¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 29, 2011
 
AMBROSE BIERCE E OS
RUÍDOS DO RÉVEILLON



"Se elegemos viver entre bárbaros devemos suportar os bárbaros ruídos de suas bárbaras superstições, mas o imbecil que se senta e espera até a meia-noite para tocar um sino ou disparar um fuzil porque a terra chegou a um ponto determinado de sua órbita, deve ser considerado um inimigo da raça..."

A reflexão é de Ambrose Bierce. Devo confessar que, certa noite, há mais de meio século, mais ou menos sem querer, assumi esse papel de inimigo da raça humana. Teria entre dez e quinze anos, já não lembro. Nas férias escolares, eu voltava ao Ponche Verde e ao convívio dos meus. E vivi uma passagem de ano que até hoje me marca.

Era praxe, na data, organizar uma pescaria no Sangão dos Lucas. Pescaria que nada tinha a ver com peixes. Era pretexto para acampar no mato, tomar cerveja e cachaça e fazer churrasco. Quanto aos peixes, largava-se um espinhel no rio, e quem quisesse fisgar-se que se fisgasse. Um pouco antes da meia-noite, peguei uma pequena canoa e saí remando à montante, para examinar os espinhéis. Me senti adulto, aquela noite. Eu remava lentamente, sob um céu enluarado, em meio a um silêncio perpassado pelo ruído de grilos. Tinha uma missão, ver se havia peixes fisgados.

Quando cansei, deitei-me no barco e voltei ao sabor da jusante. Foi um momento mágico em meus dias. Lá pelas tantas, ouvi tiros no acampamento. Era meia-noite. Levava uma escopeta comigo. Foi quando assumi o personagem tão abominado por Bierce. Disparei em resposta. Meio para dizer: estou voltando. Nada a ver com a data. Fora este, meus réveillons nada tiveram de excepcional.

Nasci em uma geografia onde o tempo pouco importava. Entre os meus, jamais comemoramos natal ou ano novo. Muito menos aniversários. Tanto que até hoje só lembro do meu quando alguma de minhas gerentas de banco me envia um cartão. Mais ainda, envia em data errada. Naqueles pagos, era de praxe esperar-se alguns meses para registrar os nascimentos. Questão de esperar para ver se a cria vingava e poupar uma cavalgada até o cartório. Fui registrado três meses após nascer.

Comemorávamos, isto sim, as festas juninas. Mais um culto ao fogo, diria eu, do que homenagem a santos. Nasci no deserto, um deserto verde coberto de alhos-bravos, onde cada vivente morava a meia légua um do outro. Nossa comunicação era por espelhos. Quando a noite descia, esperávamos que alguém acendesse a primeira fogueira. Acendida esta, a pampa era salpicada por pontos luminosos que se estendiam até o horizonte. Sim, eu conheci horizonte, esta realidade que o homem urbano desconhece.

Nasci na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de três em três quilômetros há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras em homenagem a meu clã. Meu pai me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo.

Mas falava de réveillons. Sempre fugi de datas. Para mim, festa não tem data. Pode ser hoje, amanhã ou qualquer dia. Por que comemorar sessenta anos? Posso muito bem comemorar sessenta anos, três meses e quinze dias, por que não?

Leio que, a uns dois quilômetros de onde moro, na Avenida Paulista, dois milhões de pessoas estarão comemorando a passagem de ano, com muitos fogos e ruídos. O bom de meu bairro é que não ouvirei tais ruídos. Os dois milhões que fiquem lá. Longe de mim, por favor.

Ainda há pouco contei que, com minha mania de fugir do verão tropical e viajar no inverno europeu, boa parte de meus réveillons foram em Paris, Madri, Berlim, Colônia, Roma. Sempre encerrado em um hotel. Nas primeiras vezes, até tentei aproximar-me dos fogos. Quando a multidão começava a engrossar, dava meia volta. Multidões me dão medo. Quando uma multidão vai para o norte, eu rumo ao sul.

Meus réveillons, sempre os passei isolado do mundo, tomando um vinho ou champanhe com uma amiga querida. E assim será este. Tim tim, caríssimos!