¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, dezembro 16, 2011
 
A CARNE É FORTE


Pois, Paulo,

tivemos itinerários mais ou menos semelhantes. Perdi minha fé lá pelos 15 ou 16 anos. Não que tivesse nascido com ela. Nascemos todos ateus. Quem introduz a idéia de deus é a família, a escola, a sociedade e o Estado. Em meu caso, minha família não foi. Meus pais eram camponeses que, se acreditavam vagamente que deveria existir alguém que havia criado o mundo, para ele pouco ligavam, e muito menos para igreja ou padres. Vigário, lá em meus pagos, era palavra associada a vigarista.

No primeiro domingo do mês sempre havia uma missa na capela das Três Vendas. A gauchada toda se pilchava, encilhava os cavalos com o melhor pelego e badana, o chinaredo tirava suas chitas do baú e saía cortando campo até a capelinha, enchendo de cores o mar de alhos-bravos que ondeavam nas coxilhas. Não era fé. Missa era um acontecimento social. Ir à missa era pretexto para uma charla no bolicho, truco, jogo de osso e provavelmente um baile à noite, para despachar as machorras. Nada a ver com a acepção urbana desta palavra. Machorra, naqueles pagos, é a vaca que não deu cria.

Em Ponche Verde, (novela, 1986), contei como fui seqüestrado para as hostes católicas lá pelos seis ou sete anos, por uma catequista, mulher de um fazendeiro do Uruguai, Doña Chichi. Ela percorria a Linha Divisória numa camionete com caçamba e ia arrebanhando a piazada dos dois lados da fronteira. Para nós, a suprema aventura não era ouvir o catecismo, mas "andar de auto". Ao final das aulas, Doña Chichi nos induzia a rezar al Todo Poderoso, para que traiga lluvia a nuestras tierras, para que se pueda vender la safra de la lana. Eu, mais pelo prazer de andar de camionete do que por outra coisa, fazia coro às preces da catequista.

Aos dez anos, conheci cidade. Fui para Dom Pedrito, onde fiz o ginásio, dirigido pelos Padres Oblatos, ordem oriunda da Alemanha. Foram excelentes mestres de línguas e matemática e souberam reunir uma boa equipe de professores laicos, para ensino de história, geografia, biologia. Aos Oblatos do Colégio Patrocínio, minha eterna gratidão pela educação que me propiciaram, educação que hoje não encontramos nem nas universidades.

O problema era a religião. A disciplina era obrigatória e a doutrinação intensa. Fui introduzido em uma doutrina baseada no terror e na reverência a um deus mudo, com especial insistência aos sexto e nono mandamentos. Pecado, para os Oblatos, eram os pecados ditos da carne. Os demais eram irrelevantes. Para comungar, precisávamos estar em estado de graça. Isto é, absolvido de todos os pecados. As confissões eram em geral aos sábados, para que no domingo a pobre alminha estivesse limpa de toda mácula. Então vinha o interrogatório constrangedor:

- Pecou contra a carne, filho? Quantas vezes? Como e onde?

Hoje, não tenho dúvidas de que os padres se masturbavam, do outro lado da tela do confessionário, ouvindo aqueles relatos. Eles foram os precursores do sexo por telefone. Só que sem telefone. Ocorre que, entre a confissão de sábado e a comunhão de domingo, havia a longa noite de sábado. No domingo pela manhã, estávamos de novo impuros, cheios de culpa e apavorados com as chamas do inferno. Mas sempre havia um padre de plantão para absolver os reincidentes.

Quando cheguei à puberdade, não conseguia entender aquelas proibições. Estava cercado de meninas e queria algo mais delas do que um simples beijo. E lá vinham os argumentos de pecado contra a castidade. Na classificação da Igreja Católica, o sexto mandamento.

Peguei uma Bíblia e fui pesquisar o Êxodo, onde estão os mandamentos. Li o livro de ponta a ponta, não encontrei nem sombra da palavrinha castidade. De Bíblia em punho, chamei uma coleguinha de origem basca, a Irigaray, que eu paquerava, para lermos junto a palavra divina. Lemos tudo referente aos mandamentos.

- Encontraste alguma menção à castidade? – perguntei.
- Não.
- Então, vamos lá?
- Ai, que horror, Janer, pára com essas bobagens.

Com o tempo, aprendi que não é com lógica que se leva uma mulher para a cama. Tentando uma primeira resposta ao leitor, eu diria que a primeira coisa a afastar-me do tal de Deus foi uma sexualidade imperiosa, exigente e implacável. A carne não era fraca, como diziam os padres. Era forte. Tão forte que não conseguíamos dominá-la. Se sexo era bom e não fazia mal a ninguém, por que privar-me de sexo? Meu ateísmo começou por aí.

Obviamente, a negação de um deus não passa por uma questão de sexualidade exacerbada. Um pouco mais adiante, li a Bíblia de ponta a ponta. Aquele deus era inviável. Cruel, exterminador, genocida, Jeová estava mais para facínora do que para divindade. Além do mais, ia tomando diferentes formas, conforme a data dos livros. Só podia ser obra do intelecto humano, criação de sacerdotes sedentos de poder. Não há crença que sobreviva a uma leitura atenta da Bíblia. Não por acaso, houve época em que a Igreja proibiu sua leitura para menores de 30 anos. Não por acaso, mandou Fray Luís de Leon para as masmorras, por ter ousado traduzir alguns livros do Livro ao espanhol.

Em suma, retornei a meu ateísmo primevo lendo a Bíblia. Não sei qual foi o caminho de outros ateus. Só posso dizer que passa pela leitura. Sem leitura – apesar do que pensa o Lula – não há salvação. Em meu caso, o gatilho inicial foi a sexualidade. Não há cristão que suporte o puritanismo medieval do catolicismo. Prova cabal disto são os milhares de padres pedófilos que a Santa Madre abriga e protege. Mas o que consolidou minha descrença foram as leituras.

Quanto ao estudo de história das religiões em idade avançada, vou discordar. Acho que isto deve ser estudado quando ainda se é jovem. Não é preciso ser muito entrado em anos para entender que se uma geografia tem um deus e outras geografias têm outros, então deus é invenção humana. Quem começa a estudar história das religiões logo perde a fé. Foi o que aconteceu com Ernest Renan, o mais importante historiador do cristianismo. Quando se perde a fé ainda jovem, ainda há tempo de viver a vida.

Há alguns anos, um amigo narrou-me uma tragédia das boas, daquelas sem volta. Um sacerdote já entrado nos 60 anos, que a havia perdido, debruçou-se sobre suas mãos e começou a chorar:

— Eles roubaram minha vida.

Roubaram mesmo. Mas se roubaram, é porque deixou-se roubar. “Te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno”, diz Mateus. Orígenes, teólogo e autor de Contra Celso, levou as Escrituras ao pé da letra e cortou o seu.

Verdade que minhas leituras de história das religiões foram um tanto tardias. Hoje, é minha literatura preferida, e os livros sobre o assunto ocupam várias estantes de minha biblioteca. Mas pelo menos tive o bom senso de largar a craca cristão na adolescência.

Dediquei-me então a recuperar o tempo perdido. Dizem que a carne é fraca. Nada disso. A carne é forte. Tanto que sempre vence.