos. Isso de crucifixo em tribunais e artigos de fé na constituição e no dinheiro constituem arrogância da Igreja. Quanto a juízes condenando réus a serem evangelizados, jamais ouvi falar disso. Se ocorreu, o juiz deveria ser denunciado à Corregedoria. Ainda há pouco, li nos jornais que um juiz condenou um adolescente a assistir missas. Bom, o meritíssimo está criando um ateu e dos mais ferozes. Quanto a criacionistas defenderem seus pontos de vista, isto é direito deles. Vivemos no Ocidente democrático. Da mesma forma, considero que qualquer crente tem o direito de defender sua fé.

O que não se admite é que queiram impor suas crenças em legislações de países laicos. É o caso do aborto e do divórcio, sem ir mais longe. Se os católicos são contra o aborto e o divórcio, que não abortem nem se divorciem. Mas não pretendam proibir isto aos demais cidadãos que não participam de suas fés.

As igrejas só me incomodam quando se metem em minha vida. Isto aconteceu muito em minha juventude. Os padres queriam controlar até mesmo minha vida sexual. Invadiam as camas de todo mundo, fossem crentes ou não crentes. Hoje, esta pressão quase inexiste. Os padres estão transando adoidado com homens e mulheres e agora preocupam-se com os pecados ditos sociais. Os sexuais já eram.

Quanto a referir-me ao prócer ateu como “um tal de”, assim o fiz por não saber se Sottomaior é açougueiro ou alfaiate. Qual é a profissão deste senhor? Onde trabalha? De que vive? Até onde me consta, sua profissão é ser ateu. Se um dia souber qual seu emprego, passarei a designá-lo por seu ofício.

Sou ateu, mas disso não faço bandeira nem profissão. Sou ateu naturalmente, como quem respira. Religiões, só as condeno quando se metem na vida do Estado. Ou na minha. Quem quiser papar hóstias, esteja a gosto. Acredita em vida no Além? Azar dele. Em verdade, nem vai perceber o engodo, já que depois da morte nem ele existirá.

Acredita em Deus? Só faço uma pergunta: em qual deles? Só no Antigo Testamento há vários. Desde o Deus quase antropomórfico que luta com Jacó e janta com Sara, até o deus distante e impessoal que surge quando Israel se torna poderosa. Mas esta pergunta só pode ser feita a quem leu a Bíblia com atenção, algo raro entre católicos.

Mas, como diz o leitor, a autonomia é prazeirosa. Pelo jeito, sente prazeires ao financiar a ATEA. Ora, sempre tive os ateus como pessoas cultas. Pelo que vejo, não se fazem mais ateus como antigamente.

 
ATEÍSMO E ELEITORADO


Do Rafael Moreira Furtado, recebo:

Um bom dia para aquele que é Ateu com a graça de Deus!

Seu texto sobre o ateísmo me chamou a atenção para um detalhe pequeno, porém relevante: "Somos cerca de 2% dos brasileiros, ou 4 milhões de ateus. Mas muitos têm medo de se expor devido ao preconceito de amigos, chefes e familiares. Isso tem que acabar."

Quatro milhões de ateus formam um eleitorado nada desprezível. Há algumas horas atrás eu afirmava que em breve haveria alguém querendo tirar algum proveito político desse "movimento ateu". E essa informação só confirma minha hipótese.

Agora, me surpreendeu a afirmação do ateísmo de Stalin. Porque, ao que me consta, ele foi seminarista na juventude.

Abraço,

Rafael


É uma hipótese, Rafael. No Brasil, nem ateu prega prego sem estopa. Mais dia menos dia, ainda veremos o PRA – Partido Revolucionário Ateu – ou coisa que o valha. Com subvenções partidárias e mordomias outras para seus deputados.

Quanto ao Stalin, de fato era seminarista. Mas, como bom materialista dialético, suponho que tenha passado a negar a existência de deus. Nos primórdios do marxismo havia um certo pudor intelectual. Um marxista era ipso facto ateu ou não era marxista. Isso de ser marxista e católico é contributo tupiniquim à história da humana estupidez.

quinta-feira, julho 21, 2011
 
QUEM FINANCIA O
ATEÍSMO DA ATEA?



Há dois ou três dias, eu manifestava meu espanto ante o submarino nazista que foi descoberto nas costas de Santa Catarina. Curiosamente, nunca vi submarinos comunistas, sociais-democratas ou capitalistas. Ontem, nova surpresa. Segundo a Zero Hora, ônibus ateus começarão a circular em Porto Alegre no próximo domingo. O jornalismo é surpreendente. Temos agora um ônibus que não acredita em Deus. Mais um pouco e teremos ônibus tementes a Deus.

A partir deste domingo, a chamada campanha dos ônibus ateus terá início na Capital. Ônibus exibirão mensagens expondo o ponto de vista de ateus e agnósticos sobre temas como fé e moralidade. A ação é uma iniciativa da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos.

O mote da campanha é o slogan "Diga não ao preconceito contra ateus", que aparece em quatro peças diferentes acompanhando imagens e frases polêmicas. Uma delas afirma "A fé não dá respostas. Ela só impede perguntas". Em outra aparecem Adolf Hitler e Charles Chaplin ilustrando o texto "religião não define caráter".


O texto diz que Chaplin não acreditava em Deus. Pode ser. Mas acreditava em Stalin, o que é um pouco mais constrangedor. Em O Grande Ditador, Chaplin satiriza Hitler. Mas em toda sua obra poupou Stalin, que começou a matar muito antes de Hitler e continuou matando depois de Hitler. Quanto a dizer que Hitler acreditava em Deus é aposta perigosa. Até parece que ateus são anjos de bondade. Enumerar grandes assassinos que eram ateus não é difícil. Vão de Átila – não por acaso chamado o Flagelo de Deus – e Tamerlão a Lênin, Stalin, Mao, Pol Pot e Fidel Castro. Se religião não define caráter, ateísmo muito menos.

Nascemos todos ateus. Nenhuma criança crê em Deus, pela simples razão de que não tem noção alguma do que seja Deus. A idéia de Deus é decorrente do Estado, da Igreja, da escola. No entanto, nunca vi ninguém manifestar preconceitos contra o ateísmo infantil. Muito menos contra o ateísmo adulto. Nasci ateu, em um ambiente pagão, e fui católico por uns quatro ou cinco anos, em virtude de uma catequista e de um colégio de padres oblatos que me enfiaram o cristianismo a machado cabeça adentro. Mas logo me recuperei. Sou ateu há mais de meio século e nunca me senti por isso discriminado. Os neo-ateus, pelo jeito, querem posar de coitadinhos.

A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos – ATEA, para os íntimos – é uma espécie de sindicato de ateus, conduzida por um tal de Daniel Sottomaior, que pretende atrair a atenção da sociedade e tirar os ateus da invisibilidade.

— Somos cerca de 2% dos brasileiros, ou 4 milhões de ateus. Mas muitos têm medo de se expor devido ao preconceito de amigos, chefes e familiares. Isso tem que acabar.

Confesso que nunca vi ateu com medo de se expor, muito menos restrições de amigos, chefes ou familiares. Convivo mais com pessoas que não crêem em deus ou deuses, mas também convivo com crentes. Isto nunca impediu nosso bom relacionamento. Só o que faltava eu exigir que uma pessoa pense como eu penso para com ela relacionar-me.

— Há uma noção de que ateus são maus. Acontece um crime bárbaro, logo falam que o sujeito não crê em Deus. A campanha quer mudar essa imagem — diz Daniel Sottomaior, presidente da Atea.

Ora, isso é desonestidade intelectual, típica de sofistas que jogam argumentos inexistentes ao ar, para melhor rebatê-los. Nunca vi, em minha vida de jornalista, acusarem criminosos de ateus. Em verdade, um apresentador de televisão, truculento e analfabeto, o tal de José Luiz Datena, andou afirmando ano passado que crime é coisa de pessoas que não acreditam em Deus. “Porque o sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente vê esses crimes aí”. E continuou em seu discurso sem nexo: “É por isso que o mundo está essa porcaria. Guerra, peste, fome e tudo mais, entendeu? São os caras do mal. Se bem que tem ateu que não é do mal, mas, é ..., o sujeito que não respeita os limites de Deus, é porque não sei, não respeita limite nenhum”.

Mas Datena é um bronco, que jamais leu aquele livro em que o bom Jeová ordena massacres de povos inteiros. Sua opinião não pode ser levada em consideração. Segundo a Zero Hora, a campanha traz ainda a foto de um avião atingindo o World Trade Center com os dizeres "Se Deus existe, tudo é permitido" - em referência à famosa citação em contrário do romance Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Sottomaior pode pretender jogar com esta frase. Só que - como comentei ontem e tenho comentado toda vez que esta bobagem é proferida - Dostoievski nunca afirmou que se Deus não existe tudo é permitido. Sottomaior revela a mesma ignorância de todos aqueles que citam Dostoievski sem jamais tê-lo lido.

Os tais de ônibus ateus não passam de macaquices de provocações que foram feitas nos Estados Unidos e Europa. Ano passado, eu afirmava que esse conflito entre ateus e crentes era coisa de ianques, que até hoje se dividem entre criacionistas e evolucionistas. Aqui no Brasil, o dito maior país católico do mundo, os três últimos presidentes foram ateus. Brasileiro não se preocupa com isso.

Por outro lado, me soa insólita uma associação de ateus. É como se fosse uma associação de solipsistas. Ou de solitários, como quisermos. Ateu é o homem que nega a fé em deus ou deuses. Que crentes se associem para preservar sua fé, até que entendo. Nós, ateus, não temos fé nenhuma a preservar. Nossa descrença dispensa apoio de quem quer que seja. Isso de associação de ateus me soa à religião.

Mais insólita ainda me soa uma associação brasileira de ateus, como se ateu tivesse pátria. Me lembra uma piada da Irlanda. Um cidadão foi interpelado em uma barreira. Alegou: “mas eu sou ateu, nada tenho a ver com as brigas de vocês”. Tudo bem - respondeu o guarda -. Mas você é ateu católico ou ateu protestante? Ora, nós somos universais. Não existe ateu brasileiro ou ateu francês ou ateu espanhol. Existem ateus, simplesmente.

Por ter manifestado meu ateísmo, não poucas vezes fui convidado a participar de grupos de ateus. Para começar, sou avesso a qualquer grupo. Não pertenço a nenhum. A idéia de grupo me horroriza. Continuando, se sou ateu, não sou militante. Que as gentes creiam no que bem entenderem. Desde que não pretendam me proibir o direito a críticas, tanto faz como tanto fez. Se uma fé faz bem a alguém, não serei eu quem pretenderá extirpá-la.

Desconfio de todo ateu militante. É alguém que não está contente com seu próprio deus. Mas está doidinho para encontrar um outro na esquina. Ou para arrecadar gordos financiamentos para suas campanhas em prol do ateísmo. Pois duvido que alguém financie do próprio bolso cartazes pregando seja lá o que for.

quarta-feira, julho 20, 2011
 
FOLHA ENTREVISTA ANALFABETO


Posso estar cometendo injustiça, mas não tenho lembrança, em meu mais de meio século de vida, de ter ouvido algo inteligente da boca de um psicólogo ou psicanalista. São profissionais que se munem de teorias para explicar o que nenhuma teoria explica, o ser humano. Que o diga o professor Paul Bloom, do Departamento de Psicologia da Universidade Yale (EUA), autor do livro How Pleasure Works, que pretende entender por que o conhecimento e as nossas crenças interferem na forma como sentimos prazer, seja ao beber um vinho, ver uma obra de arte ou fazer sexo. A Folha de São Paulo deu-se ao trabalho de enviar um repórter a Edimburgo, para colher as platitudes proferidas pelo psicólogo. O repórter quer saber como o prazer funciona. Responde o psi:

- Ao obter prazer, não respondemos apenas aos aspectos superficiais de um objeto ou pessoa, como gosto, cheiro, aparência. Nosso prazer é afetado pelo conhecimento e pelas crenças que temos. Por exemplo, se achamos que um vinho é caro, teremos mais prazer em tomá-lo. No caso da pintura, você pode amar um quadro se acredita que é um Picasso ou um Chagall e não dá a mínima se pensa que é uma falsificação. Mesmo que o original e a cópia sejam iguais.

Bloom fala no plural, como se encarnasse o gênero humano. Ora, nem tanto ao mar nem tanto à terra. O conhecimento até pode nos levar a prazeres que antes não percebíamos bem. Mas não é o conhecimento que nos leva a gostar de sexo, sem ir mais longe. Gostamos porque é bom e estamos conversados. Jamais me ocorreria gostar de um vinho porque é caro. Gosto porque cai bem em meu palato. Já estive em um restaurante em Verona, na Itália, onde se exibia um vinho que custava 11 mil dólares. Ora, isso é mais do que eu gasto, por cabeça, em um mês na Europa, passagens incluídas. Meu padrão de consumo dificilmente ultrapassa os 50 dólares. Digamos que chegue a cem. Que prazeres inefáveis poderei ter em uma garrafa de vinho, que se consome em uma hora, que valham mais 10.900 dólares? Isso é coisa de nouveau riche, que gosta de ostentar status. Um rico de souche, que não precisa demonstrar riqueza, jamais pediria tal vinho.

Quanto à pintura, Bloom parece ter tomado como parâmetro aqueles ianques brutos que vão à Europa à cata de grifes. Diga-se de passagem, não gosto de Picasso, salvo alguma obra de sua primeira fase, como a Mulher na Janela. Depois que enveredou pelo cubismo, perdi o interesse pelo malaguenho. Tampouco entendo essa gente que gosta de uma pintura porque sabe ser original, mas não sentiria nenhum apreço por outra absolutamente igual, que sequer teria condições de distinguir da original. Salvador Dali fez uma piada que até hoje escandaliza os marchands. No final de sua vida, assinou milhares de telas em branco, que eram pintadas com seu estilo em ateliers de sua propriedade. O quadro era um Dali? Sem dúvida alguma. Sua assinatura era autêntica. Ocorre que não fora pintado por Dali. Mas quem vai saber disso? Os falsos Dalis até hoje circulam no mercado.

Em meu apartamento, tenho três reproduções, uma de Bosch, outra de Dali e uma terceira – a que mais fascina minhas visitas – de autor que duvido que algum leitor conheça. É o quadro de que mais gosto. Retrata três pessoas protegidas por guarda-chuvas, de um amarelo intenso, enfrentando um vendaval. É assinado por Leonetto Cappiello (1875-1942). Quem era Cappiello? Era um pintor desconhecido que fazia cartazes de propaganda de guarda-chuvas.

No mundo da arte, seguido temos notícia de quadros achados em antiquários que pouco valem. Subitamente se descobre que haviam sido criados por um Van Gogh ou Goya. De repente, passam a ser cotados em milhões de dólares. Ora, isto é fetiche. Não é caso de conhecimento, como diria Bloom. Mas de falta de conhecimento, de alguém que não tem critérios estéticos, mas dá créditos ao autor.

Um dos quadros mais sem graça do mundo, para mim, é o da Mona Lisa. No entanto, milhões de pessoas se empurram no Louvre para ver aquela chatice. Afinal, é assinada por Da Vinci. Imagine se fosse obra de um brasileiro ou paraguaio. Não valeria um vintém. Bloom ignora o poder dos mitos.

- E com relação à comida? Por que uma pessoa gosta de queijo e outra não? – quer saber o repórter.

- Queijo é um bom exemplo. Muitos têm cheiro muito forte. Se você disser a alguém que o cheiro que está sentindo é de um animal, ela ficará enojada. Mas se disser que é de um queijo, e que ele é caro, a pessoa pode salivar.

Ora, não é nada disso. Jamais alguém pensaria que o cheiro de um queijo é o de um animal. Pode até cheirar a escatol, como é o caso do camembert. Mas uma coisa é o cheiro, outra é o sabor. Cada vez que um amigo me traz um camembert de Paris, minha faxineira reclama: “Professor, tem algo podre na geladeira”. Pode deixar, Cristina, é assim mesmo. Certo dia, pedi que ela ignorasse o odor e provasse o queijo. Ah, ela gostou.

E quem não gosta? Só quem não viaja. Se você não sai daqui, jamais saberá o que é um camembert. É queijo que viaja mal. Uma coisa é um camembert fresquinho em Paris. Outra é um camembert após sete dias no Brasil. É a sombra da sombra do vrai camembert.

Falar nisso, em dezembro passado, degustei um camembert no Procope que me dá vontade de voltar a Paris, só para encontrar-me com ele de novo. Mas há milhares de queijos no mundo e obviamente não vamos gostar de todos eles. Só na França, há mais de quatrocentos. Se você degustar um por dia, em um ano não terá conhecido todos. Não gosto, por exemplo, do queso manchego, de grande reputação na Espanha. Muito duro e muito salgado. O Dana Blue dinamarquês também não me desce muito bem. Mas adoro o fetá grego. Gostos e cores não se discutem, diziam os antigos.

Bloom diz não gostar de queijo. O que é um direito seu. Mas do queijo passa para a música.

- Nada me faz gostar de queijo. Por outro lado, se você quer mesmo desenvolver o gosto por algo, a melhor maneira é adquirir conhecimento sobre essa coisa. Por exemplo, pegue uma pessoa que gosta de música clássica e não goste de rap. Mas essa pessoa, por alguma razão, quer gostar de rap. O melhor caminho é pesquisar, aprender sobre esse movimento cultural.

Ora, não existe isso de querer gostar. Por que raios vou querer gostar de algo que não gosto? Nasci ouvindo Teixeirinha e Miguel Aceves Mejía. Jamais tive a intenção de gostar de Mozart ou Vivaldi. Acabei gostando porque gostei, ora bolas. Mas duvido que alguém que tenha chegado a Mozart possa gostar de rap, por mais que pesquise. Impossível gostar de refinamento e barbárie ao mesmo tempo. Depois de um libreto de Da Ponte, ninguém terá maiores apreços pelas letras de um rapper.

- E os prazeres sexuais, são inatos ou desenvolvidos? – pergunta o repórter.

- O ser humano, como todos os animais que dependem de reprodução, tem desejo sexual. Mas sexo é outro exemplo interessante de como o conhecimento e as crenças definem o desejo, o prazer. Imagine um homem heterossexual vendo um vulto nu à distância. Se ele acreditar que é uma estrela de cinema, uma modelo, ficará muito excitado. Mas se de repente pensar que é um homem, ou sua mãe, sua irmã, sua filha, o desejo, a excitação, acabará imediatamente.

Confesso não entender de que ser humano fala o psicólogo. Desejo sexual é imperioso, ou a espécie não se reproduziria. Não depende de ver vultos nus. Não houvesse o prazer, há muito a humanidade – como também os demais seres vivos – estaria extinta. Isso de imaginar uma estrela de cinema como objeto de desejo é coisa que existe só depois do cinema. Que excitava os homens antes do cinema? E se eu, que gosto de homens, pensar que o vulto à distância é um homem? É claro que vou ficar excitado. Nem todos os homens são heteros, e isto o psicólogo parece não perceber.

De minha parte, nunca senti desejo por minha irmã ou minha mãe. Nenhuma delas era uma Sofia Loren. Aí, seria um pouco diferente. Mas isso é o de menos. Após tantas sandices, o psicólogo encerra sua entrevista com uma chave de ouro do besteirol. Pergunta o jornalista da Folha:

- Muitos defendem que a moral está relacionada com conceitos religiosos. A pesquisa desmente isso?

- Já sabemos que a moral não está diretamente ligada a religiões. Os ateus não são piores que os religiosos. O conceito de [Fyodor] Dostoiévski, a idéia de que, se não houvesse Deus, tudo seria permitido, é completamente falso. O fato de uma pessoa não crer em Deus não faz dela um assassino.

Esta besteira vem sendo repetida ad aeternum por pessoas que jamais leram Dostoievski. Ano passado, dona Dilma, que hoje foi saudada no El País, sei lá porque razões, como apreciadora dos clássicos, a repetia. Os católicos ocidentais adoram empunhar esta deturpação do pensamento do escritor católico ortodoxo. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. Esta frase estaria em Os Irmãos Karamazov. Ora, Dostoievski jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem menciona esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Há alguns anos, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parênteses que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorizado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediatamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. Imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossíbilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral - ou da de Ivan Karamazov, como quisermos - não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo.

A Folha está enviando repórteres longe demais para entrevistar analfabetos.

terça-feira, julho 19, 2011
 
TRF GAÚCHO REVOLUCIONA
AS RELAÇÕES DE TRABALHO



O Rio Grande do Sul está se revelando inovador em matéria de relações de trabalho, ao unir tecnologia e serviços públicos. O Tribunal Regional Federal da 4ª região, de Porto Alegre, lotou a analista judiciária Cristiane Meireles Ortiz em Madri até julho de 2013. Ela seguirá atuando na Corte através do processo eletrônico durante sua estada de dois anos na capital espanhola, onde acompanhará o marido, delegado da Polícia Federal, em missão no exterior. Neste período, atuará via internet com processos eletrônicos do gabinete da desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria.

A desembargadora concordou com a vontade da servidora, pois além de a demanda de processos de seu gabinete ser grande, caso a servidora fosse licenciada para acompanhar o cônjuge, a administração ficaria impossibilitada de chamar outro servidor para o seu lugar.

Bem, vivemos em dias de teletrabalho. Por que não trabalhar em Madri quando se está lotado em Porto Alegre? Nada obsta. Eventuais comunicações podem ser feita via Skype, com mais rapidez do que exige o percurso de uma sala à outra. Sem falar que Madri é uma cidade muito aprazível para se trabalhar. Você pode levar seu laptop, por exemplo, para o real parque de El Retiro, e desempenhar sua função sob um ameno sol de inverno contemplando os patinhos do lago e o Palácio de Cristal. Ou quem sabe na Plaza Mayor, redigindo pareceres entre uma tapa e outra, enquanto contempla – ou não contempla – a estátua eqüestre de Felipe III.

É o que chamo de humanização do trabalho. Se estiver muito frio, você leva sua estação de trabalho para El Oriente, digamos, em frente ao Palácio Real, onde poderá degustar um bom Rioja na sala onde El Rey costuma receber estadistas, enquanto elabora suas decisões. Se cansar do ambiente da sala d’El Rey, pode levar seu laptop para o Gijón, no Paseo de Recoletos. É um ambiente propício ao trabalho intelectual, ali fazem tertúlias os imortais da Real Academia. Duzentos metros adiante, há um outro ambiente dos mais adequados à concentração intelectual, El Espejo. Interior esplêndido, com espelhos que reproduzem sua imagem, enquanto trabalha, ao infinito. Culinária generosa e vinhos idem.

Por que não? Tudo em nome da unidade familiar. Segundo a presidente do Tribunal, desembargadora Marga Barth Tessler, que foi relatora do processo administrativo, está havendo uma mudança de referenciais nos ambientes profissionais. Segundo ela, "fomos educados para valorizar o trabalho, e existe um paradigma construído em décadas: trabalho acontece na empresa e vida pessoal, fora dela. Mas, tudo leva a crer que, em algum momento, estes hábitos começarão a mudar, impelidos pelas novas gerações, ávidas por quebrar paradigmas e mais inclinadas às novas tecnologias".

Nada contra, Dra! Na Índia há milhares de profissionais trabalhando para empresas sediadas nos Estados Unidos. Só que são indianos. Americano que se preze não vai trabalhar em Calcutá ou Bombaim. A decisão do TRF gaúcho é revolucionária. Se se pode trabalhar em Madri, por que não em Paris, Roma ou Berlim? Nestes dias de Internet, não há por quê encerrar funcionários em uma sala em Porto Alegre. Só tem um detalhe: muita gente vai querer as mesmas condições de trabalho.

Há uma possibilidade de uma funcionária pública acompanhar o marido em missão no Exterior. É a licença não-remunerada por dois anos. Foi o que fez minha mulher, quando fui para a França. Em verdade, estou fazendo ironia à toa. Durante quatro anos, trabalhei em Paris, Berlim, Cartago, Atenas, ilhas gregas, onde quer que estivesse. Mas eu era jornalista, trabalhava para uma empresa privada e não dependia de dinheiro público. Minha obrigação era mandar uma crônica diária para Porto Alegre. Eram tempos pré-internéticos, eu andava com uma Olivettinha a tiracolo e enviava meu trabalho pela Varig. Escrevia pensando em sete dias à frente. O que não era mau. Tinha de ter o cuidado de não emitir opiniões que desmoronassem no dia seguinte.

A rigor, todo e qualquer profissional que faz um trabalho intelectual pode fazê-lo em qualquer parte do mundo. O Brasil tem hoje dezenas de correspondentes no Exterior, com também diplomatas, adidos comerciais. Mas está gente precisa estar lá. (Ou talvez nem precise. Nestes dias de Internet, um jornalista que souber inglês pode editar um caderno de Internacional sentado na Barão de Limeira). Que adianta enviar a Bagdá um jornalista que não fala árabe ou a Teerã um outro que não fala farsi? O correspondente brasileiro no Exterior geralmente tem duas “fontes fidedignas”: o chofer de táxi e o porteiro do hotel.

Perdão, leitor, afastei-me do assunto. Uma empresa privada pode fazer o que quiser com seu dinheiro. Já dinheiro público é outra coisa. Claro que uma analista judiciária pode elaborar pareceres em qualquer lugar do mundo. Sim, as novas gerações estão ávidas por quebrar paradigmas e mais inclinadas às novas tecnologias, como diz a desembargadora.

Ocorre que, neste país nosso, trabalhar em Madri quando se está lotado em Porto Alegre é só para quem tem trânsito junto ao poder.

segunda-feira, julho 18, 2011
 
GUERRA CIVIL ESPANHOLA,
75 ANOS DEPOIS



No dia 18 de julho de 1936, o general espanhol Emilio Mola y Vidal enviou telegramas às unidades militares dizendo: "El pasado dia 15, a las 4 de la mañana, Elena dió a luz un hermoso niño”. Esta senha, decodificada, significava que o levante que deu início à Guerra Civil Espanhola começaria em Marrocos, naquele 18 de julho, dia de San Camilo de Lelis, celestial patrono dos hospitais, às cinco horas da manhã. Hoje, exatamente 75 depois, a memória de Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco y Bahamonde Salgado Pardo – generalísimo Francisco Franco, para os íntimos – continua dividindo os espanhóis.

Desde ontem, El País vem dedicando vários ensaios relembrando a data. Franco, um dos deflagradores do levante – que tomaria as rédeas do país pelos próximos 39 anos – é visto como vilão. Desde alguns anos, há um movimento de “desfranquização” da Espanha, no sentido de retirar todos os nomes de rua ou monumentos em sua memória, como também os nomes de seus generais. Quanto aos comunistas que, sob o comando de Stalin, queriam tomar o poder na Espanha, são vistos como os promotores de “una revolución movida en las primeras semanas por el propósito de liquidar físicamente al enemigo de clase, comprendiendo en esta denominación al ejército, la iglesia, los terratenientes, los propietarios, las derechas o el fascismo; una revolución que soñaba edificar un mundo nuevo sobre las humeantes cenizas del antiguo”.

Por mundo nuevo, entenda-se o regime comunista russo, que fez apenas 20 milhões de cadáveres. Franco matou? Matou. Não há guerra sem mortes. Mas matou para defender a Espanha, vítima de uma brutal invasão soviética. Em 1937, a União Soviética já havia colocado na Espanha pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca de três quartas partes (7800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente.

Em 1936, Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero – conhecido também como o Lênin espanhol -, raspou os cofres do país em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas de ouro, Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas".

Em 1937, a URSS já tinha na Espanha mais de cem aviões de combate. Os mais utilizados foram os I-15 (biplanos), conhecidos com Chatos, e os I-16 (monoplanos), conhecidos como Moscas. No ano seguinte continuaram chegando à zona republicana mais aviões soviéticos, entre estes vários bombardeiros, cada vez mais aperfeiçoados, alguns ultrapassando a velocidade de 300 milhas, como os Katiuska.

Isto El País não conta. Mas entrevista Santiago Carrillo, hoje nonagenário, responsável pelo massacre de Paracuellos del Jarama, episódio que as esquerdas não gostam de lembrar. A matança é plenamente confirmada por historiadores e foi bem mais feia que o suposto bombardeio de Guernica. Entre 7 de novembro e 4 de dezembro de 1936, militares que haviam participado do levante franquista ou que não haviam se incorporado aos comunistas, falangistas, religiosos, militantes de direita, cidadãos comuns e outras pessoas que haviam sido detidas por serem consideradas partidárias da sublevação, foram retiradas das prisões, atadas pelos punhos e conduzidas em ônibus e caminhões e conduzidas às margens do Jarama, onde foram sumariamente fuziladas. Há quem fale em cinco mil cadáveres. Outros em oito mil. À frente do PC espanhol estava Santiago Carrillo.

Interrogado sobre a matança de Paracuellos, Carrillo responde: “Yo me enteré después porque me lo contaron diplomáticos extranjeros que estaban en Madrid. Miaja y yo habíamos decidido trasladar a Valencia a los militares presos en la cárcel Modelo porque las tropas franquistas estaban a 200 metros de la prisión y, o sacábamos a los presos de allí o los hubieran liberado y perdíamos Madrid. En el traslado, fuera de mi jurisdicción, atacaron al convoy. Nadie sabe exactamente quiénes fueron y los milicianos antifascistas que les custodiaban no hicieron lo que tenían que hacer: jugarse la vida y defenderles. Pero ni Miaja ni yo ordenamos nada semejante”.

Preposto de Moscou e um dos líderes máximos do movimento comunista espanhol, o santo homem nada sabia do massacre. Foi saber por diplomatas estrangeiros. Como se ninguém soubesse na Espanha o que havia ocorrido em Paracuellos.

Desculpem-me os humanistas de plantão, mas sou defensor incondicional de Franco. Franco salvou a Espanha das ambições continentais de Stalin. Salvando a Espanha, salvou a Europa. Dominasse Stalin a Espanha, Portugal cairia no dia seguinte. Dominada a península, teria controle do mar do Norte, Atlântico e Mediterrâneo. França e Itália ficariam estranguladas. E todo o sul da Europa estaria dominado por Moscou.

El País está denegrindo, em suas páginas, o homem que construiu a Espanha de hoje, rica, livre e democrática. Não fosse Franco, a Espanha teria sido uma proto-Cuba castrista. E teria dado mais sobrevida ao regime que acabou se esboroando há duas décadas.