¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, setembro 18, 2011
 
VEJA ENDOSSA MEDICINA DO ALÉM


Já contei. Contar de novo se impõe. Na época em que tratava de meu câncer, no hospital Sírio-Libanês também estava se tratando uma atriz chamada Mara Mazan. Após completar um ano de sua operação, na qual retirou um tumor maligno do pulmão direito, a moça continuou fazendo sessões de quimioterapia a cada 21 dias.

Mas o tratamento no Sírio-Libanês, pelo que disse então a atriz, de pouco ou nada lhe serviu. "Fui curada somente com oração. O nódulo desapareceu do meu peito", afirmou. Sua cura, Mazan atribuiu a Deus. "Não tenho nenhuma religião, mas sou fiel a ele, pois resolveu me dar uma segunda chance para continuar me divertindo com meus amigos aqui na Terra."

A atriz foi curada, não pela excelência tecnológica do hospital, nem pela competência de seus médicos e técnicos, e sim por uma entidade espiritual, encarnada por um tal de Edson de Queiroz, através de um uma cirurgia espiritual. Ao ser interrogada por que optou por este método e não pelo convencional, diz a atriz:

- Antes de eu tirar o tumor de meu pulmão, eu já havia sido operada espiritualmente pelo Doutor Fritz (incorporado por Edson Queiroz), indicado pela minha amiga e cantora Alcione. Os tumores que existiam em meu pulmão diminuíram consideravelmente e, quando a equipe do médico Riad Yunis fez a retirada do tumor maligno, não houve nenhum tipo de complicação. (...) Foi uma coisa surreal, mas muito bacana. O meu tratamento foi inteiramente realizado na base da oração. Fiquei sentada em uma cadeira e começaram a rezar. Logo eu comecei a sentir meu corpo dormente, como se tivesse sido anestesiada. Entrei em alfa e depois vomitei um líquido verde, parecendo a personagem Sarah, de O Exorcista.

O repórter quer saber se houve alguma intervenção cirúrgica. O médium chegou a usar algum instrumento para fazer a operação?

- Ele não usou absolutamente nada. Antes de eu entrar neste sono profundo, foi colocada em meu seio uma gaze umedecida com água purificada espiritualmente. Nada além disso. Eles ficaram rezando por horas e quando acordei o nódulo não existia mais.

Então resta a pergunta: por que retirou o tumor com uma equipe do hospital e por que continua fazendo quimioterapia? Estou cansado desta malta de crentes, que diante de uma doença grave, reza e se encomenda a Deus, ao mesmo tempo em que busca medicina de ponta. Se não conseguem sobreviver, seus próximos atribuem a morte à medicina. Se se salvam, a vida é atribuída a Deus.

Sem a morte, não existiria deus. Nós não vemos, em princípio, pessoas atribuindo – não digo a cura, porque cura não existe – mas sua sobrevivência à hipertensão ou ao diabetes a Deus. São doenças crônicas, às quais se sobrevive com tomar remédios permanentemente. Na hora do câncer, é diferente. Os crentes oram ao seu deus. Mas vão buscar cura na medicina. Quando a medicina os cura, eles agradecem não aos médicos, mas a deus. O que me parece ser uma ofensa aos médicos que os trataram.

O pior é que há médicos que acreditam nisso. No Sírio-Libanês, fui tratado por uma competente equipe de uns dez médicos e médicas. Falava eu destas questões teológicas com uma das moças e ela me disse: nós tratamos, quem cura é Deus. Ela, com toda sua ciência – a ciência que me curou -, atribuía minha cura a um ser que não existe.

Uma das mais lindas de minhas vizinhas me trouxe água de uma fonte milagrosa, não lembro se de Lourdes ou de Fátima. Tomei, água não faz mal. Além do mais, presente de moça bonita a gente não desdenha. Estava até me perguntando se me tratava em hospital ou se esperava pelo efeito da água. Hoje, vivo uma dúvida atroz: terá sido realmente o Sírio-Libanês que me curou? Ou quem sabe a água da moça?

Quando damos entrada em um hospital, há sempre duas perguntinhas no formulário de admissão: você tem religião? Qual? Acho que faltam mais algumas. Você crê no poder de Deus para curar doenças? Acredita em cirurgia espiritual? Se eu fosse médico e a resposta fosse sim a estas duas perguntas, eu mandaria incontinenti o crente entregar-se a Deus e à cirurgia espiritual. Se Deus cura, pra que hospital e boa medicina? É redundante e só faz sofrer. Se você vai usar de toda nossa ciência para depois atribuir a cura ao Dr. Fritz, então consulte logo o Dr. Fritz e não perca tempo conosco.

Considero profundamente ofensivo à medicina ser curado por médicos dedicados e alta tecnologia e atribuir a cura a Deus. Aconteceu com minha mulher. Quando adoeceu, círculos de oração foram organizados no país todo. Deus a curará – diziam. “Estamos gastando nossos créditos junto ao Poderoso” – disse-me um casal católico. Ninguém mencionava o tratamento sofisticado, caro e doloroso, ao qual ela estava sendo submetida. Quando morreu, mudou o papo. A medicina falhou. Deus tinha outros planos para ela. Mas agora ela finalmente está sendo feliz.

Para quem crê em Deus tudo é fácil. Faça chuva, faça sol, haja sofrimento ou alegria, morra ou sobreviva, tudo é bem-vindo. Medicina não salva ninguém. Quem salva é o Cara aquele.

A história se repete. O ator Reynaldo Gianecchini descobriu, em agosto passado, que estava com um câncer, um linfoma do tipo não-Hodgkin (tumor que atinge os gânglios linfáticos) e um mês depois começou a buscar ajudas espirituais para auxiliá-lo na busca pela cura da doença. Faz acompanhamento com um “médico astral”, no Instituto de Medicina do Além (IMA), em Franca, São Paulo. Quem o atende é o médium João Berbel, que tem fama de cura das cirurgias espirituais que realiza, e que afirma fazê-las a fim de mostrar as profecias de Jesus.

“A gente não anda preocupado em fazer propaganda, a intenção é mostrar as profecias de Jesus, que a Terra da regeneração já chegou, e muitos aflitos vem aqui em busca dos nossos trabalhos gratuitos, que só são possíveis graças a rifas, doações de materiais e à renda dos livros”, diz Berbel. Bem entendido, Gianecchini não dispensa uma quimioterapia no Sírio-Libanês.

Mas quem trata do ator não é exatamente o João Berbel. Este senhor é apenas um mecânico elétrico que recebe, isto sim, o espírito do clínico geral Ismael Alonso y Alonso, o “médico dos pobres”, que foi prefeito de Franca nos anos 50. “É visível a melhora do meu sobrinho desde o início do tratamento com o doutor Alonso”, disse uma tia do ator. “Ele está mais confiante para seguir o tratamento convencional, pois tem a certeza de que vai superar o câncer”. O dr. Fritz já era. Agora temos o Alonso y Alonso.

Leio na Veja: "Gianecchini recebeu a visita do médium. 'O doutor Alonso colocou uma mão na cabeça e a outra no pescoço do Reynaldo, justamente onde está o foco do problema de saúde', lembra Berbel. Em seguida, ainda conforme o médium, o espírito encarnado fez uma oração pedindo a cura, proferiu uma reza batizada de Oração de Jesus (de sua própria autoria) e encerrou o ritual com o pai-nosso".

Conheço de perto estas histórias. Entre elas, a de um professor universitário, que diz ter sido curado por uma cirurgia espiritual em um hospital de cirurgias espirituais, em Campeche, praia de Florianópolis. Perguntei-lhe se não havia buscado terapia em um hospital convencional. Ah, sim, eu me tratei no Santa Rita, de Porto Alegre. Mas o câncer já estava encapsulado. Ah, bom!

Se Gianecchini sobreviver, claro que os méritos de sua cura serão atribuídos ao dr. Alonso y Alonso, e não à equipe de médicos que o trata. No que vai um risco a esta aposta dos crentes. E se não sobreviver? Problema nenhum. O fracasso, obviamente, será dos médicos que o tratam.

A Veja desta semana deu a matéria de capa a este embuste, com o título “Medicina e Fé”. A revista, em um atentado à ciência, faz um aceno à terapia espírita e à impostação de mãos. Fico sabendo que o médico Plínio Cutait, do Sírio-Libanês, é um mestre reiki. Ora, o tal de reiki é uma terapia baseada na canalização da energia universal (rei) através da imposição de mãos com o objetivo de restabelecer o equilíbrio energético vital de quem a recebe e, assim, restaurar o estado de equilíbrio natural, podendo eliminar doenças e promover saúde.

Segundo o que leio na rede, a sua prática assemelha-se com as práticas budistas de canalizar a energia universal pela imposição das mãos, redescoberta no Japão no início do século XX pelo Dr. Mikao Usui, e introduzida nos Estados Unidos da América por volta de 1940 pela Sra. Hawayo Takata, uma americana de origem japonesa.

A imposição de mãos, na verdade, é uma antiga picaretagem, retomada por Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec (1804 – 1869), que misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer, com mais algumas pitadas de budismo, no caso, a reencarnação. Mesmer era médico, estudava teologia e instituiu como terapia a imposição das mãos. Criação nada original, afinal já está nos Evangelhos. Se voltarmos um pouco atrás, encontraremos a prática no Egito, no templo da deusa Isis, onde multidões buscavam o alívio dos sofrimentos junto aos sacerdotes, que lhes aplicavam a imposição das mãos.

Ainda segundo a Veja, o biólogo Ricardo Monezi, pesquisador de medicina comportamental na Universidade Federal de São Paulo, testou a influência da impostação de mãos (técnica chupada tanto pelo reiki como pelos espíritas) em ratos com câncer, divididos em três grupos. No terceiro, submetido à impostação de mãos, as células de defesa foram até 50% mais eficientes no combate às células tumorais do que as dos outros ratos.

Se espiritismo cura até ratos, provavelmente curará o Gianecchini. O espantoso, em tudo isto, é ver médicos e pesquisadores universitários acreditando em tais superstições. E uma revista como a Veja endossando tais embustes.